Wednesday 31 January 2024

Como quem tem autoridade

O Evangelho do passado domingo (Marcos 1, 21-28) diz-nos que as pessoas ficaram “admiradas” e “espantadas”.

“Ficaram muito espantados e perguntavam uns aos outros: ‘O que é isto?

Um ensinamento novo dado com autoridade: Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem!’” Não devemos simplesmente passar por cima deste espanto e admiração, como se isso fosse apenas Jesus a ser Jesus, antes devíamos pensar no que o causou.

A autoridade está no centro da vida e da missão do Senhor, e está também no centro dos seus conflitos com os líderes de Israel. A legitimidade da sua vida pública – e, na verdade, da sua própria Pessoa – resume-se a esta simples questão: “Com que autoridade fazes estas coisas, ou quem te dá autoridade para as fazer?” (Marcos 11,28).

Os chefes dos sacerdotes, escribas e anciãos fazem essa pergunta no final da vida pública de Jesus. Mas a questão estava na ordem do dia desde o início. Logo no princípio do seu ministério na Galileia, sob o olhar crítico dos escribas e dos fariseus, Jesus curou um paralítico, demonstrando que “o Filho do Homem tem a autoridade de perdoar os pecados na terra” (Marcos 2, 10). Isto é, tem autoridade divina.

No Evangelho de João, o seu ministério público começa com a questão da sua autoridade sob o Templo. “Que sinal nos dás para fazer isto?” (João 2,18). Em resposta, Jesus estabelece a prova que será dada, a prova de que tem autoridade até sobre o Templo. “Destruí este templo, e em três dias eu o reedificarei” (João 2, 19). Assim, promete a sua ressurreição como prova da sua autoridade divina.

Com que autoridade? Essa é a questão central. Hoje, um ouvido moderno entenderá isto como uma pergunta retórica que descarta a própria noção de autoridade. Mas, pelo contrário, os contemporâneos de Nosso Senhor apreciavam a realidade da autoridade, ainda que abusassem dela (como acontece com os homens em todas as idades). Eles compreendiam que existe uma autoridade divina e uma autoridade terrena. Tinham era dificuldade em acreditar que o carpinteiro de Nazaré a possuía. 

Também não devemos pensar na autoridade de Cristo como algo que Ele meramente possui (como se de alguma forma fosse possível não a possuir). A razão pela qual é central para a sua missão e vida pública é porque faz parte dele, parte do seu ser Filho de Deus. Ele é a Palavra de autoridade de Deus, o autor de todas as coisas, e revela o Pai, com autoridade e autenticidade, porque está eternamente no seio do Pai.

Isto também aponta para o propósito da autoridade de Cristo. Ela está ordenada para o nosso bem, que no final de contas é a reconciliação com o Pai. Como vemos na sinagoga em Cafarnaum, Jesus exerce a sua autoridade para ensinar e para curar; para comunicar verdade e graça. Verdade para iluminar e graça para santificar. A maior verdade que comunica é a revelação de Deus enquanto Pai, e de Ele mesmo enquanto Filho eterno. A maior graça que comunica é ter parte na vida do Pai, tornando-nos “participantes da natureza divina” (2 Pedro 1, 4).

Tal como Jesus recebe a sua autoridade do Pai, também concede à Igreja uma participação na sua autoridade. “Como o Pai me enviou, eu vos envio” (João 20,21). A Igreja existe enquanto presença contínua de Cristo que comunica o duplo dom de verdade e graça. Ela ensina com autoridade, como a voz autêntica de Cristo a ecoar do seio do Pai ao longo da História, por todo o mundo. Ela comunica a graça de Cristo que expulsa os demónios, liberta as almas do domínio do mal e as imbui da sua própria vida.

A realidade e a gravidade da autoridade da Igreja deveriam humilhar os seus pastores, que a exercem em nome de Cristo. O seu dever não é o de reinterpretar o Evangelho, ou de mudar paradigmas, mas de transmitir fielmente a verdade e a graça que vêm do Pai.

Um dos frutos mais nefastos do pensamento moderno é a confusão de autoridade com poder, levando-nos a crer que tudo não passa de um golpe de poder. Assim, quem possui autoridade é por isso mesmo um opressor. A autoridade é sempre autoritária. Logo, a autoridade das instituições e do próprio passado devem ser desmantelados, por não passar de um instrumento dos opressores.

Como todas as revoluções, esta contra a autoridade acaba por comer os próprios filhos. Tendo rejeitado o princípio da autoridade, o pensamento moderno veio a desconfiar da autoridade do próprio pensamento. (Haverá alguma disciplina nas universidades que não seja considerada opressora e a precisar de ser desconstruída?). Ironicamente, é a Igreja Católica – a mais autoritária e opressiva das instituições – que entra em campo e confirma que sim, na verdade, a mente humana é capaz de alcançar a verdade. A autoridade da Igreja vem libertar a mente humana dos grilhões do cepticismo.

“Não queremos que este homem seja nosso Rei” (Lucas 19,14). Estas palavras, de uma das parábolas mais assombrosas do Senhor, expressam bem a rejeição autodestrutiva da autoridade de Cristo. A alma fiel, contudo, longe de desprezar essa autoridade, deseja submeter-se a ela. Sabemos que, não fosse a sua autoridade sobre nós, estaríamos ainda mergulhados no erro e no pecado. Quanto mais Cristo domina sobre nós com a sua autoridade, mais claramente vemos a verdade e mais livremente vivemos pela graça. E, quanto mais nos submetemos à autoridade da sua verdade e graça, mais nós mesmos nos tornamos pessoas que falam e agem com autoridade.


O Pe. Paul Scalia é sacerdote na diocese de Arlington, pároco da Igreja de Saint James em Falls Church e delegado do bispo para o clero. 

(Publicado pela primeira vez no domingo, 28 de Janeiro de 2024 em The Catholic Thing

© 2024 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.   

Tuesday 30 January 2024

Ajudemos as trapistas do Palaçoulo a reerguer-se depois do incêndio

Foto: António Cangueiro
NOTA: Várias pessoas me disseram que o MBWay náo está a funcionar. Eu tentei e também não deu. Já perguntei às irmãs o que se passa, e aguardo resposta, mas presumo que tenha sido ultrapassado o limite de transferências por mês. Entretanto o IBAN está a valer.

