Wednesday 30 December 2020

São José: O Pai de Quem Precisamos

Pe. Paul Scalia
A maior parte de nós conhece a cena do Evangelho do domingo passado (Lc. 2, 22-40) como o quarto mistério gozoso: a apresentação do menino Jesus no Templo. Mas é também uma das sete dores e alegrias de São José. O seu coração enche-se de dor perante a profecia de Simeão de que o pequeno Cristo “está destinado a causar a queda e o soerguimento de muitos em Israel, e a ser um sinal de contradição”. Mas ao mesmo tempo, José regozija ao ouvir o seu filho proclamado como “Salvação” de Deus e “luz para revelação aos gentios e para a glória de Israel”.

Todos devemos sentir dor e alegria ao meditar esta cena, mas José experimenta essa dor e alegria de uma forma singular: enquanto pai de Jesus. De facto, o ponto de partida e de chegada na sua experiência deste evento é a realidade da sua paternidade.

Costumamos qualificar a paternidade de São José. Embora estejamos correctos, até certo ponto, essas qualificações podem dar a impressão de que a sua paternidade era uma ficção, ou faz de conta. O termo “Pai terreno” sugere uma relação pai/filho limitada a este mundo. “Pai adoptivo” implica que Jesus só se tornou filho de José a partir de certa altura. De facto, José e Maria eram casados aos olhos da lei quando Jesus foi concebido. Por isso não houve qualquer momento durante a vida de Nosso Senhor em que Ele não fosse filho de José.

Os Evangelhos não adjectivam. A passagem do Evangelho aqui referida identifica José e Maria simplesmente como “pai e mãe” de Jesus. Mais tarde, quando o encontram no Templo, Nossa Senhora diz “Teu pai e eu estávamos aflitos” (Lc 2, 48). São João refere-se duas vezes ao Senhor simplesmente como “filho de José” (Jo. 1,45 e 6,42). A única adjectivação usada nos Evangelhos é um parêntese, quando Lucas se refere a Jesus como “o filho (como se supunha) de José” (Lc. 3,23). Uma vez que isto surge imediatamente depois do Batismo do Senhor, a intenção é claramente de distinguir entre o Pai de Cristo revelado no Jordão e o seu pai conhecido em Nazaré.

É esta paternidade que o Papa Francisco enfatiza em Patris Corde, a carta em que anuncia o Ano de São José (8 de Dezembro de 2020 até 8 de Dezembro de 2021). E com boa razão. Como muitos já têm observado, na raiz dos problemas da nossa Igreja e da nossa nação está uma crise de paternidade. No cerne dos escândalos da Igreja está a traição de pais espirituais. As convulsões no nosso país são o resultado inevitável de décadas de pais ausentes. Mary Eberstadt chamou-o “a fúria dos sem-pai”.

A paternidade de José é um remédio necessário para estes males. Mas, primeiro, temos de a compreender correctamente. Falhamos na apreciação da paternidade de José porque não compreendemos a própria noção de paternidade. Limitamos a paternidade às suas dimensões física e terrena; a geração biológica de um bebé, ou a preparação de uma criança para poder ter sucesso neste mundo. De facto, a parte mais importante da paternidade não é a concepção nem a sua preparação ou formação para o sucesso mundano, é a partilha de sabedoria, de património e de identidade.  

Precisamente por não ser o pai biológico de Jesus, José chama a nossa atenção para a dimensão mais profunda e importante da paternidade. Ele não gerou o Senhor, nem tem quaisquer bens terrenos para lhe conceder. Mas enquanto marido de Maria, José é de facto o pai legal de Jesus – uma designação com um significado muito maior em Israel naquele tempo do que na nossa cultura. Era seu dever criar o seu filho nas tradições e na fé de Israel, passar-lhe as práticas e a sabedoria do povo de Deus. Na medida em que “Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e dos homens” (Lc. 2,52), cabia a José ensiná-lo a rezar, levá-lo à sinagoga e familiarizá-lo com as escrituras.


