Wednesday 23 August 2023

Colaboração formal e material com o mal

Recentemente surgiu numa conversa a questão da colaboração formal ou material com o mal. O meu interlocutor ficou desconcertado quando eu exprimi uma certa relutância em relação ao assunto. Não é esta uma distinção comum na teologia moral? Porque não havemos de a usar?

Sugeri-lhe que lesse o livro Cooperation with Evil: Thomistic Tools of Analysis do Pe Kevin Flannery para perceber que as origens dessa distinção são pouco claras e a sua aplicação a casos específicos é contenciosa.

O caso mais clássico (muitas vezes discutido e alvo de muita discordância) envolve um servo a quem é dito que deve carregar um escadote que o seu senhor pretende utilizar para subir a uma janela para cometer adultério com a senhora da casa. Toda a gente concordava (pelo menos nessa altura, se não agora) que o adultério é um mal e um pecado, a questão em causa era o grau da colaboração do servo com o mal. Seria essa colaboração “formal” ou “material”? Os casuístas discordavam, mas as opiniões também variavam consoante os detalhes.

O servo sabia que era isso que o seu senhor tencionava fazer? Sabia e concordava com o plano? Ou sabia e estava resistente? Estava resistente e tentou convencer o seu senhor a desistir do plano? Ou estava resistente, mas não disse nada?

Ou será que não sabia do plano, mas devia ter sabido, sobretudo à medida que se aproximavam da casa? Nessa altura deveria ter-se questionado sobre se o mestre pretendia cometer algum mal? A sua ignorância era culpável ou não culpável?

Poderíamos dizer que a sua intenção era simplesmente de ajudar o seu senhor e evitar ser castigado, mas não de ajudar o homem a cometer adultério, sendo que nesse caso o adultério seria praeter intentionem (não intencional) – um resultado previsível, mas não desejado – inocentando-o de qualquer culpa?

Talvez agora se perceba porque é que estas questões deram cabo da cabeça dos teólogos morais durante séculos, como ainda acontece, aliás, embora com exemplos contemporâneos. Se um homem utiliza contraceptivos com o objectivo de evitar contagiar a sua mulher com HIV, e ela consente, estão os dois isentos de culpa?

Eu não tenho nenhuma sabedoria especial a partilhar sobre como desenvencilhar estes nós intelectuais de forma universalmente satisfatória. Apenas quero explicar porque é que acho que não é aconselhável seguir por esta via. A confusão gerada por este tipo de linha de pensamento é uma razão, mas outra é o facto de que esta abordagem conduz as pessoas a pensar sobre o quão longe podem ir, em vez de pensarem no bem que podem e devem fazer. Começam a regatear em vez de resolverem-se a fazer o que podem.

Pensemos num exemplo mais actual, que não é de mais fácil resolução e sobre o qual pode igualmente haver dificuldades e desacordos semelhantes. Digamos que eu tenho acções de uma empresa, pode ser directamente, ou pode ser através de um fundo. Agora, digamos que esta empresa (a) apoia o aborto; ou (b) abusa das suas empregadas; ou (c) não paga um salário justo aos seus empregados. É só escolher.

Não se trata de ser conservador ou progressista. A minha colaboração com o mal que a empresa está a cometer não é apenas “material”? Sendo assim não preciso de vender as acções, e posso continuar a receber os lucros?


Quando ponho a questão desta forma a primeira pergunta que me costuma fazer é: “E se eu não souber o que a empresa está a fazer?” Ao que respondo com a pergunta: “É sua responsabilidade saber?” E a resposta costuma ser: “A maioria das pessoas não sabe”. Mas isso não é um argumento, é uma admissão.

Mas as pessoas pensam: Se a minha colaboração for meramente “material”, faria diferença eu saber? Eu até posso saber que algum do aço fabricado pela minha empresa é usada em clínicas de aborto, mas isso torna a minha colaboração formal ou apenas material?

E se a minha intenção for de sustentar a minha família, mas não apoiar o aborto? Isso altera a moralidade ou a imoralidade de possuir aquelas acções? Bom, consideremos isto: Se a intenção do guarda alemão em Auschwitz for de sustentar a sua família, isso iliba-o de qualquer culpa?

Não tenho qualquer sabedoria salomónica para convencer toda a gente sobre essa questão. A minha preocupação é que em vez de perguntar “Que bem posso e devo fazer no mundo, ainda que isso implique sacrifício da minha parte?” estamos a perguntar: “Até onde posso ir sem ser culpável ou culpado?” Parece-me que a primeira é a questão que devíamos estar a colocar; a segunda é o caminho para a perdição.

Muitas vezes a chave está na forma como a pergunta é colocada. Assim, por exemplo, no caso do servo com o escadote, em vez de perguntar se isto seria colaboração “formal” ou “material”, poderíamos estar a perguntar o que queríamos que esta pessoa, com o seu escadote, fizesse caso fosse o marido daquela mulher, ou a própria mulher, num momento mais lúcido. Talvez pensasse assim: A regra é “faz aos outros o que gostarias que fizessem a ti”. A essa luz, como devo agir? O que devia fazer?

Ou então poderia perguntar-se: “O que é que Deus quereria que eu fizesse? Se Cristo aparecesse neste preciso momento e me encontrasse com este escadote, eu ficaria envergonhado? Seria capaz de o olhar nos olhos e tecer argumentos sobre colaboração formal e material?”

Nem sempre será possível evitarmos a colaboração com o mal, mas isso faz parte da vida num mundo decaído. Algumas das traves de aço que são usadas para fazer igrejas são também usadas para a construção de clínicas de aborto. É inevitável que haja alguma colaboração com o mal.

Mas não deveríamos fazer tudo ao nosso alcance para resistir ao mal e tornarmo-nos, na medida do possível, instrumentos do amor e da luz de Deus, brilhando na escuridão? Não estou a sugerir que eu sou um instrumento desses – longe disso – apenas digo que acho que seria melhor se todos fôssemos.

Por isso, embora as categorias da colaboração formal e material tenham o seu lugar, essa talvez não seja sempre a melhor forma de começar a pensar nas decisões morais que temos de tomar nas nossas vidas.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 22 de Agosto de 2023)

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