Na madrugada do passado sábado, 27 de janeiro, um incêndio destruiu boa parte da hospedaria onde dormiam as monjas trapistas do Palaçoulo, em Miranda do Douro.

Cabe-nos, enquanto comunidade, contribuir para a reconstrução, ajudando quem dedica a vida a rezar por todos nós.

Mbway +351 910 909 388 (número verificado e confirmado por mim)  As monjas ultrapassaram o limite mensal de transferências por MBWay - o que é bom sinal - e por isso agora não podem receber mais, o que não é tão bom. O IBAN, abaixo, continua a funcionar e é a melhor forma de fazer chegar ajuda!

Iban PT50 0045 2260 4029 1080 1063 2 

Qualquer valor, por pequeno que seja, é uma ajuda preciosa nesta altura. 

Junto aqui uma declaração que me chegou de alguém próximo da construção do novo mosteiro das monjas trapistas:

Caríssimos amigos. Hoje acordei com a notícia de que a hospedaria do Mosteiro estava em chamas.  Os estragos são mesmo muito grandes. Todo o corpo central da Hospedaria está danificado pelo fogo e pela água.

No entanto, fomos recebidos pelas irmãs com um sorriso indescritível. Sinal vivo da presença de Cristo no rosto de cada uma. Não consigo explicar por palavras o que vi e senti ao estar com as irmãs.

"Estamos todas bem, temos meia casa, cama e Nosso Senhor. Não precisamos de mais nada"

A aldeia rapidamente se deslocou ao Mosteiro e ajudaram em todas as frentes, alimentação, limpeza e trabalho de braços. 

"Não sabemos bem porque é que isto aconteceu, mas o que é certo é que será para um bem maior, iremos descobrir", disseram ainda as irmãs.

Tudo bem, agora só teremos que recomeçar. Mas nosso Senhor e a Igreja ajudam

Friday 26 January 2024

Mortes suspeitas de padres e freiras raptadas - e libertadas - no Haiti

Papua aguarda Papa

Abrimos com uma notícia triste e trágica. Um padre foi encontrado morto na cidade de Valência, em Espanha, pelo porteiro do prédio onde vivia. Para surpresa de todos, poucos minutos depois o porteiro recebeu uma mensagem do número do dito padre… Tenho os detalhes da descoberta do cadáver e do assassinato aqui, em inglês, e o “Las Províncias”, de Valência, tem uma excelente cobertura em espanhol. Infelizmente, as mais recentes notícias apontam para um homicídio levado a cabo por um homem a quem o padre estava no hábito de pagar por favores sexuais. Tudo lamentável, mas ainda em fase de investigação.

O cónego de Valência é o segundo padre a aparecer morto em circunstâncias suspeitas este ano. O outro caso teve lugar logo no dia 1, quando um missionário queniano foi encontrado enforcado de uma árvore numa zona remota da Venezuela. As autoridades concluíram que foi suicídio, mas os católicos locais – sobretudo os indígenas warao com quem ele trabalhava – rejeitam essa teoria e dizem que ele pode ter sido assassinado pelo trabalho que desenvolvia em defesa do seu povo, contra traficantes de droga e de mulheres.

Seis freiras foram raptadas há dias no Haiti, um país que está basicamente transformado num estado falhado. Felizmente, esta quinta-feira tivemos a boa notícia da sua libertação. Ainda assim, foi um começo pouco auspicioso para 2024, e representa mais raptos de religiosos do que em todo o ano de 2023 naquele país.

O Papa Francisco volta a mostrar que leva muito a sério o seu compromisso de visitar os países das periferias. Depois de em Agosto do ano passado ter visitado a Mongólia, agora tem viagem marcada para o mesmo mês, mas para a Papua-Nova Guiné. Tendo em conta que Ramos Horta já veio a público dizer que o Papa pretende visitar Timor este ano, presumo que as visitas sejam feitas numa só viagem, mas veremos.

Esta semana soubemos que o padre de Lamego que tinha sido acusado de abuso sexual de um maior de idade vulnerável foi reintegrado pela diocese, depois de um ano afastado, tendo visto o seu processo canónico arquivado. A diocese costuma esperar pela conclusão dos processos civis, mas neste caso, com base em “fortes indícios de que o processo civil também estava prestes a ser arquivado”, antecipou-se. Outro caso que decorria em Lamego também foi arquivado. Está tudo na cronologia, actualizada.

O Arcebispo de Cantuária, Justin Welby, visita Portugal em Fevereiro. Trata-se do líder espiritual da Comunhão Anglicana, e vem participar no sínodo da Igreja Lusitana, que é o ramo português do Anglicanismo.

Já ouviu falar da doutrina da “impanação”? Eu também não tinha. Mais grave, contudo, é que muitos católicos desconhecem a doutrina da transubstanciação, ou então conhecem mas rejeitam. Uma sondagem nos EUA em 2019 revelou que apenas um em cada três católicos acredita que o pão e o vinho se transformam no Corpo e Sangue de Cristo, na Eucaristia. No artigo desta semana do The Catholic Thing, Randall Smith explica o conceito e demonstra porque é que não faz qualquer sentido os católicos rejeitarem um conceito que afinal de contas é mais simples do que a Encarnação, por exemplo. Leiam que vale a pena, e ainda ficam a saber o que é, afinal, a “impanação”.

Thursday 25 January 2024

Longevidade e Liberdade Religiosa

Aos interessados, as III Jornadas de Espiritualidade e Longevidade decorrem em Fátima, de 17-19 de Maio de 2024, com o programa que se vê neste cartaz. 


Entretanto, está patente na Assembleia da República uma exposição com curadoria de António Marujo sobre Liberdade Religiosa.  A exposição “Os Caminhos da Liberdade Religiosa em Portugal” está patente no Palácio de São Bento até 28 de Fevereiro e pode ser visitada de 2ª a 6ª feira (10h-12h e 14h-17h), gratuita e livremente, mas mediante marcação para os telefones 213 910 843 e 213 917 101 ou para o endereço dmc.correio@ar.parlamento.pt.

Wednesday 24 January 2024

Eucaristia e Transubstanciação

Em 2019 uma sondagem preocupante da Pew Research Centre, revelou que apenas um em cada três católicos acredita que a Eucaristia é verdadeiramente o Corpo e Sangue de Cristo.