“Com os nossos próprios ouvidos ouvimos, ó Deus; os nossos antepassados nos contaram os feitos que realizaste no tempo deles, nos dias da antiguidade” (Salmo 44, 1). É maravilhoso contemplar José a ensinar este versículo a Nosso Senhor, introduzindo-o no património de Israel, ao que “os nossos antepassados nos contaram”. Esses antepassados tinham dotado os seus filhos de identidade, levaram-nos a saber quem eram – e quem não eram – no mundo e na história. A fidelidade desses pais significa que os Israelitas se conheciam como povo de Deus.

E é precisamente isso que os pais não têm feito na nossa cultura. Podem ter dotado os seus filhos de bens materiais e de conselhos sobre como ter sucesso neste mundo – ou pelo menos como atingir o conforto. Mas durante décadas os pais têm falhado em dar aos seus filhos a sua verdadeira identidade. Não transmitiram o património do Ocidente, da nossa nação e sobretudo do Cristianismo.

Isto deve-se em larga medida ao facto de esses pais terem, por sua vez, impiamente rejeitado a sua própria herança. A impiedade é estéril. Como o passado não significa nada para eles, agora também eles não têm nada para propor para o futuro. Pior, esta orfandade em relação ao passado deixa-nos vulneráveis no presente. Por isso, aquilo a que assistimos no “wokeismo” é uma geração órfã, desconectada do seu património de sabedoria e cultura e por isso presa fácil para qualquer nova teoria que aí venha.

Temos assistido ao mesmo fenómeno na Igreja. Padres impiedosos para quem o passado está desprovido de significado, que não transmitiram a gerações de católicos a sua herança legítima de ensinamentos e liturgia eclesial. Tanta da nossa atual maleita vem desta desconexão, deste esquecimento de quem somos – e de quem não somos – no mundo e na história.

Chegou então o momento de “ir ter com José” (Gen. 41,55). Com ele, pai de Jesus, aprendemos o verdadeiro significado da paternidade e o valor incomparável de um homem que cumpre fielmente essa missão.


O Pe. Paul Scalia (filho do falecido juiz Antonin Scalia, do Supremo Tribunal americano) é sacerdote na diocese de Arlington e é o delegado do bispo para o clero. 

(Publicado pela primeira vez no domingo, 27 de dezembro de 2020 em The Catholic Thing

© 2020 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing

Wednesday 23 December 2020

Arranjar Espaço na Estalagem

O Evangelho de Lucas é o único que narra os eventos que rodearam o nascimento de Jesus. É difícil pensar noutra passagem das escrituras que exerça uma influência tão grande sobre a imaginação, sobretudo das crianças, do que a Natividade. E como é que não havia de ser? É uma história que tem tudo aquilo com que as crianças se podem identificar: uma “viagem” de família, um bebé, anjos, pastores, animais.

É verdade que muitos dos detalhes que associamos à Natividade – vacas, camelos, burros e por aí fora – não são mencionados nos Evangelhos, mas isso só realça o que disse. Nenhum episódio na vida de Cristo, nem mesmo a Paixão, se adequa tanto à imaginação infantil.

O Natal é a mais humana das grandes festas da Igreja, a que é mais acessível para nós num nível natural. É no Natal que encontramos Deus no seu estado mais acessível e familiar: um recém-nascido.

Na sua homilia da Missa do Galo de 2012, o Papa Bento XVI resumiu-o da seguinte forma:  É como se Deus dissesse “Sei que o meu esplendor te assusta, que à vista da minha grandeza procuras impor-te a ti mesmo. Por isso venho a ti como menino, para que Me possas acolher e amar”.

Também isto explica a facilidade com que as crianças se apaixonam pela história de Natal e porque é que o seu poder permanece connosco mesmo quando ficamos mais velhos e mais ocupados. Para a maioria de nós não há festa que evoque mais as alegrias (e talvez as tristezas) da nossa juventude do que o Natal.

