O incidente com o
jornal Charlie Hebdo chocou-nos a todos e gerou uma onda de solidariedade por
todo o mundo, mas também fez sair cá para fora os lugares-comuns de sempre, que
em nada contribuem para o debate.
Começo com um que
ouvi esta manhã de um respeitado comentador de assuntos internacionais, quando
questionado sobre a importância da religião neste fenómeno do terrorismo.
Resposta pronta: “Isto não tem nada a
ver com a religião! Isto é terrorismo puro”.
Desculpa? Um
grupo de homens que se identificam acima de tudo como muçulmanos atacam um
jornal conhecido por gozar com a sua religião (entre outras), gritando palavras
de ordem como “Deus é Grande” e “Vingámos o profeta” e isso não tem nada a ver
com religião?
No dia seguinte
outro homem que se identifica como
muçulmano mata a tiro uma mulher polícia e, passadas 24 horas, entra numa loja judaica
de produtos kosher onde faz reféns, e isto não tem nada a ver com religião?
Uma coisa é
discutir se estes homens e os seus actos são verdadeiramente representativos da
religião que dizem professar, (já lá vamos), mas dizer que isto não tem nada a
ver com religião é absurdo. Claro que tem tudo a ver com religião. Pode haver
outros assuntos à mistura, não nego. Pode ter a ver com imigração, com
políticas de integração, com racismo, com muita coisa. A Ana Gomes até acha que
a culpa é da austeridade... mas não me venham dizer que não tem nada a ver com
religião.
Nunca é demais
repetí-lo: A religião é um fenómeno potentíssimo, no sentido em que move o ser
humano a fazer coisas de grande dimensão. Para o bem, como felizmente vemos
tantas vezes em tantas pessoas fantásticas que se dão inteiramente para ajudar
os seus irmãos e vizinhos, mas também para o mal, como já vimos muitas vezes na
história e vimos por estes dias em Paris.
“Isto não é o verdadeiro Islão”
Antes de mais
convém ver quem é que está a dizer isto.
Se for o Sheikh
David Munir, como muitas vezes o faz, é uma coisa. Ele é uma autoridade na
comunidade islâmica, é um conhecedor do Islão e um líder muçulmano com um longo
passado de participação civil e em actos de diálogo inter-religioso. Podemos
discutir com ele se tem razão ou não, mas aceito a autoridade que ele tem para
dizer que o que aqueles dois irmãos fizeram não é representativo do verdadeiro
Islão.
O que não aceito
é que o Zé da Esquina, que aparece como convidado para falar no telejornal, mas
sabe tanto sobre o Islão como eu sei sobre física quântica, diga que isto, ou
qualquer outra coisa, é representativo do verdadeiro islão. Como não aceito que
o diga o Obama ou o Cameron, ou o Passos Coelho, ou sequer o o Papa Francisco.
Não é
representativo porquê? Acaso eles se consideram mais conhecedores dos
ensinamentos islâmicos que os pregadores que radicalizaram estes e tantos
outros terroristas? Sabem recitar o Alcorão? Sabem explicar as suas passagens?
Sabem explicar as incongruências que existem no texto?
Não é o
verdadeiro Islão porquê? Porque não vos apetece? Porque é politicamente
correcto dizê-lo? Porque ouviram o Sheikh David Munir a dizê-lo? É que se for
esse o caso então citem-no, mas não falem como se tivessem um pingo de
autoridade para estar a dizer a dois muçulmanos qual deles é que é verdadeiro e
qual é que é falso.
Eu não sei se
isto é o verdadeiro Islão ou não. O que sei é que neste momento há uma divisão
no interior do Islão (uma de muitas), entre as pessoas que acham que sim e as
que acham que não.É um problema, e é grave, seria ingénuo negá-lo. É uma questão que mundo muçulmano tem de enfrentar e tem de
tentar resolver. É um debate que tem de se travar a nível teológico e a nível
filosófico, e não com slogans e frases bonitas. Não basta catalogar uma
corrente como não-islâmica e esperar que desapareça. Não vai desaparecer.
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Verdadeira muçulmana, ou enganada? |
“O Islão é isto mesmo”
Aqui aplica-se
exactamente a mesma lógica, mas ao contrário. É isto mesmo, por alma de quem? Porque
vêem alguns muçulmanos a comportarem-se assim? Então os milhares que vivem
pacificamente, que defendem os seus vizinhos cristãos, que pagam impostos e não
sonhariam olhar de lado para um polícia, quanto mais matá-lo a sangue frio...
estão enganados?
Também aqui, não
reconheço a 99% das pessoas que o dizem qualquer autoridade para o fazerem.
Claro que podem ter a sua opinião, mas ninguém é obrigado a dar-lhes
importância.
Mas esta frase
tem uma agravante. É que enquanto a anterior corre o risco de ser demasiado
ingénua, não é uma particular ameaça. Esta, pelo contrário, incita à divisão
social e ao ódio e, acima de tudo, só pode servir para radicalizar ainda mais
os muçulmanos que a ouvem.
Estes terroristas
que atacaram o Charlie Hebdo odeiam-nos. Não odeiam só os que fazem caricaturas
de Maomé, odeiam-nos a todos, as nossas religiões, o nosso estilo de vida, a
nossa maneira de vestir, os nossos hábitos, a nossa democracia, os nossos
valores, os nossos direitos. A pior coisa que podemos fazer, em resposta aos
seus ataques, é incentivar divisão social e purgas que, levadas ao extremo,
representam precisamente o mesmo que eles querem: separação, ausência de
direitos e liberdades, morte e terror.
Então não podemos dizer nada?
Eu sei que custa
muito, hoje em dia, assumirmos que não temos certezas, mas é um exercício de
humildade que nos fica bem. Quando me pedem a opinião sobre estes assuntos eu digo
sempre que não sei. Os terroristas e o Estado Islâmico representam o verdadeiros
Islão? Ou são os Sheikhs David Munir e os milhares de muçulmanos, como é o caso
em Portugal, que vivem a sua vida em paz, contribuem para a sociedade e não
chateiam ninguém?
Não sei. Não sou
muçulmano e por isso não tenho nada que opinar sobre isso, da mesma maneira que
acharia de uma tremenda arrogância o Sheikh David Munir ou outro qualquer vir
opinar sobre quem representa o verdadeiro Cristianismo, os católicos liberais,
ou os conservadores, ou os protestantes, ou os lefebvrianos.
O que posso dizer
é que sei muito bem de quais gosto mais! Disso não há a menor dúvida. Posso
dizer que independentemente de quem tem razão nesse debate teológico interno,
eu preferia sentar-me à mesma mesa com alguém da linha do Sheikh David Munir do
que com alguém que abraça os ideias dos jihadistas. E isso já não é coisa
pouca, a meu ver.
Porque aquilo que
eu amo sobre a nossa sociedade e os nossos valores não são as caricaturas
nojentas que jornais como o Charlie Hebdo tanto gostam de publicar, são os
valores que permitem que eles o façam e que ao mesmo tempo protegem a minha
liberdade de dizer que não os quero ler, não os acho piada e não quero ter nada
a ver com eles. Os valores que eu amo são os que me permitem sentar à mesma
mesa que um muçulmano e partir pão com ele e discutir com ele temas do Céu e da
Terra, de vida ou de morte, em paz. A salvaguarda desta realidade é algo que é
muito mais importante, nesta altura, do que a repetição de frases politicamente
correctas, mas racionalmente ocas.