Claro que o resultado destas sondagens depende em larga medida de que perguntas são feitas, e a quem. Assim, por exemplo, se a pergunta era sobre a crença na transubstanciação, alguns podem ter tido a mesma reacção que eu tive quando me perguntaram recentemente se acredito na “impanação”.

Mas que raio é a impanação? Fui investigar. Ao que parece, “impanação” é a crença de que Cristo está presente no pão e no vinho, mas estes não deixam de ser pão e vinho. Por isso, não, não acredito na “impanação”. Até poderia ser uma coisa inocente, mas não é, e eu não estava disposto a concordar sem compreender.

Houve quem pensasse que eu tinha professado essa crença porque tinha escrito que Cristo está “verdadeiramente presente no pão e no vinho”. O que eu estava a realçar era o “verdadeiramente presente”. Mas em bom rigor, já não se trata de pão e vinho, mas sim do Corpo e Sangue de Cristo. Claro que não faria sentido eu dizer que o Corpo e o Sangue de Cristo estão “verdadeiramente presentes” no Corpo e no Sangue de Cristo. Por isso, para simplificar, dizemos que Cristo está presente no pão e no vinho.

Certa vez uma jovem rapariga disse-me que nunca poderia ser católica, porque não conseguia aceitar a doutrina da transubstanciação. “Espera”, respondi, “vamos dar um passo atrás”. A doutrina da transubstanciação é uma tentativa de descrever a “Presença Real” de Cristo na Eucaristia, usando categorias da física medieval. A substância é agora o Corpo e Sangue de Cristo, mas os acidentes de pão e vinho mantêm-se.

Mas o objectivo da doutrina era de exprimir o que significa dizer que Cristo está verdadeiramente presente no pão e no vinho – ou no que era pão e vinho e ainda parece pão e vinho mas que é, em substância, o Corpo e o Sangue de Cristo. O termo “transubstanciação” pode parecer estranho, mas de facto faz bastante sentido.

A minha amiga deu a resposta habitual. “Bom, eu acredito que Ele está espiritualmente presente”. Respondi: “Calma aí. Isso não é estar realmente presente. Na Igreja antiga afirmavam claramente a crença de que Cristo está realmente presente na Eucaristia, tão presente como esteve em vida, e tão presente como estava quando ressuscitou dos mortos”.

Não foi uma coisa fácil de aceitar nessa altura, nem é fácil de aceitar agora. Foi por isso que tantos abandonaram Cristo quando Ele insistiu que deveriam comer o seu corpo e beber o seu sangue. Esse abandono em massa não faz qualquer sentido se pensarmos que ele estava a usar uma linguagem simbólica. Poderia facilmente ter dito: “Espera, não estou a falar do meu corpo e sangue verdadeiros, isso seria nojento. Não, estou a falar simbolicamente, metaforicamente”. O problema ficaria resolvido num instante. Mas não foi isso que aconteceu.

“Vamos, então, começar do fim e andar para trás”, disse eu. “Acreditas que Cristo viveu, que verdadeiramente conquistou a morte e ressuscitou de entre os mortos?” Ou achas que Ele só está simbolicamente vivo, tipo, ‘vivo nos nossos corações’?”. Respondeu-me de forma clara. “Acredito que Cristo ressuscitou e ascendeu à direita do Pai. Digo-o todos os domingos quando vou à Igreja.”

“Ok, então acreditas que Cristo ressuscitou corporalmente dos mortos, de forma que o apóstolo Tomé poderia ter tocado nos buracos deixados pelos pregos nas suas mãos, e na ferida da lança no seu lado? Ou será que Cristo estava ‘presente’ na sala apenas metaforicamente, porque eles o recordavam em amor, ou algo desse género?” Também não aceitou esta ideia de que Cristo estava apenas presente de forma simbólica ou metafórica entre os apóstolos.

“Então, se acreditas que Deus encarnou verdadeiramente, e se acreditas que Jesus Cristo era Deus encarnado, o Verbo feito carne; e se acreditas que Cristo ressuscitou verdadeiramente dos mortos, não apenas de forma ‘espiritual’ ou ‘metafórica’, mas verdadeiramente, enquanto unidade de corpo e de alma, e se sabes que esta era a fé dos Apóstolos e da Igreja antiga; e se reconheces que a doutrina da ‘transubstanciação’ era uma tentativa honesta de descrever a crença da Igreja de que Cristo está verdadeiramente presente na Eucaristia, mas que quando a consumimos não estamos a mastigar os seus ossos, porque embora seja agora o Corpo e o Sangue de Cristo, ainda mantém as propriedades, os ‘acidentes’ de pão e vinho; isso tudo ajuda a contextualizar o estranho termo ‘transubstanciação’?”

Mas a questão mais de fundo, existencial, é a seguinte: Jesus era Deus encarnado? E será que acreditamos que Deus ama a humanidade pecadora de tal forma que verdadeiramente se “esvaziaria da sua divindade” e tomaria para si a nossa humanidade, sacrificando-se depois por nós na Cruz?

Porque (a) é isso que significa consumir a Eucaristia; é a nossa participação encarnada, sacramental, no sacrifício de Cristo, e (b) se consegues acreditar em tudo aquilo sobre Deus e o amor de Deus ser tão grande que Ele se tornou homem, viveu entre nós e morreu pelo perdão dos nossos pecados, e a restauração da nossa comunhão com Deus, então parece estranho insistir que Deus não pode estar presente na Eucaristia.

Deus criou cada átomo do universo, fez coisas incríveis, mas não consegue, ou não quer, tornar-se presente de forma contínua, de forma encarnada, na Eucaristia?

Sejamos honestos, então. O problema é mesmo a “transubstanciação”? Ou a crença num Deus Criador que nos ama de tal forma que se fez homem e morreu na Cruz? É um conceito compreensivelmente difícil de aceitar, mas, só para ficar muito claro, a Boa Nova é isso mesmo.

Ah, e caso estejam preocupados, essa minha amiga tornou-se católica há anos, e assim continua. Parece que afinal a doutrina da transubstanciação não era um problema tão grande como pensava.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 23 de Janeiro de 2024)

© 2024 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

 

Friday 19 January 2024

Nicarágua sem liberdade religiosa, e com menos padres

Se já vivíamos tempos preocupantes, as coisas tornaram-se ainda mais sérias, com o Irão a lançar ataques contra posições no Iraque e no Paquistão, que já ripostou. Analisei esta situação no mais recente artigo no meu blog, onde também explico qual o substrato religioso para as divisões que se vivem entre os países do Médio Oriente e arredores.