Quanto mais velho fico, mais reparo que a alegria do Natal traz consigo uma nota da mais doce tristeza. Que incrível que a alegria do Natal seja tão diferente da alegria pascal (sendo esta última muito mais mundana, no melhor sentido possível da palavra).

Uma das personagens da história da Natividade que mais me tem interessado à medida que vou ficando mais velho nem sequer é mencionado no Evangelho, tal como o camelo ou o burro. Estou a falar do pobre estalajadeiro.

Segundo o Evangelho de Lucas, a Sagrada Família chega à vila de Belém e descobre que não há lugar para eles na estalagem. O estalajadeiro anónimo costuma ser apresentado como uma lição para as pessoas que estão demasiado ocupadas e centradas em si mesmas para receber Cristo quando ele vem.

Naquela mesma homilia do Natal de 2012, o Papa Bento usou este ponto para reflectir sobre o nosso estado de preparo para receber Cristo:


“Sempre de novo me toca também a palavra do evangelista, dita quase de fugida, segundo a qual não havia lugar para eles na hospedaria. Inevitavelmente se põe a questão de saber como reagiria eu, se Maria e José batessem à minha porta. Haveria lugar para eles?”

E continua:

“A grande questão moral sobre o modo como nos comportamos com os prófugos, os refugiados, os imigrantes ganha um sentido ainda mais fundamental: Temos verdadeiramente lugar para Deus, quando Ele tenta entrar em nós? Temos tempo e espaço para Ele? Porventura não é ao próprio Deus que rejeitamos?”

O Papa Bento propõe uma bela meditação sobre a humildade de Deus e os perigos das preocupações mundanas. Cada um de nós deve ultrapassar o nosso próprio egoísmo para que possamos receber não só o Bebé de Belém, mas também o pobre e o indigente com quem o Senhor se identifica tão estreitamente.

Mas voltando ao tal estalajadeiro…

Penso bastante se, ao imaginá-lo como insensível e preocupado, não estaremos a ser injustos.

É fácil partir do princípio que o pobre estalajadeiro rejeitou a Sagrada Família e lhes fechou a porta na cara. Mas porque havemos de o fazer? E se a única razão pela qual Maria tinha sequer uma estalagem para o seu recém-nascido era porque o estalajadeiro lhes ofereceu o pouco que tinha em termos de abrigo? Alguém deu guarida a José e a Maria, porque é que partimos do princípio que não foi ele? Porque é que devemos presumir que o seu humilde envolvente foi o resultado de malícia ou de indiferença?

O Natal é um tempo que se presta à imaginação, por isso imaginemos:

Imagine José a bater à porta da estalagem, já tarde. O estalajadeiro vai à porta. A estalagem está cheia, por causa do recenseamento. Mas o estalajadeiro consegue ver a preocupação estampada na cara de José. Consegue ver que a jovem Maria não podia estar mais grávida. Não tem quartos. Claro que não pode acordar os seus clientes e expulsá-los a meio da noite!

Então faz o que pode.

Oferece ao casal um estábulo. É humilde, mas pelo menos é quente. E oferece-o sem custos. Traz-lhes um pouco de comida, alguma coisa para beber. Traz cobertores e água para se lavarem. Talvez a sua mulher lhe tenha lançado um daqueles olhares, como que dizendo: “Estás doido? Quem são estas pessoas?” Mas ele ajuda na mesma. Ou talvez a sua mulher seja tão generosa como ele e também ajude. Vão visitando durante a noite, sem querer incomodar, para ver se os viajantes têm tudo o que precisam.

Talvez o estalajadeiro seja um homem honesto, compassivo, que dedicou toda a vida e a carreira à hospitalidade e tendo dado o pouco que tinha para oferecer, com o amor e o cuidado possíveis, obteve a graça de poder acolher o próprio Deus, sem nunca ter percebido quem é que estava a receber na sua morada – ou pelo menos no seu estábulo.

