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Mapa de distribuição religiosa na Síria
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Graças a Deus, existe a ONU!
A Organização confirmou hoje
que existem militantes do Hezbollah a combater pelo regime de Bashar al-Assad,
na Síria e alertou para o facto de a guerra civil naquele país ter assumido
contornos de luta sectária! A sério?!
Pois este é um tema sobre o qual temos falado
incansavelmente durante todo o ano, até mais, mas foi sem dúvida um dos grandes
temas deste ano no que diz respeito a informação internacional e também
religiosa, porque a religião desempenha um grande e importante papel neste
conflito.
A guerra na Síria ajuda-nos a compreender que isto da
Primavera Árabe não é um fenómeno simples, igual em todos os países. A situação
na Síria não tem nada a ver com o Egipto ou com a Tunísia. Se na Tunísia a
população é praticamente homogénea, e no Egipto são apenas dois os grupos etno-religiosos
de peso, os muçulmanos sunitas e os cristãos, a Síria é uma manta de retalhos.
Se não vejamos:
População: Cerca de 22 milhões
Distribuição religiosa:
Muçulmanos sunitas: 74%
Muçulmanos
de tradição xiita: 13%
Cristãos,
várias denominações: 10%
Drusos: 3%
Mas se fosse só assim seria demasiado simples! Então temos
que 9% da população é curda. Os curdos são na maioria sunitas, mas mantêm-se à
parte da população árabe, por isso os árabes sunitas são apenas cerca de 65% da
população total.
Entre os xiitas temos também três grupos distintos, mas o
grupo principal são os alauitas, uma vertente esotérica do xiismo. Os alauitas
vivem também no Líbano e na Turquia mas a maioria vive na Síria e, desde a
subida ao poder da família Assad, dominam os aparelhos do poder político e
militar, isto apesar de serem apenas cerca de 10% da população total.
Por fim, os cristãos pertencem a várias denominações
diferentes. Há católicos (de várias igrejas), ortodoxos, arménios e
protestantes. A variedade de hierarquias e uma notória falta de coordenação
significam que os cristãos, mesmo que estejam de acordo, raramente falam a uma
só voz.
Vamos então ao conflito. Quem é que está a lutar pela queda
do regime?
O grosso dos militantes anti-Assad são árabes sunitas. São
apoiados financeira e militarmente pelos países árabes sunitas do Golfo, muitos
dos quais tentam impor aos grupos que financiam as suas ideologias extremistas.
Contudo, alguns membros de outros grupos étnicos ou religiosos também apoiam a
oposição.
E quem apoia Assad? Os alauitas, sem dúvida. Mesmo que não
gostem da figura e da repressão do regime, vivem aterrorizados com o que lhes
pode acontecer caso os sunitas tomem o poder. As garantias por parte da
oposição de que não haverá lugar a retribuições e vinganças não parecem
consolar os alauitas.
Os cristãos também apoiam, no geral, Assad. A Síria era, até
há cerca de dois anos, um dos sítios mais seguros para os cristãos viverem em
todo o Médio Oriente. Pela minha experiência pessoal, de contacto com cristãos
sírios, mesmo antes do começo das revoltas, eles não gostavam do regime em si,
mas calculavam que era um mal menor, tendo em conta o que se passava nos países
à volta. Como os alauitas, temem um eventual Governo islamista sunita.
Na corda bamba estão os drusos que, mais que tudo, querem
que os deixem em paz.
Complicado? Calma que ainda fica pior. É que há também os
actores externos. Vejamos.
O Irão é a única potência regional xiita e faz tudo o que
tem ao seu dispor para salvaguardar a sua influência regional. Uma Síria em
mãos alauitas é aliada do Irão, uma Síria sunita não é. Por isso o Irão apoia
Assad até porque o fim do regime impediria os iranianos de continuar a apoiar o
Hezbollah, no Líbano.
O que nos leva precisamente ao Hezbollah. Esse grupo
político-militar xiita é, actualmente, o mais influente no Líbano. Tem um
arsenal próprio e conta com o tal apoio do Irão, que é muito significativo. Com
o seu poder continua a fazer frente a Israel, como pode. Para o Hezbollah a
perda da conduta Síria, por onde vêm armas do Irão, seria desastrosa. É por
isso que o Hezbollah está, de facto, há muito tempo, a combater na Síria ao lado
das forças armadas de Assad.
Para além dos países do Golfo que apoiam financeiramente a
oposição há ainda que ter em conta a Turquia. Os turcos já não são aquele
baluarte do secularismo que eram há anos, o país tem-se tornado crescentemente
islâmico e à medida que a Europa vai mostrando que não a quer na União
Europeia, os turcos vão virando as atenções para o Médio Oriente, conscientes
de que a Primavera Árabe pode muito bem aumentar a sua influência na região.
Por isso a Turquia, um dos países sunitas mais importantes
do Médio Oriente, também quer ver os sunitas no poder na Síria, de preferência
com uma dívida de agradecimento para com Ancara.
E quem é que não pode ver os turcos à frente? Os curdos,
pelo que esse grupo se mantém muito desconfiado em relação à oposição na Síria
também.
Resumindo, uma enorme misturada, mas onde a religião é um
factor chave para se compreender o que se está a passar. Não é, de certeza, uma
mera questão de amantes da liberdade contra um estado tirânico.
Também é necessário realçar, claro, que há excepções. Há
cristãos empenhados na oposição e há sunitas que não querem ver Assad pelas
costas. A tendência até pode ser para a passagem gradual dos cristãos e outras
minorias para o lado da oposição, à medida que percebem que a vida normal e
calma que gozavam simplesmente não regressará.
E, claro, há muitos factores extra-religiosos na equação. O
apoio da Rússia e da China a Assad tem outras raízes, por exemplo, e os EUA e
Europa não apoiam certamente a oposição por amor ao Islamismo.
Actualmente a queda do regime parece ser simplesmente uma
questão de tempo, mas isso não será o fim da história, é que muitos destes
grupos poderão, em situações de perigo juntar-se nas suas terras ancestrais, e
tentar, quem sabe, criar estruturas autónomas de Governo. Mas isso já são
suposições.
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