Uma notícia muito importante vinda da Nicarágua. Depois de uma onda de detenções de padres nos últimos dias do ano, o regime libertou todos os clérigos que tinha na prisão e exilou-os para o Vaticano. Inclui-se aqui o bispo Rolando Alvarez, que passou 16 meses na cadeia. É uma boa notícia, mas não faz diminuir a preocupação com o estado da liberdade religiosa no país. Aqui podem ler o meu artigo no site da AIS internacional, em inglês, e aqui uma versão adaptada no site da AIS Portugal, em português.

A associação de vítimas de abusos sexuais na Igreja, Coração Silenciado, teve audiências tanto com o Presidente da República, como com a CEP. Parece que ambos os encontros correram bem. Já coloquei a informação na cronologia.

A organização Open Doors publicou o seu relatório anual, em que conclui que mais de 365 milhões de cristãos sofrem de perseguição no mundo.

E o Papa Francisco disse esta semana que aquilo que a Igreja condena é a luxúria, e não o instinto sexual do homem.

O artigo desta semana do The Catholic Thing é de Stephen White, que faz três previsões para 2024. Está muito centrado na realidade americana, mas não deixa de ser muito interessante.

E deixo-vos ainda um convite para a conferência Religião e Sociedade, que decorre na Universidade Católica, no próximo dia 24. Ver imagem acima.

Thursday 18 January 2024

Conferência Religião e Sociedade - Universidade Católica

Deixo aqui este convite para a conferência de dia 24 de Janeiro, que promete ser muito interessante. 



 

Wednesday 17 January 2024

O que há de religioso na tensão no Médio Oriente? (Quase) tudo

Guardas Revolucionários do Irão

Ao longo dos últimos dias assistimos à surpreendente notícia de que o Irão lançou ataques, incluindo com mísseis balísticos e drones, contra alvos no Iraque e no Paquistão.

Trata-se de uma escalada inesperada na situação no Médio Oriente e também extraordinariamente perigosa. Basta recordar que o Paquistão é uma potência nuclear, e o Irão, se não é ainda, para lá caminha.

O que é que se passa? E o que é que a religião tem a ver com o assunto? Como veremos, muito.

Xiitas v. Sunitas

O primeiro ponto tem a ver com a divisão entre sunitas e xiitas, os dois grandes ramos do Islão. Mundialmente os sunitas são a vasta maioria, com cerca de 90% da população, mas olhando mais especificamente para o Médio Oriente a coisa não é tão evidente. O Irão é a grande potência xiita, e tem um regime teocrático que usa a religião para se legitimar. Mas depois existem vários países na região que têm significativas minorias, ou até maiorias de xiitas.

Já os sunitas são maioria em quase todos os países do Médio Oriente, excepto o Irão, obviamente, e o Iraque. As grandes potências sunitas são por um lado a Arábia Saudita, e por outro – já fora do Médio Oriente, mas na fronteira e com o olhar cada vez voltado para leste, a Turquia.

As grandes rivalidades na região – excluindo para já Israel, mas já lá vamos – são entre países sunitas e xiitas, e por vezes entre forças dessas duas correntes do Islão dentro dos países, que agem a mando de potências externas. Assim, a Arábia Saudita está actualmente em conflito com os houthis, do Iémen, que são xiitas e agem sob ordens de Teerão, e a Turquia apoia os grupos rebeldes na Síria, que são na maioria sunitas e de tendência jihadista, enquanto o Governo da Síria é dominado pelos alauitas, que são um ramo do xiismo.

Até agora, apenas uma coisa parecia capaz de unir os dois ramos, o ódio a Israel e, por extensão, aos seus apoiantes ocidentais, nomeadamente os Estados Unidos. Mas até isso parece estar agora em causa.

Uma aposta ganha de Israel?

Durante anos Israel tem sido o alvo preferido da retórica do Irão. Contudo, os dois países não partilham qualquer fronteira, por isso a coisa resumia-se quase só a isso, retórica. Entretanto o Hezbollah, a força xiita no Líbano, começou a atacar Israel e o Irão está prestes a tornar-se um país nuclear, o que apresenta um sério risco para Telavive. Pior, o Irão tornou-se um dos principais patrocinadores do Hamas, o grupo armado que domina a Faixa de Gaza, e terá mesmo ajudado a treinar, armar e financiar os ataques de Outubro que levaram à mais recente guerra.

Quando Israel ripostou contra o Hamas, invadindo Gaza numa operação que já causou dezenas de milhares de mortos e está a deixar o território praticamente inabitável, pensou-se que estava a cometer um erro estratégico, colocando todo o resto do Médio Oriente – e uma boa parte da opinião pública do ocidente – contra si. Contudo, aquilo a que estamos a assistir agora pode indicar uma aposta ganha por Israel, na medida em que a tensão entre xiitas e sunitas isola o Hamas, dependente do Irão, e isola o próprio Irão na região. Note-se que no seguimento da guerra em Gaza nenhum país sunita veio em auxílio do Hamas, mas pelo contrário houve dois atentados dentro do Irão promovidos por forças sunitas radicais, uma com sede em Idlib, na Síria, outra com sede no Paquistão. Foram alvos desses grupos, supostamente, que o Irão atacou.

Claro que isto levanta a pergunta: porque é que estes grupos atacaram o Irão precisamente nesta altura em que o estado xiita estava a usar os grupos que apoia e controla para atacar Israel e alvos ocidentais, através dos ataques a navios no Mar Vermelho? Terá havido algum encorajamento por parte desses governos ocidentais, ou de Israel, nesse sentido?

O que sabemos é que há dias a Arábia Saudita já veio dizer que poderá vir a reconhecer Israel, desde que o problema da Palestina seja resolvido. Parece uma condição impossível, mas os sauditas também não disseram o que consideram ser uma justa resolução, portanto está tudo em aberto. Esta aproximação de Ríade mostra claramente que os países sunitas estão a compreender que não é Israel que é o seu grande inimigo na região, pois não os ameaça directamente, e que já não têm a ganhar com os apelos à solidariedade muçulmana com a Palestina, uma vez que o Irão os ultrapassou pela direita e assumiu essa causa para si.