Talvez o estalajadeiro de Belém seja uma recordação de que, quando somos generosos para com aqueles que não podem retribuir a nossa simpatia, quando damos o que temos, por mais humilde que seja, Deus pode transformar os nossos esforços em algo maravilhoso, capaz até de mudar o mundo. Talvez.

Pelo menos eu gosto de pensar que sim.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quarta-feira, 23 de Dezembro de 2020)

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Wednesday 16 December 2020

Memória e Gratidão

Francis X. Maier
Charles Péguy terá dito, alegadamente, que o problema dos cristãos é que não acreditam naquilo em que acreditam. É uma frase engraçada. Não faço a menor ideia se o disse de facto, mas não faz mal, porque seja como for, é verdade. Até sofrermos por aquilo em que acreditamos, ou o nosso coração for tocado pelo testemunho de quem sofre, a nossa fé continua por testar, nada mais é que uma aspiração, um conjunto de boas intenções. O que me traz ao meu melhor amigo, Joe.

Pai de oito filhos e ex-fuzileiro, o Joe tem uma personalidade clássica de líder: racional, organizado, motivado pelo desempenho. Passou as últimas décadas da sua carreira como diretor executivo de duas empresas multimilionárias, alicerçado nas capacidades que aprendeu nas Forças Armadas. Durante 13 meses, entre 1967-68, o Joe liderou uma companhia de infantaria de fuzileiros na zona de Dong Há, a sul da Zona Desmilitarizada (DMZ) e encostado à fronteira do Vietname do Norte. A atividade inimiga era intensa e por isso, juntamente com as patrulhas normais, o Joe tinha responsabilidades de ajudar e interagir com a população local. Acontece que muitos destes vietnamitas eram católicos, como ele. E foi assim que conheceu o padre Paul.

O padre Paul vinha, juntamente com muitos dos seus paroquianos, do Norte. Tinham fugido para Sul quando acabou o regime colonial francês e os comunistas tomaram o poder em Hanói. O padre Paul, um homem pequeno e discreto, tinha sido pároco coadjutor até há pouco tempo e foi promovido, como acontece em zonas e guerra, quando os viet cong assassinaram o pároco enquanto ele levava os sacramentos a famílias nas zonas rurais. Enquanto o padre Paul preparava a sua motorizada para dar continuidade a esse trabalho, o Joe sugeriu que, tendo em conta os eventos recentes, essa talvez não fosse a estratégia mais avisada. O padre encolheu os ombros. As pessoas precisam dos sacramentos, disse, e partiu para o mato. Sabe-se lá porquê, mas o padre Paul não foi emboscado nesse dia, nem em qualquer outro.

A paróquia ficava dentro da zona de alcance da artilharia norte-vietnamita na DMZ. E por isso, a meio da missa das 10h, num domingo de manhã, as armas visaram a paróquia e dispararam sobre a igreja, destruindo grande parte do edifício e matando, ou ferindo, dezenas de paroquianos. O Joe partiu do princípio de que isso marcava o fim da paróquia.

Mas um ou dois dias mais tarde o padre Paul apareceu no bunker do Joe. Enquanto oficial para as relações com civis, ele tinha acesso a materiais de construção e o padre Paul pediu-lhe ajuda para reconstruir a igreja. O Joe deu-lhe a ver que uma vez que o local da igreja já tinha sido atingido de forma certeira pela artilharia inimiga, as mesmas armas podiam facilmente atingi-la outra vez, sempre que o inimigo assim quisesse. Mais uma vez, o padre encolheu os ombros. As pessoas precisam da missa, comentou. Por isso, algumas semanas mais tarde, enquanto convidado de honra, o Joe ajoelhou-se devotamente na primeira fila para uma liturgia de ação de graças. A música e os cânticos eram belíssimos e altos – tão altos, admite agora o Joe, que teriam abafado o som de artilharia caso o inimigo optasse por disparar naquele instante.

