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David F. Forte |
Em breve saberemos se o
rascunho da sentença de Samuel Alito no caso Dobbs v. Jackson Women’s Health
Organization sobrevive enquanto opinião maioritária e ganha força de lei. Aconteça
o que acontecer, o rascunho de Alito permanecerá como uma das maiores e mais
corajosas decisões alguma fez redigidas por um juiz do Supremo Tribunal. É um
documento purificador, que limpa muitos dos argumentos pretensiosos e errados feitos
pelo Tribunal no passado.
A opinião é profética – no sentido
clássico do termo. Frequentemente usamos a palavra profecia como sinónimo da
previsão do futuro. Mas na Escritura os profetas não eram principalmente
videntes, embora alguns emitissem avisos sobre o que aí vinha (Jonas ao povo de
Nínive), ou afirmações sobre as coisas grandes e boas que Deus preparou (Isaías
sobre a vinda do Messias).
O profeta não é, por isso, um
leitor de sinas, mas aquele que diz a verdade. Ele dirige-se àqueles que se
encontram apaixonados pelo seu próprio poder, tão envolvidos pela sua própria
vontade ilimitada que cometem pecados graves. Foi nesse tom que Natã falou a
David, que Eliseu desafiou Acab, Ester expôs Hamã e João Baptista condenou
Herodes. Por sua parte, Alito expõe (de forma mal-educada, segundo os seus críticos)
a sobranceria de Harry Blackmun, autor da sentença Roe v. Wade, que não só
inventou um “direito” que não tem qualquer base na história ou na Constituição,
mas apresenta também uma análise da gravidez que não tem lógica interna nem
qualquer relação com a realidade médica.
Nas Escrituras os profetas não
eram conhecidos pela sua linguagem polida. As palavras de Eliseu eram “como uma
fornalha ardente”. De igual modo, o juiz Samuel Alito há muito que é conhecido
por expor os factos por detrás de um caso, por mais feios ou chocantes que
possam ser.
Em Stevens v. United States,
por exemplo, na qualidade de único dissidente, Alito descreveu os gritos aflitos
de um gatinho a ser morto num vídeo pornográfico “crush”*, apesar de a maioria
ter revogado a lei do congresso que proíbe tais vídeos, com base na Primeira
Emenda da Constituição.
Em Brown v. Enterntainment
Merchants Association falou de jogos de computador em que:
Dezenas de
vítimas são mortas com qualquer utensílio imaginável, incluindo metralhadoras,
caçadeiras, bastões, martelos, machados, espadas e motosserras. As vítimas são
desmembradas, decapitadas, esventradas, imoladas e cortadas aos pedaços. Gritam
em agonia e imploram por misericórdia. O sangue escorre, salpica e acumula.
Partes de corpo decepadas e pedaços de restos mortais são exibidos de forma
gráfica.
O Tribunal acabou por abolir
uma lei que proibia a venda de tais jogos a menores e Alito votou com a
maioria, mas apenas porque uma parte da lei era pouco clara.
E em Snyder v. Phelps
protestou contra a protecção que a maioria decidiu dar a manifestantes em enterros
de soldados mortos em combate, com cartazes como “Deus odeia-te”, “Vais para o
Inferno”, “Deus odeia maricas” e “Maricas condenam nações”.
Mais do que qualquer outro
juiz de memória recente – certamente mais do que o juiz Antonin Scalia – Alito condena
o mal moral que é causado por raciocínios judiciais desnecessariamente rígidos:
o mal moral da crueldade cometida contra animais, de permitir a jovens que se
mascarem de assassinos em série, de permitir que pessoas maliciosas transformem
a dor de um pai enlutado em agonia ou, no caso de United States v. Alvarez, de deixar
que alguém roube a honra de heróis caídos, fingindo ser detentor de uma Medalha
de Honra.
Referindo-se ao aborto como “uma
questão moral profunda”, Alito volta a ir à essência do propósito da lei.