Os próximos tempos poderão, por isso, revelar um novo equilíbrio de poderes no Médio Oriente, com os países sunitas a aceitar tréguas e até colaboração com Israel, e por extensão com o mundo ocidental, face a uma ameaça comum.

E se o Irão “flipar”?

Uma das ironias em toda esta situação é que o Irão é, nalguns sentidos, um tigre de papel. Não quero de forma alguma subestimar a sua importância e a sua força, mas sim sublinhar que essa força está toda concentrada no topo de uma pirâmide que está a ficar com as bases corroídas.

Mulheres no Irão queimam hijabs
em protesto contra o regime 
Meio século de um regime fundamentalista e retrógrado em Teerão conseguiu o feito de virar uma grande parte da população contra essas mesmas ideias. Nas grandes cidades iranianas as pessoas não querem saber de religião, de xiismo e de rivalidades com os sunitas. Não obstante toda a sua conversa antiocidental, os iranianos comuns estão profundamente ocidentalizados e a sentir cada vez mais o peso da falta de liberdade a que estão sujeitos. O Irão é, por isso, um barril de pólvora que já foi posto à prova várias vezes, mas que mais dia, menos dia, pode mesmo explodir e ver desaparecer o regime dos ayatollahs, sendo estes substituídos por uma nova realidade muito mais ocidentalizada, que recupera o lugar que o Irão já ocupou no mundo, em termos de cultura e de desenvolvimento. Mas isso ainda não aconteceu, nem se sabe se vai acontecer, por isso os ayatollahs ainda lá estão e são eles que estão quase a obter armas nucleares.

E por fim a Rússia

Claro que a Rússia também é para aqui chamada. Moscovo tem sido o grande aliado internacional do Irão. Juntos combateram na Síria e na Líbia e há muitos que acreditam, como eu, que o ataque do Hamas teve dedo de Moscovo, precisamente para provocar uma resposta israelita e levar os americanos a dividir com Israel o apoio militar que têm dado a Kiev.

Aqui, claro, não é qualquer solidariedade religiosa que está em causa, mas apenas uma solidariedade de autocracias, até porque a muito significativa população muçulmana da Federação Russa é de maioria sunita. Mas se a situação no Médio Oriente deixar de ser uma guerra de procuração com rebeldes submissos a Teerão a lançar mísseis contra bases americanas e navios internacionais, tornando-se em vez disso uma guerra aberta entre estados, então a Rússia só tem a perder, porque o precioso apoio militar que tem recebido do Irão provavelmente vai cessar. Aos russos e aos iranianos interessa, por isso, ir longe, mas não longe de mais. E esse é sempre um jogo muito perigoso de se jogar.

Três previsões esperançosas para o Ano Novo

Stephen P. White
O começo de um novo ano é sempre tempo de olhar para trás sobre a mais recente volta dada ao sol, fazendo contas ao que se passou, tanto de bom como de mau, e de fazer resoluções sobre aquilo que pode ser feito melhor, ou pelo menos diferente, durante a volta seguinte.

Na minha experiência, a frescura do novo ano tende a encher-nos de optimismo. Mas também na minha experiência, esse optimismo raramente perdura para além de Quarta-feira de Cinzas. O optimismo do início de Janeiro raramente chega sequer intacto a Fevereiro. Pelo início da Quaresma eu já estou pronto para penitência.

Dito isto, Janeiro também é um bom mês para prognósticos. Agora é tão boa altura como qualquer outra para antecipar o que nos trará 2024 – tanto de bom como de mau – para que possamos estar o mais preparados possível para o que vier. E para que em Janeiro do ano que vem possamos olhar para trás para as nossas previsões e rirmo-nos por termos sido exageradamente esperançosos ou desnecessariamente preocupados com todas as coisas erradas.

É por isso num espírito de autocrítica preventiva que submeto as seguintes três previsões para este ano de Nosso Senhor de 2024.

Primeiro, como devem saber, aqui nos Estados Unidos estamos novamente em ano de eleições. As eleições nacionais nos Estados Unidos, sobretudo as presidenciais, tornaram-se exercícios de medo e ódio em massa. Medo, na medida em que este mais recente episódio de “a eleição mais importante de sempre”, levou ambos os lados a convencerem-se de que a fasquia nunca esteve tão alta, e que a situação nunca foi tão desesperada. Ódio, no sentido em que toda a gente, em ambos os partidos, parece desgostar do seu próprio lado só um bocadinho menos do que odeiam os bárbaros do outro lado da coxia. 

Pelo menos às vezes parece tratar-se de “todos”. Eu não gosto de desdramatizar a importância da política, até quando, ou talvez especialmente quando, a nossa cena política parece estar tão fracturada. Nem faz o meu género menosprezar a gravidade dos desafios que enfrentamos, que há muito deixaram de ter a ver com como atingir os nossos objectivos comuns, transformando-se em profundos desentendimentos sobre a própria natureza e propósito do ser humano, e por isso da própria sociedade.

A história, como nos recordou João Paulo II, tem-nos demonstrado que até as democracias se podem transformar em totalitarismos mais ou menos disfarçados, se não tiverem as fundações morais e filosóficas adequadas. É possível insistir tanto que a ameaça é real, e até que o processo já está avançado, e ao mesmo tempo que estamos muito longe de chegar ao ponto crítico de não regresso. As “teorias do declínio” não são muito úteis enquanto “teorias de bater no fundo”, salvo em restrospectiva.

Bom, passando à minha previsão: 2024 vai ser um ano duro em termos políticos, mas os piores medos tanto da direita como da esquerda não serão realizados no dia da tomada de posse, em 2024, e a pessoa que fizer o juramento enquanto Presidente dos Estados Unidos será a mais velha de sempre a fazê-lo.

Falando de eleições, esta será a primeira presidencial desde a decisão de anular Roe v. Wade. Por esta altura já todos devem ter percebido que as discussões políticas sobre o aborto não vão desaparecer tão depressa. Mas o lugar do aborto na política americana transformou-se desde a decisão de Dobbs. Há, e continuará a haver, menos enfoque no processo político de conseguir a combinação certa de juízes no Supremo Tribunal, e muito mais nas leis estaduais.