O padre Paul e o Joe tornaram-se bons amigos e ajudavam-se na medida do possível. Mas as missões de combate acabam e por isso, depois de 13 meses, o Joe voltou para casa para a sua mulher, Gail. Começaram uma família e uma nova vida. De tempos a tempos, com o passar dos anos, o Joe pensou no padre e noutros amigos que tinha conhecido no Vietname. Alguns tinham sobrevivido, outros não. Alguns regressaram com cicatrizes permanentes, outros não regressaram de todo. O que o Joe soube dos padres como o Paul foi que a maioria tinha acabado em valas comuns, mortos nas represálias depois da queda de Saigão.

O bispo Paul Nguyen Thanh Hoan

Passaram-se os anos, a vida continuou, as memórias tornaram-se mais escassas. Até que um dia, quase quatro décadas depois de ter saído do Vietname, o Joe recebeu um email de um amigo que tinha servido com ele. Pesquisando na internet, com o seu fraco vietnamita, tinha encontrado um artigo sobre o enterro de um “padre Paul” na província de Binh Thuân, do que tinha em tempos sido o Vietname do Sul. Parecia o padre que o Joe tinha conhecido, mas não era. Era o funeral de outro sacerdote, celebrado pelo agora bispo Paul Nguyen Thanh Hoan, pastor da diocese de Phan Thiêt.

O padre Paul, o jovem e discreto sacerdote que amava o seu povo, que se recusava a ser intimidado, que não se preocupava com a sua própria vida e que conseguia extrair sangue de uma pedra, tinha conseguido sobreviver à guerra e ao pós-guerra e tinha retomado o seu ministério. Nos anos que se tinham passado entretanto fundou uma comunidade de religiosas, um orfanato, uma leprosaria e um santuário mariano popular – tudo apesar da constante opressão e interferência do regime. O Joe entrou de novo em contacto com o “padre Paul” e visitou-o no Vietname e até à morte do bispo, em 2014, ele e a Gail apoiaram-no com dinheiro e contactos para o ajudar com a sua obra.

E tudo isto é uma história bonita, mas não é por isso que a conto. O ponto é este: O padre Paul acreditava naquilo em que acreditava. Provou-o com a sua vivência. E ao vivê-lo, tocou o coração dos outros.

O meu amigo Joe tem setentas e muitos agora e é um homem de carácter, de profunda fé e agora também de uma emoção intensa e inesperada, que é difícil de descrever. A idade leva-nos a recordar. Alguns homens são assombrados pelas suas memórias. Outros são conduzidos por elas por um rio de gratidão que se torna maior e mais profundo todos os dias, na medida em que se recordam do amor, da coragem e da fé que receberam de outros. Essa gratidão é o último dom da vida, uma antevisão da eternidade. Numa altura não muito diferente da nossa Dietrich Bonhoeffer terá dito que a gratidão é a o começo da alegria. Também é uma frase bonita. Se o disse, de facto, não sei. Mas não interessa. Não deixa de ser verdade.


Francis X. Maier é conselheiro e assistente especial do arcebispo Charles Chaput há 23 anos. Antes serviu como Chefe de Redação do National Catholic Register, entre 1978-93 e secretário para as comunidades da Arquidiocese de Denver entre 1993-96.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Quarta-feira, 9 de Dezembro de 2020)

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Wednesday 9 December 2020

Um Gentio Justo

Brad Miner
Em 1943 houve uma revolta contra os nazis no gueto judaico de Czestochowa, na Polónia, que foi rapidamente esmagado pelas SS, matando muitos judeus. Muitos outros foram enviados para campos de morte. Os que permaneceram em Czestochowa foram postos a trabalhar como escravos até que o Exército Vermelho libertou a cidade. Nessa altura, como os nazis teriam dito com orgulho, a cidade estava quase Judenfrei.

A história mostrou que a “libertação” da Polónia foi, devido à sua subjugação pelos comunistas, um pau de dois bicos. A Polónia foi verdadeiramente, como disse o arcebispo Fulton Sheen, uma nação “crucificada entre dois ladrões.”

