O Cardeal Manning – que foi
contemporâneo e seguidor do Cardeal Newman – disse certa vez que “todo o
conflito humano é, no final de contas, teológico”. (Podíamos mesmo dizer que
tudo o que é humano envolve necessariamente a teologia, mas esse é um assunto
complexo para tratar noutro dia). Na actual guerra da Rússia contra a Ucrânia,
porém, a teologia não é sequer uma consideração distante, está mesmo à
superfície. Mesmo que a guerra chegue a um final aparentemente tolerável, as
divisões teológicas permanecerão connosco muito tempo.
Isto porque não é apenas
Vladimir Putin que tem falado numa “Guerra Santa” na Ucrânia, mas também
líderes religiosos como o Patriarca Cirilo de Moscovo. Putin tem estado a usar
cinicamente os ortodoxos como cobertura moral para as suas ambições. Mas também
já intuiu que para “tornar a Rússia grande outra vez” a Ortodoxia Russa – que
carrega em si muitos dos elementos mais profundos da Santa Mãe Rússia e da sua
projecção secular, “o mundo russo” – é uma parte fundamental do plano político.
Já os líderes da Igreja
Ortodoxa Russa não têm a mesma desculpa política.
Na verdade, o que estamos a
ver agora não é apenas corrupção política entre os líderes religiosos
comprometidos, mas uma profunda divisão espiritual que estava de certa forma
disfarçada por profissões de fraternidade cristã. Até existem cristãos no
Ocidente que, traumatizados pela nossa decadência e “wokeismo” se deixaram
convencer de que a Rússia de Putin – com a sua repressão em larga escala,
assassinato de dissidentes (incluindo no estrangeiro) e maior taxa de aborto no
mundo – é de alguma forma um salvador religioso.
Vários Papas no passado
recente fizeram grandes esforços para pôr fim ao cisma entre Roma e a Ortodoxia
– e na maior parte das vezes têm sido rechaçados. Antes de a guerra ter
começado o Papa Francisco estava a procurar um segundo encontro com o Patriarca
Cirilo. O primeiro aconteceu em 2016, no aeroporto de Havana. O local não foi
boa ideia, mas pelo menos ambos os líderes exprimiram um “profundo desejo” por
unidade. E o Papa disse mais tarde que “falámos como irmãos”.
Esse espírito fraternal não
perdurou. Durante a sua videoconferência, no início deste mês, Francisco parece
ter criticado abertamente Cirilo por afirmar que esta “operação militar
especial” é uma “guerra santa”. Francisco foi ainda mais longe quando, na
sexta-feira passada, consagrou a Rússia, a Ucrânia e todo o mundo a Nossa
Senhora de Fátima. Cirilo e Putin sabem que Nossa Senhora pediu essa
consagração para que os erros da Rússia não se espalhassem pelo mundo, e para
que a Rússia se converta. Parabéns a Francisco por ter feito ambas estas
coisas, por mais objecções que tenha tido que enfrentar.
Infelizmente, Francisco também
contradisse toda a tradição cristã durante o seu encontro com Cirilo, quando
disse que todas as guerras são injustas. Na semana passada acrescentou, durante
uma conversa com um grupo de organizações de mulheres, que “fiquei envergonhado
quando li que um grupo de estados se comprometeu a gastar dois por cento do PIB
na aquisição de armamento, em resposta ao que se está a passar agora. É
loucura”, disse, lamentando “a velha lógica de poder que continua a dominar a
chamada geopolítica”.
É verdade que sim, e assim
continuará a ser enquanto os seres humanos decaídos continuarem a existir no planeta.
E é por isso que algumas potências – histórica e moralmente imperfeitas –
devem, por vezes, impedir que os mais impiedosos de entre nós dominem o mundo.