Aquilo que quero sublinhar aqui é a forma como os bispos católicos, tanto individual como colectivamente, se relacionam com a política de um mundo pós-Roe. O aborto continua a ser uma das grandes preocupações dos bispos. Aliás, os bispos reafirmaram recentemente a sua posição, sem as polémicas de anos recentes, de que a ameaça do aborto continua a ser a sua “prioridade preeminente”. Durante quase meio século isso significava, em primeiro lugar, reverter Roe.

A verdade é que, embora nenhum dos bispos deseje o seu regresso, Roe v. Wade desempenhava um papel galvanizante, tanto eclesiástica como politicamente. A sua anulação era um objectivo claro, alcançável e justo. Sem ele, a ameaça do aborto não deixou de ser grave ou urgente, mas enquanto questão política para católicos, assumiu um carácter mais difuso.

Neste próximo ano teremos um primeiro vislumbre do novo “status quo” do envolvimento episcopal na política presidencial. Os católicos estarão de olho nos seus bispos, e os bispos estarão de olho uns nos outros. A isto vem somar-se a antipatia geral que a maioria dos bispos sentem tanto para com o actual Presidente, como para com o mais que provável candidato republicano, Donald Trump. Prevejo, por isso, um ano de envolvimento político bastante reservado para os nossos bispos.

A minha terceira previsão: O Congresso Eucarístico Nacional poderá ser a última, e melhor, esperança para a sinodalidade ganhar alguma aderência nos Estados Unidos. O Sínodo sobre a Sinodalidade, de Outubro, não incendiou propriamente muitos corações. Uma recente missiva da Conferência Episcopal a pedir mais uma ronda de sessões de escuta sinodais não foi recebida propriamente com grande entusiasmo. As polémicas sobre a Fiducia Supplicans também não fizeram grandes favores ao sínodo, parecendo até contradizer a visão de sinodalidade que o Papa Francisco tanto tem proposto.

Então como é que um encontro de 70 mil católicos em Indianápolis pode revigorar a sinodalidade? Juntando dezenas e dezenas de milhares de católicos de toda a nação para escutar a palavra de Deus e adorar o Senhor. Na medida em que o Congresso conseguir criar um sentido de fraternidade e comunhão, criando um sentido vital de participação na vida da Igreja, e plantar nos seus participantes a semente do zelo missionário, o Congresso Eucarístico terá feito avançar a missão da Igreja na América de uma forma que nenhum encontro sinodal em Roma alguma vez poderia fazer. Isso seria uma enorme vitória para a Igreja nos Estados Unidos e para a sinodalidade. Acredito que Roma concordaria.


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing no Domingo, 11 de Janeiro de 2024)

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Friday 12 January 2024

Thattil para resolver embróglio malabar e explosão de padres detidos

Bispo Rolando Alvarez, um de 
muitos detidos na Nicarágua

Há duas semanas falei da divisão na Igreja Siro-Malabar, a segunda maior igreja católica oriental, e de como isso era mais uma dificuldade para o Papa Francisco nesta fase difícil do seu pontificado. Ora, o sínodo dessa igreja acaba de eleger um novo líder, que terá a difícil tarefa de tentar sarar divisões. Toda a informação acerca deste assunto, aqui.

Um dos meus trabalhos na fundação Ajuda à Igreja que Sofre é manter uma lista de todos os padres e religiosos que são assassinados, detidos ou raptados ao longo do ano. No início do ano seguinte escrevo um artigo a dar conta dos números. Ora, este ano a grande notícia é uma autêntica explosão em detenções de sacerdotes/religiosos – sendo que só contabilizamos as detenções por motivos de perseguição, e não por delitos comuns. A única boa notícia é uma queda no número de assassinatos e de raptos, embora esta ainda seja uma realidade importante.

A polémica da semana é o facto de alguém ter desenterrado um livro do actual prefeito para o Dicastério da Doutrina da Fé, escrito há décadas, que versa temas de sexualidade, chegando a empregar termos bastante crus. Vou ser sincero: não li o livro, nem está na minha lista de prioridades, mas li, isso sim, uma análise da situação do reputado jornalista John Allen Jr., da Crux, e recomendo que o leiam também, pois tendo a concordar com as suas conclusões.

As escolas católicas pediram ao Presidente da República que vete a lei da audoterminação de género nas escolas. Veremos como é que isso corre.

De Bragança chega uma notícia interessante. A diocese está a receber uma visita de frades franciscanos itinerantes, e por isso o bispo D. Nuno Almeida aproveitou o balanço e vai acompanhá-los, fazendo assim visitas pastorais às localidades. Excelente ideia!

Henrique Leitão, historiador da ciência e comentador, foi nomeado para o Comité Pontifício de Ciências Históricas. É mais um português em lugar de destaque no Vaticano. Parabéns!

E caso tenham estado atentos às notícias, parece que o Ecuador está a mergulhar no caos. Os bispos locais esperam que a violência não tenha a última palavra.

O artigo desta semana do The Catholic Thing é sobre educação, com Randall Smith a tecer algumas observações sobre a mania de se tratar os alunos universitários como a “nata da sociedade”, quando na verdade estão (ainda) muito longe disso. Leiam, que é um artigo divertido e cheio de pontos válidos.

Deixo-vos com dois desafios. Um curso da Escola de Leigos, sobre o Concílio de Niceia e ministrado pelo meu tio Pe. Peter Stilwell, e uma conferência sobre Bento XVI organizada pela fundação Maria Ulrich, e que será dado pela Aura Miguel.

Thursday 11 January 2024

Duas propostas: Niceia e conferência sobre Bento XVI

 Deixo aqui convites para duas iniciativas que me parecem ser muito interessantes. Aproveitem!







Novo líder da Igreja Siro-Malabar, para tentar resolver a crise

O arcebispo-mor Raphael Thattil toma hoje posse da Igreja Siro-Malabar, na Índia, depois de ter sido eleito pelos 53 bispos que formam o sínodo dessa Igreja católica oriental, que é a segunda maior do mundo, a seguir à Igreja Greco-Católica da Ucrânia.

Thattil não constava das listas dos principais candidatos ao cargo, mas a sua eleição foi bastante rápida, e no mesmo dia pediu, e recebeu, a confirmação de comunhão com o Papa Francisco.

Uma das principais tarefas que terá pela frente, agora, é tentar sanar as enormes divisões que existem dentro da Igreja Siro-Malabar, nomeadamente as resistências à adopção de uma liturgia uniforme para toda a Igreja.