No dia 28 de janeiro de 1945 uma menina judia exausta e subnutrida, Edith Zierer, conseguiu chegar a uma estação do caminho de ferro que atravessava Czestochowa. Acreditando que a família estava viva em Cracóvia, entrou numa carruagem de transporte de carvão, de um comboio que, pensava, a levaria até lá. Mas o vento gélido que entrava pela porta aberta da carruagem era demasiado forte e por isso duas horas mais tarde, e com medo de congelar até à morte, aproveitou uma paragem e saiu. Coxeou até à plataforma da estação em Jedrzejow – uma decisão providencial, até porque Cracóvia ficava a sul o comboio estava a ir para leste.

Sentou-se sozinha na estação. Se alguém a viu, ignoraram-na, embora fosse evidente que era uma refugiada. Envergava a farda numerada, agora em trapos, que os sempre eficientes nazis obrigavam os trabalhadores escravos a vestir. Quem tivesse olhos na cara poderia ver que ela estava fraca e esfomeada. Mas ninguém a veio ajudar.

A Edite estava a começar a pensar que mais valia morrer, até que a Providência interveio. Como o seu sobrinho-neto, Roger Cohen, explica, “A morte aproximava-se, mas um jovem antecipou-se. ‘Era muito bem parecido’, recorda a Edith, e vigoroso”. De acordo com ela, o jovem rapaz perguntou-lhe o que é que ela estava ali a fazer. Ela disse-lhe. Outro relato diz que ele também perguntou o seu nome, mas quando ela lho disse desatou a chorar, porque durante tantos anos tinha sido apenas um número.

O homem afastou-se, mas voltou com uma chávena de chá. Enquanto ela bebia ele disse que também ia para Cracóvia e prometeu ajudar a levá-la até lá. Ela estava desconfiada. Ele voltou ao sítio onde tinha ido buscar o chá e voltou com pão e queijo. Isso ajudou, muito. O estranho, que conhecia as linhas e os horários, sabia que o próximo comboio para Cracóvia partia longe dali e tinha a sensação de que a Edith não tinha muito tempo.

“Tenta levantar-te”, disse ele. Mas ela não conseguia. Por isso ele pegou nela e carregou-a mais de três quilómetros até à estação certa. Mais uma vez encontrava-se numa carruagem de carvão. Estava lá outra família judia escondida. O jovem entrou também. Colocou a sua capa à volta de Edith e fez uma pequena fogueira dentro da carruagem, para proteger do inverno gelado. Finalmente apresentou-se.

“O meu nome é Karol Wojtyla”.

Agora sem a capa, Edith e a família judaica conseguiam ver que ele era um padre católico. Ou pelo menos assim lhes pareceu, por causa da batina. Na verdade, era ainda seminarista.

Quando chegaram a Cracóvia o Karol saiu do comboio, talvez para arranjar informação que pudesse ajudar a Edith a encontrar a família. Quando regressou ela tinha partido. Um dos outros passageiros tinha-lhe dito que fugisse, não fosse este padre querer metê-la num convento. “Fugi”, disse ela, “porque as pessoas começaram a perguntar porque é que um padre estava a viajar com uma menina judia”.

Ela recorda-se de se ter escondido atrás de um monte de vasos de leite metálicos quando o homem que a tinha ajudado começou a chamar por ela em polaco: “Edyta, Edyta!”

Como escreve o senhor Cohen:


Aqui estavam duas pessoas numa terra devastada, um católico de 24 anos e uma judia de 13. O futuro Papa já tinha perdido a sua mãe, o seu pai e o seu irmão. A Edith, embora ainda não o soubesse, já tinha perdido a mãe em Belzec, o pai em Maidaneck e a irmãzinha em Auschwitz. Não podiam estar mais sozinhos.

Naquele momento Edith Zierer fez aquilo que achou necessário para preservar a vida e a sua fé. Mas nunca se esqueceu de Karol Wojtyla.

