Transcrição integral da minha entrevista ao seminarista "Santiago" de nacionalidade chinesa. A identidade verdadeira é mantida em segredo por questões de segurança. As fotos usadas para ilustrar a entrevista são genéricas de católicos chineses e nada têm a ver directamente com ele.
A reportagem pode ser lida aqui.
Nasceu numa
família católica? Ou converteu-se?
Sim, nasci numa família católica, eramos cinco irmãos.
Disse cinco
irmãos?
Sim, cinco irmãos.
Como é que isso
foi possível? Na China não havia a lei do filho único?
Sim. Para nós foi uma experiência de fé. Porque a lei
começou nos anos 80, mais ou menos quando eu nasci, e então, segundo esta lei
os pais católicos sofriam muito para poderem ter mais filhos, porque para nós o
aborto é impensável, é matar uma criança com alma e corpo, por isso, para os
pais católicos, os filhos não nascidos também são vida. Por isso os meus pais,
para evitar isso, tiveram muitas vezes que viver escondidos, separados de nós,
deixando-nos sozinhos em casa, viviam escondidos para fugir à polícia.
Porque durante muitos anos, se a polícia os encontrasse
podia cobrar uma multa ou, se a mulher ainda estivesse grávida, podia levá-la a
uma clínica e obrigá-la a abortar. Ou tirar-nos tudo o que temos em casa,
destruir a casa. Foram situações difíceis, mas a fé ajudou-nos e sustentou-nos
sempre para viver firmes.
Há quantas
gerações é que a sua família é católica?
Isso não se sabe. Como não temos um livro das gerações da
família, mas segundo o que sei os meus pais, os meus avós, todos são católicos.
Pelo menos
terceira geração, possivelmente mais...
Sim.
Como é actualmente
ser católico na China?
Há muito tempo que a Igreja não tem a liberdade de viver
a fé, por isso hoje em dia não é fácil ser católico. Sobretudo ser padre ou
bispo é muito complicado, porque o Governo tenta sempre convencê-los a
juntarem-se à Igreja Patriótica, então se não o querem fazer podem sofrer
muitas dificuldades.
No seu caso, qual
é a relação com a Associação Patriótica Católica?
Creio que a primeira coisa a fazer é evitar isso, ter
cuidado quando vou a algum lado, porque se não, muitas vezes podem-nos
complicar a vida. Eu, pessoalmente, não quero ter relações nenhumas com eles,
porque também sei por experiência que não é nada fácil ter uma relação com
eles, porque temos de submeter-nos ao que eles dizem.
O seu bispo, por
exemplo, é reconhecido?
Não. Até hoje ele tem-se mantido sempre firme na fé.
Porque para ele, ser um bispo da Igreja Católica é ser fiel à doutrina da
Igreja. Por exemplo, estar em plena comunhão com o Papa e exercer o seu
ministério segundo a doutrina que a Igreja nos ensina, obedecer ao Papa e ter
consciência da universalidade da Igreja.
Como é que veio
parar à Europa?
Vim para receber formação, porque durante muitos anos,
como todos os padres e bispos foram enviados para campos de trabalho,
trabalhavam todos os dias, quase sem nada para comer... Foi assim durante
trinta anos e não havia formação, nem para os fiéis nem para os padres.
Ao fim de 30 anos houve uma certa abertura e então os
padres já podem receber uma certa formação. Mas como a formação é mínima, para receber
uma boa formação é necessário um estudo sólido na doutrina, por isso fui
enviado para a Europa para estudar um pouco. Fiz o seminário em Toledo, em
Espanha, e agora estou a estudar em Roma. Quando terminar os estudos
regressarei para servir a Igreja e ajudar um bocado, sobretudo na formação.
O que disseram às
autoridades sobre a razão da vinda?
É complicado. O Governo dá-nos o passaporte, mas o visto
é feito nas embaixadas. Foi muito difícil conseguir o passaporte porque quando
fui à polícia pedir diziam que não me iam dar, porque era católico. Foi assim
durante cerca de três meses.
Mas pela graça de Deus - e eu vejo aí uma clara
intervenção de Deus - em 2008 houve os Jogos Olímpicos e durante algum tempo
todos podiam receber o passaporte. Aí, o visto era o mais fácil.
Se o Governo soubesse que eu vinha estudar, seguramente
não me deixaria vir. Mas graças a Deus estou aqui.
Quando chegaste à
Europa não falavas espanhol, não conhecias a Europa, como foi a integração?
Quando cheguei a Espanha comecei imediatamente os estudos
no seminário. Os primeiros anos, sobretudo, de Filosofia, foram muito difíceis
porque até para um nativo as coisas são complicadas de entender. Mas eu
estudava muito mais que os meus colegas... Muitas vezes nas aulas eu perguntava
aos colegas se percebiam o que tinha dito o professor, e também respondiam que
não.
Mas isso para mim também foi uma experiência, que quando
fazemos a nossa parte o Senhor nos ajuda, seja como for. É difícil? Sim, mas
pela Graça de Deus tudo é possível e o Senhor nos ajuda.
A perseguição aos
católicos que não obedecem à APC existe em todo o país, ou é diferente de
região para região?