A Igreja Siro-Malabar é autóctone do sul da Índia, nomeadamente de Kerala, e foi fundada alegadamente pelo apóstolo São Tomé. Ao fim de alguns séculos, a definhar e sem bispos, recebeu uma missão de cristãos siríacos da Terra Santa que lhe deram um novo impulso. Os descendentes desses cristãos, que sendo de tradição judaica praticavam a endogamia, ainda existem em Kerala e formam a comunidade Knanaíta, que tem as suas próprias tradições e jurisdições eclesiásticas.

Quando os portugueses chegaram à Índia e se depararam com cristãos locais no sul do país procuraram submetê-los a Roma e forçaram uma série de latinizações. Alguns indianos resistiram e romperam com Roma, formando a Igreja ortodoxa, mas a maioria permaneceu católica.

Ao longo das últimas décadas tem sido feito um grande esforço para retornar às raízes orientais da Igreja, em termos de espiritualidade e liturgia, sobretudo porque se reparou que cada diocese ou paróquia celebrava o rito siro-malabar de forma diferente, nomeadamente no que diz respeito ao posicionamento do sacerdote, que nalguns casos estava voltado para o altar – ad orientem – e noutros estava voltado para a assembleia – ad populum. Depois de anos de trabalho, o sínodo acordou um modo de celebração uniforme em que o padre está voltado para a assembleia, mas durante a liturgia eucarística volta-se para o altar. Todas as dioceses aceitaram a nova liturgia, excepto a diocese de Angalamy, que é precisamente a principal e cujo arcebispo é, por inerência do cargo, o arcebispo-mor da Igreja Siro-Malabar.

Mas não foi apenas uma recusa. A tentativa de obrigar os padres a celebrar a nova liturgia levou a protestos, pancadaria, encerramento de igrejas e da principal catedral da diocese e até à imolação de efígies de cardeais. Chegou-se ao ponto de o Papa gravar uma mensagem a dar como prazo o dia de Natal para os padres revoltosos celebrarem a liturgia uniforme, sob pena de excomunhão. No dia de Natal os padres lá cumpriram o pedido do Papa, mas já deixaram claro que foi uma excepção, e que agora voltarão a celebrar como desejam, que é voltados sempre para a assembleia.

O anterior arcebispo-mor, o cardeal George Alencherry, foi incapaz de intermediar o problema que se passava na sua própria diocese, em larga medida porque já estava a ser alvo de uma investigação policial por vendas polémicas de territórios da Igreja. De mãos atadas e com a sua credibilidade afectada, apresentou a sua demissão ao Papa em Dezembro, que foi prontamente aceite. Tem 78 anos, o que na Igreja latina – a principal da Igreja Católica – é já mais três anos do que a idade da resignação, mas essa regra não se aplica a líderes de Igrejas orientais.

É este o cenário que espera Thattil. Não será uma prova fácil.

Contudo, Thattil parte para esta nova missão com alguns trunfos. Conhece a diocese, embora não seja de lá, e passou os últimos anos como bispo de Shamshabad, que é basicamente uma diocese que abrange todos os cristãos siro-malabares que vivem na Índia, mas fora do território tradicional da Igreja. Na prática, isto traduz-se numa diocese que cobre 23 estados, dois territórios federais e duas ilhas, mas com “apenas” 120 mil fiéis. É, por isso, uma diocese cheia de desafios, e certamente cheia de variedade, pelo que talvez seja a pessoa indicada para conseguir moderar uma crise que radica precisamente na resistência à uniformidade e no apego às tradições próprias.

Como escrevi há duas semanas, a situação na Índia é mais uma dor de cabeça para o Papa Francisco, que está a atravessar talvez o momento mais delicado do seu pontificado, com notórias divisões em várias partes da comunhão católica. Se o arcebispo-mor Thattil conseguir resolver essa questão fará um serviço importante não só à sua Igreja, como à Igreja Católica universal e ao Papa Francisco em particular.

Wednesday 10 January 2024

A Nata da Sociedade?

O termo “a nata da sociedade” é frequentemente empregue para descrever os estudantes de universidades de elite nos Estados Unidos. Por vezes é usado de forma irónica, como quando as pessoas perguntam, sobre os estudantes a manifestar-se a favor do Hamas: “Estes miúdos são a nata da sociedade americana?” Pois não são, não. Mas a verdade é que nunca foram.

Isto não é meramente um comentário sobre as nossas instituições académicas supostamente de elite. A maioria das pessoas que inventaram coisas, criaram empresas, defenderam a pátria, serviram as suas comunidades e construíram famílias não frequentaram as instituições da Ivy League – Harvard, Princeton e Yale – nem qualquer outra das instituições de “elite”. Muitas frequentaram universidades estaduais, academias militares ou pequenas faculdades de artes liberais. Muitos mais ainda não frequentaram universidade alguma.

No seu livro: “The Best and the Brightest”, escrito nos anos 70, David Halberstam criticou o grupo de intelectuais de elite – na maioria ex-alunos das universidades da Ivy League – que rodearam o presidente Kennedy e que planearam a condução da desastrosa guerra do Vietname.

Há por isso muitas razões pelas quais é apenas uma tontice associar o termo “a nata da sociedade” a alunos – ou professores – de universidades de elite.

Os alunos destas escolas são frequentemente inteligentes e capazes, e há também excelentes professores. Mas o meu ponto é mais geral e não se foca apenas em instituições específicas. O que eu defendo é que nenhum aluno, de nenhuma faculdade ou universidade constitui a nata da sociedade americana. E digo isso na qualidade de alguém que adora ensinar, que adora os seus alunos, e que se considera muito sortudo por poder fazer o que faço.

A razão pela qual digo que nenhum destes alunos é a nata da sociedade americana é porque eles são meramente miúdos a estudar. A nata da sociedade americana está na própria sociedade, a trabalhar, a servir, a cuidar de famílias, a construir coisas, a inventar coisas e tudo o resto.

Aristóteles e Tomás de Aquino já diziam que ser em acção é melhor do que ser em potência, e os alunos são, essencialmente, grandes bolas de potência. Anseiam ser em acção, fazer coisas importantes, mas a maioria simplesmente não tem a formação ou as capacidades de o fazer para já, nem possuem a maturidade, a experiência ou o juízo.