Quando leu num jornal, em 1978, que este homem extraordinário tinha sido eleito Papa, chorou. Escreveu-lhe várias vezes, mas não recebeu qualquer resposta… Durante 20 anos. Mas em 1998 voltaram e encontrar-se no Vaticano. Naquele encontro, de acordo com Cohen, o Papa pôs-lhe a mão na cabeça e disse: “Volta, minha filha”, uma coisa estranha de se dizer meio-século depois.

Talvez se estivesse a recordar dos seus gritos ansiosos naquela estação em Cracóvia: “Edyta, Edyta! Volta, minha filha.” Ou talvez estivesse a convidá-la a voltar a Roma para outra visita. Isso nunca aconteceu, mas os dois voltaram a encontrar-se em 2000 no Yad Vashem, quando João Paulo fez uma peregrinação a Jerusalém. “Ele era um espírito irmão no sentido mais puro da palavra. Um homem capaz de salvar uma menina naquele estado, congelada, esfomeada e cheia de piolhos, e levá-la até segurança”, disse ela, depois de São João Paulo II morrer, em 2005. “Eu não teria sobrevivido se não fosse ele”.

Naquela visita a Yad Vashem o santo octogenário foi cumprimentar seis sobreviventes do Holocausto, uma das quais era a senhora Zierer. O Papa falou a cada um, até chegar a Edith. Então colocou uma mão sobre o seu ombro, enquanto conversavam. Ela diria depois que “não chorei no Vaticano, mas em Yad Vashem, desfiz-me em lágrimas”. 

Edith morreu em 2014. 


(Publicado pela primeira vez na segunda-feira, 7 de Dezembro de 2020 em The Catholic Thing)

Brad Miner é editor chefe de The Catholic Thing, investigador sénior da Faith & Reason Institute e faz parte da administração da Ajuda à Igreja que Sofre, nos Estados Unidos. É autor de seis livros e antigo editor literário do National Review.

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Wednesday 2 December 2020

Outra Sagrada Família

Joseph R. Wood
Associamos o Advento à penitência e à família. Este tempo em que a Igreja espera pelo Senhor é um de preparação penitencial para a grande festa do Natal.

Para aqueles que contam entre os seus parentes pessoas com personalidades complicadas, mesmo sem pandemias e eleições as noções de penitência e família encaixam bem e sem esforço. No Evangelho de São Mateus, Cristo diz-nos para deixar “casas ou irmãos ou irmãs ou pai ou mãe ou filhos”. (Lucas e alguns dos tradutores de Mateus incluem esposas, o que pode razoavelmente entender-se como incluindo maridos também). Em troca promete-nos 100 vezes mais e para alguns de nós uma curta pausa de ter de aturar parentes argumentativos (ou pior) pode ser um bom começo.  

Já outros gostariam de ter uma família, qualquer tipo de família, das que discutem ou não, com a qual partilhar este período alegre e penitencial do ano litúrgico, bem como os altos e baixos da vida.

A Igreja apresenta a Sagrada Família de Belém e de Nazaré como um modelo para a vida familiar. A família é reconhecida como a relação natural fundamental desde Aristóteles até às Escrituras, de Edmund Burke a Winston Churchill.

Aqueles que não têm a sorte de ter uma vida familiar especialmente alegre poderão ter bem a noção de que a Sagrada Família era atípica. A mãe e esposa não carregava os efeitos o pecado original; o padrasto e marido teve sonhos convincentes de que a sua esposa era fiel tanto a ele como ao grande plano de redenção; e o filho era Deus.  

Trata-se de um modelo que os mortais decaídos têm dificuldade em seguir, mesmo na melhor das situações. Mas a Igreja tem razão quando diz que a nossa maior alegria nesta terra vem de tentar seguir fielmente esse modelo, nas famílias e nas comunidades, e que quem não tiver esse tipo de amor sofre profundamente.

A sua proibição do divórcio, a afirmação de que o adultério é pecado e a sua obediência aos pais depois da aventura de três dias no templo, são a forma como Cristo fortaleceu o nosso conceito de família. A parábola do Filho Pródigo realça o amor de um pai pelo seu filho desviado e a necessidade de um irmão mais velho se colocar acima do ressentimento de um filho obediente que se sente negligenciado.