Em Dobbs, o tom de Alito
deve-se à sua discordância com muitos dos seus colegas que desprezaram a sua
vocação em nome do poder, chegando a consagrar esse mesmo poder em fórmulas
solipsistas como a “passagem mistério” do juiz Kennedy**.
Alito “endireita as sendas” até
à verdade, descartando pelo caminho os falsos ídolos que o Tribunal ergueu para
justificar o direito a matar o inocente, e – por isso – ferindo gravemente o
próprio Tribunal e dividindo a nação em facções ferozmente opostas.
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Samnuel Alito |
Não deixa nenhuma falsidade por
revelar:
• A análise da história do
aborto em Roe “varia entre o constitucionalmente irrelevante (…) e o simplesmente
incorrecto”. De facto, a história revela que o aborto sempre foi tratado na lei
como algum tipo de mal.
• “A Constituição não faz qualquer
referência ao aborto, e tal direito não está implicitamente protegido por
qualquer provisão constitucional”.
• A sentença maioritária em Planned
Parenthood v. Casey modificou muito a sentença de Roe, enquanto afirmava,
contraditoriamente, que estava a sustentá-la.
• “Roe estava profundamente
errada desde início. A sua lógica era excepcionalmente fraca e a sentença tem
tido consequências danosas”.
• Em vez de pôr fim à
discussão, como o Tribunal presunçosamente afirmava, a sentença Roe v. Wade “inflamou”
a questão e tornou-a ainda mais “amargamente divisiva”.
• Não existe direito de igualdade
de protecção ao aborto, uma vez que a regulamentação do aborto não é uma classificação
feita com base no sexo.
• A regra do respeito pelos precedentes
não justifica manter esta sentença tão profundamente cheia de falhas.
• O conceito de viabilidade fetal
é indeterminado e “nada tem a ver com o estatuto de um feto”.
• A questão essencial a tratar
pelo legislador é saber se está em causa um ser humano. Nenhum dos precedentes
citados pelo lado contrário toca nesta questão.
O juiz Alito conseguiu separar
o trigo do joio. Mas um profeta não é um líder, um juiz não é um legislador.
Não lhe cabe, em sua opinião, fazer a travessia para a terra prometida onde a
vida intrauterina é protegida por lei. O seu sentido de vocação impele-o a
ficar do seu lado do rio, mas indica o caminho para os Estados e para o povo.
Os legisladores, diz ele, só
precisam de dar um passo racional para proteger aqueles bens morais que são do
mais elementar senso comum:
respeito por, e protecção de,
vida prenatal em todos os estágios de desenvolvimento; a protecção da saúde e
segurança materna, a eliminação de procedimentos médicos particularmente
grotescos ou bárbaros; a preservação da integridade da profissão médica; a
mitigação da dor fetal; e a prevenção da discriminação com base em raça, sexo
ou deficiência.
Se a opinião de Alito se
tornar lei, como é que os americanos vão responder ao seu desafio? Alguns farão
certamente como David fez com Natã, e escutá-lo-ão. Outros, como Herodes,
tentarão cortar a cabeça ao profeta.
* Se, como eu, não fazia ideia
o que é um filme “crush”, este
artigo faz uma descrição bastante simples e, felizmente, não gráfica [NT].
** Refere-se a uma expressão que
ficou conhecida na decisão Planned Parenthood v. Casey, em que o juiz Anthony Kennedy
escreveu: “No cerne da Liberdade está o direito a definir o nosso próprio
conceito de existência, de sentido, do universo e do mistério da vida humana”.
Esta passagem tem sido ridicularizada desde então por conservadores, tendo sido
definida por um como “jurisprudência new age” [NT].
David Forte é Professor
Emérito na Universidade Estadual de Cleveland e faz parte do Conselho de
Académicos na James Wilson Institute.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Terça-feira, 21 de Junho de 2022)
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