Sim. China é um país muito grande. A lei é a mesma, mas a
aplicação varia de zona para zona. Nalgumas zonas há mais católicos, se os
bispos forem da Igreja Clandestina então a situação pode ser mais difícil...
Depende das zonas.
Alguns bispos,
como por exemplo em Hong Kong, defendem que não se deve negociar com a China,
que é preciso ser duro e exigir apenas a liberdade total dos católicos. Outros,
e parece ser essa a linha actual do Vaticano, parecem dispostos a negociar e a
aceitar algumas das condições do Governo. Qual é a sua opinião?
Em primeiro lugar, temos a consciência de que o Vaticano
quer dialogar com o Governo. Isso é seguramente para o bem das almas e da
Igreja, para poder evangelizar os que não conhecem Cristo, porque actualmente
os católicos são apenas 1%. Isso, sem dúvida alguma.
Este diálogo não é nada fácil, porque como temos um
regime totalitário e não existe liberdade religiosa nem direitos humanos, e
como diz o Cardeal Zen, temos de ser firmes, sem dúvida, porque temos alguns
princípios na Igreja. A Igreja Católica é universal, logo respeitamos os
direitos humanos e a liberdade religiosa. A Igreja não considera que sejam um
privilégio, mas sim direitos naturais das pessoas. Sim, temos de ser firmes...
Não podemos abandonar as nossas crenças.
Pessoalmente acho difícil, mas também confiamos no
Senhor, porque Ele pode fazer grandes coisas. Pela minha experiência, e segundo
o que vejo, não é fácil. O que o Vaticano está a tentar fazer é seguramente
para o bem da Igreja. Na prática, como estão a dialogar há tantos anos e o
resultado, segundo o que eu vejo, não tem sido praticamente nenhum.
Conseguiram-se algumas coisas simples, mas isso não é o problema de fundo. O
mais importante tem a ver com a nomeação dos bispos, quem decide as coisas da
Igreja e isso está a ser negociado. É complicado...
Disse antes que os
católicos são 1%, mas há muitos cristãos não católicos. Sabemos que as Igrejas
domésticas estão a crescer muito... Vocês vêem esses cristãos como aliados ou
adversários?
Eles também são cristãos, têm a sua fé! É uma coisa boa,
porque eles também vivem a sua fé e tentam evangelizar os outros para que possam
conhecer Cristo, é uma coisa positiva. E para nós, católicos, são um exemplo,
porque eles estão a fazer muitos sacrifícios. Os protestantes também são
perseguidos, quando não se querem submeter ao regime não podem viver a fé com
liberdade, não podem anunciar o nome de Cristo com liberdade.
É o que se passa com os católicos também, mas temos esta
dificuldade acrescida da Igreja Oficial e a Igreja Clandestina, todo o diálogo
envolvido, tudo isso complica um bocado.
Mas creio que todos, com a graça de Deus, podemos ajudar
os nossos irmãos para que eles também conheçam Cristo, porque Cristo é o único
salvador do mundo.
Há muitas
histórias de perseguição, mas há histórias mais próximas de si?
Sim. Por exemplo o meu avô - isto foi-nos contado, mas
segundo a cultura chinesa, somos bastante fechados. Quando uma coisa já passou,
não falamos sobre ela entre nós - mas segundo o que me foi contado do meu avô,
quando era novo e o meu pai tinha uns 15 ou 16 anos, como a situação era muito
difícil, sobretudo durante os dez anos da Revolução Cultural, como não se podia
dizer que se era católico nem se podia rezar, porque se a polícia os visse a
rezar podiam condená-los a passar muito tempo na prisão.
Naquela altura em cada povoação faziam reuniões em que
perguntavam aos católicos se queriam deixar a fé ou não, ou então perguntavam
"quem é bom? Deus, ou o Governo?" Quando chegou a sua vez, o meu avô
disse "Deus é bom". Só por isto começaram a persegui-lo. Não só uma
vez, mas todos os dias, porque ele tinha dito que Deus é bom, porque segundo a
sua consciência era assim, e ele o declarou.
Então todos os dias faziam a reunião para o criticar,
para insultá-lo e no final, como humanamente - todos somos seres humanos - ele,
para não negar a fé, pegou no meu pai e disse-lhe que como agora estavam a
fazer-lhes isto todos os dias, a persegui-los, e quem sabe se um dia, por
fraqueza podemos negar a fé, então levava o meu pai e fugiram para não negar a
fé. Disse: "Vamos para a montanha e levamos alguma comida. Quando acabar a
comida morremos, mas não negamos a fé". Isso, para mim, é um exemplo,
porque para manter a firmeza da fé, está disposto a dar a vida. É um exemplo,
há muitos outros, mas isso para nós sempre nos deu força para viver mais
firmemente a nossa fé.
Mas há também
histórias de conversão?
Sim. Há histórias de conversões porque quando eles vêem a
força que os católicos têm, dizem que tem de haver algo de sobrenatural, porque
humanamente ninguém consegue aguentar aquilo. Pessoalmente não conheci
conversões tão claras e fortes, mas seguramente na vida quotidiana há muitos
que vendo os exemplos dos católicos, pelo menos no seu interior deixam-se
impressionar e isso pode ajudá-los a perceber qual é o sentido da vida.