Os milagres em que Jesus cura crianças, parentes, criados e até a sogra daqueles que lho pedem com fé mostra a sua atenção e afeto especial para com a família. O seu primeiro milagre público foi fornecer vinho para um casamento, onde as famílias celebram a criação de uma família nova.

Cristo cura o homem cego cujos pais, com medo dos fariseus e distanciando-se do seu filho, escondem qualquer interesse no assunto que possam ter.

Mas é evidente que Cristo nos chama a mais do que a nossa família natural. Frequentemente chama a nossa atenção para outra família, sobrenatural, que é verdadeiramente sua. Os membros dessa família podem vir, ou não, de lares felizes.

Os seus discípulos largam as suas famílias e negócios mundanos para o seguir.

Diz a um potencial seguidor para não esperar para cumprir a sua vontade admirável de sepultar o seu pai e a outro que adiar para dizer adeus à sua família não era forma de o seguir. Ele não aceita hesitações por parte daqueles que chama das suas famílias naturais para se juntar à sua.


Jesus insiste que veio trazer divisões aos lares e que quem ama pai, mãe, irmã ou irmão mais do que a Ele não é digno dele. Todos os Evangelhos sinópticos incluem versões da sua exigência para que deixemos pais, irmãos, esposos e lares para o seguir.

Chamado pela sua própria família natural enquanto pregava, responde que a sua família – os seus irmãos, irmãs e mãe – são todos aqueles que fazem a vontade do seu Pai.

Respondendo a uma questão hipotética por parte dos saduceus, sobre uma viúva que desposou sete irmãos, assegura-nos de que na Ressurreição não casam nem se dão em casamento. Os votos que estão na base da família natural não são vinculativos depois da morte e o casamento, tal como o conhecemos agora, não existe na eternidade.

Estará Cristo a denegrir a família natural? De todo.

Está a anunciar outra família, uma família final que perdurará para a eternidade. Tal como Santo Agostinho explica que a cidade humana não é a nossa pólis final e que nos encontramos a caminho da Cidade de Deus e existe uma família final para além daquela em que estamos colocados agora. São Paulo confirma-o.

Para deixar mais claro, Cristo compara o seu Reino a um casamento, o evento na terra onde uma nova família se forma.

Ele institui esta outra Sagrada Família quando, pendurado na Cruz, o seu trabalho na terra já está completo. Diz à sua mãe “eis o teu filho” e a João diz “eis a tua mãe”. No momento mais significativo da sua vida utiliza a linguagem da família natural para nos orientar para a nossa família final.

Esta outra Sagrada Família já não depende das circunstâncias do lar em que nasceram, sem qualquer voto na matéria. Ser filho ou filha nesta Sagrada Família final requer uma decisão de fé.

Os tempos penitenciais são a base da maior das festas familiares. A difícil caminhada até Belém que recordamos no Advento leva-nos até à Sagrada Família no Natal; e a Quaresma traz-nos a outra Sagrada Família aos pés da Cruz e a sua alegria pascal. A família que não encontra abrigo para o nascimento do seu filho aponta para a família no Calvário. A alegria da Encarnação que se torna visível para os pastores e para o mundo no Natal aponta para a alegria da Ressurreição.

Estes tempos ensinam-nos que toda a gente – das casas onde estas coisas são compreendidas e vividas, de casas onde reina a tragédia ou de casas que nem o são – tem o dom revelado no Evangelho de São João, o poder de se tornarem, através da Graça, filhos de Deus.

Somos chamados a ser membros das nossas famílias terrenas agora, quando também nós procuramos abrigo, aos pés da cruz e aí, por fim, membros da outra Sagrada Família, para a eternidade.


Joseph Wood é professor no Instiute of World Politics em Washington D.C. e colaborador na Cana Academy.

(Publicado pela primeira vez no domingo, 29 de novembro de 2020 em The Catholic Thing

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