Quando as nações decidem
aumentar os seus orçamentos de defesa, à luz de ameaças que enfrentam, não se
trata de “loucura”. Diante de uma Rússia agressiva, os líderes políticos estão
apenas a ser responsáveis quando decidem robustecer a defesa nacional. A
decisão peca é por tardia.
Francisco parece pensar que a
única resposta cristã permissível perante uma ameaça é o “diálogo” e não a
dissuasão. Pode-se entender o seu horror pela guerra sem aceitar essa premissa.
O diálogo não nos trouxe sequer o entendimento religioso com Cirilo. Estou
certo de que Putin adoraria ver diálogo, diálogo infindável – nas igrejas, na
NATO, na política americana – enquanto ele continua a atacar uma nação atrás da
outra.
Os ucranianos têm uma opinião
diferente. É por isso que continuam de pé, e a Rússia teve de se contentar com
ambições menores na Ucrânia.
A queda da União Soviética
abriu algumas possibilidades – tanto para as Igrejas como para a Rússia. A
Igreja Ortodoxa da Rússia – a maior das ortodoxas – foi perseguida e
comprometida pelo comunismo. Na sua colaboração – ou possivelmente mesmo
trabalho activo – com a KGB, Cirilo desempenhou um papel vergonhoso nessa
pérfida aliança.
Agora voltou a comprometer-se,
alienando a maioria dos ortodoxos na Ucrânia enquanto abençoa os massacres de
Putin. Nestas circunstâncias é difícil imaginar como é que Moscovo continuará a
ser parte de qualquer diálogo ecuménico no futuro, ou sequer como é que a
Igreja Ortodoxa Russa permanecerá intacta.
O Grande Cisma de 1054 entre a
Igreja Ocidental e os Ortodoxos já foi há quase um milénio, e é tanto mais
doloroso porque – independentemente das questões como o Filioque – deveu-se
sobretudo a questões de jurisdição e de administração. A Igreja Católica não
reconhece apenas como válidas as ordens e os sacramentos ortodoxos, mas também
as ricas tradições litúrgicas e espirituais do Oriente, que devem ser
integradas numa Igreja global e universal.
O próprio Cristo rezou por uma
unidade eclesial semelhante à que ele tinha com o Pai. Os cristãos não têm tido
muito jeito nesse campo importante mas desafiante. (João: 17,21)
Na sua encíclica de 1995 Ut
Unum Sint (Que sejam um só), o Papa São João Paulo II falou de um
verdadeiro ecumenismo – não a coisa sentimentalista e mole que vemos
frequentemente nas discussões ecuménicas no ocidente – enraizado na realidade
histórica e substância espiritual do Oriente e do Ocidente:
a Igreja deve respirar com
os seus dois pulmões! No primeiro milénio da história do cristianismo, essa
frase referia-se sobretudo ao binómio Bizâncio-Roma; desde o baptismo da Rus'
para a frente, ela vê alargarem-se os seus confins: a evangelização estendeu-se
a um âmbito muito mais vasto, a ponto de abraçar praticamente a Igreja inteira.
Se se considera ainda que esse acontecimento salvífico, verificado ao longo das
margens do Dniepre, remonta a uma época em que a Igreja no Oriente e no
Ocidente não estava dividida, compreende-se claramente como a perspectiva a
seguir para a plena comunhão, seja aquela da unidade na legítima diversidade.
Também o Papa Francisco tem
falado de unidade sem uniformidade. O seu desafio, de agora em diante, será pôr
isso em prática dentro da Igreja Ocidental. A janela para o Oriente está, por
ora, fechada.
Robert Royal é editor de The Catholic Thing e
presidente do Faith and Reason Institute em Washington D.C. O seu mais recente
livro é A Deeper Vision: The Catholic
Intellectual Tradition in the Twentieth Century, da Ignatius Press. The God That Did Not Fail: How
Religion Built and Sustains the West está também disponível pela Encounter
Books.
(Publicado pela primeira vez
em The Catholic Thing na Segunda-feira, 28 de Março de
2022)
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