Sim, os miúdos têm potencial. Se vão cumprir esse potencial é outra coisa. Aqueles de nós que os ensinamos, que os admiramos e que gostam tanto deles, sabemos que, de diversas formas, eles são obra em curso. Não são propriamente, como dizia o apresentador Rush Limbaugh, “jovens crânios cheios de papa”, embora haja aí algum elemento de verdade. Muitos dos meus alunos são muito mais inteligentes e maturos do que eu era na sua idade, mas isso não significa que estejam prontos para os desafios do mundo.

Então quem é que é mais inteligente do que eles? Para já, os seus pais. Nunca deixo de me surpreender como os adolescentes compram a propaganda que lhes é dirigida pelos media e que representa os pais como idiotas.

Os seus pais podem ser neurocirurgiões, líderes de empresas, oficiais das forças armadas, engenheiros aeroespaciais, podem saber electrificar todo um edifício – mas supostamente são “burros”. Dizem-me que “os pais não compreendem o sexo e o amor”. É mesmo necessário responder a uma afirmação dessas feita por um jovem que é o resultado de um acto sexual e que parece ser saudável, bem alimentado e está numa universidade?

Esses pais parecem saber algo mais sobre sexo e amor do que os media dão a entender.

Por isso talvez fosse melhor ideia se disséssemos aos nossos jovens – e refiro-me aqui sobretudo aos jovens a quem é dado o privilégio de poder ter uma educação universitária – que eles não são a nata da sociedade. Essa honra é algo que terão de conquistar no mundo real, cuidando de outros, fazendo coisas de valor e servindo a Deus e ao seu próximo.

Neste momento não passam de grandes bolas de potencial. Se algum dia vão ser alguma coisa de valor depende da sua capacidade de aprender algo de valor; de dominarem capacidades e virtudes importantes, incluindo as suas próprias paixões e apetites; compreenderem-se melhor a si mesmos e aos seus concidadãos; ganharem a experiência de que precisam no mundo, incluindo a experiência para recuperar de erros e de fracassos.

Eu digo aos meus alunos que se querem viver de uma certa forma o melhor é encontrarem pessoas a viver a vida da forma como acham que ela deve ser vivida, e depois observarem-nas, aprender delas e deixar que o seu exemplo vos desafie.

As pessoas só se deviam preocupar com aquilo em que vocês se tornam, e não com a escola que frequentaram. Não lhes devia interessar se foram para a escola, sequer, desde que consigam desempenhar a vossa função. A forma como as universidades passaram a ser determinantes na progressão da carreira é uma das histórias mais tristes do pós-Segunda Guerra Mundial, e tem de parar. Eu acredito no valor de uma educação universitária, mas ela não deve ser tratada como um sine qua non para a progressão.

Acredito que todos os meus alunos têm o potencial de se tornarem a nata da sociedade. Acredito nisso porque a minha fé me diz que por mais baixo que tenham descido, ou por mais tolos que pareçam ser, Deus lhes pode dar aquilo de que precisam para poderem brilhar.

Por vezes os miúdos que descartamos como sendo um desastre completo acabam por se tornar os mais fiéis servidores de Deus. Não se trata de algo que possamos controlar ou prever. Está nas mãos de Deus. Mas o estatuto de serem a nata da sociedade está no seu futuro, como estão os seus melhores dias.

Por isso, quando os jovens ouvem falar em nata da sociedade devem perceber que provavelmente estão diante de vendedores de banha da cobra. E devem responder: “A sério? Achas mesmo que sou assim tão burro? Estás a ver aquelas pessoas que estão no mundo a fazer coisas, a defender o seu país e a servir a Deus e ao próximo? Esses é que são a nata da sociedade. Só espero um dia poder ser como eles. Entretanto cala-te, preciso de estudar e preparar-me, e conversas da treta sobre a nata da sociedade não vão levar-me onde preciso de ir”.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 9 de Janeiro de 2024)

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Friday 5 January 2024

Esclarecimentos necessariamente desnecessarios

Espero que tenham entrado da melhor maneira no novo ano, e que ele seja o mais abençoado possível.

O ano não podia ter acabado de pior maneira na Nicarágua, onde só nos últimos quinze dias do ano foram detidos cerca de 20 padres pelo regime sandinista, incluindo pelo menos um no próprio dia 31 de Dezembro.

A Nicarágua é apenas um de muitos países e regiões onde a Igreja sofre por perseguição ou falta de recursos. A fundação Ajuda à Igreja que Sofre existe para acudir a estes casos e ajudar da forma possível, seja materialmente, através de advocacia ou, muito importante, através da oração e do apoio espiritual. Nesta entrevista, a nova presidente executiva da fundação internacional, Regina Lynch, explicou-me quais são as prioridades da organização para o 2024.

Na Igreja continua-se a falar do Fiducia Supplicans. Depois de o prefeito do Dicastério da Doutrina da Fé ter dito que não haveria mais pronunciamentos ou esclarecimentos sobre a declaração, temos assistido a uma sucessão de… pronunciamentos e esclarecimentos, o mais recente na forma de um comunicado de imprensa. Fiz um apanhado da situação, e da polémica que tem gerado, neste texto.

Por cá, o Patriarca de Lisboa, D. Rui Valério, pediu o fim da “crispação” entre partidos e instituições e o Papa lamentou os dias “vazios de paz” que o mundo está a viver.

O artigo desta semana do The Catholic Thing assinala simultaneamente a solenidade de Maria, Mãe de Deus, que se celebrou no dia 1 de Janeiro, e também o aniversário da morte de Bento XVI. É um excerto da última homilia que ele fez enquanto Papa nessa solenidade, leiam que é muito bonito.

Thursday 4 January 2024

Os esclarecimentos sobre o documento que não teria esclarecimentos

Cardeal Victor Manuel Fernández

Todos terão reparado que há cerca de 15 dias o Dicastério para a Doutrina da Fé publicou uma declaração a dizer que as pessoas em uniões irregulares, incluindo homossexuais, podem pedir bênçãos à igreja, nomeadamente aos seus ministros, mas que essas bênçãos não podem ser confundidas com um casamento nem pretendem legitimar as situações. Interessantemente, o documento fazia questão de dizer que os fiéis não deviam esperar qualquer tipo de esclarecimento adicional. Fiz a minha leitura do documento em vários locais, podem consultar aqui.

Desde então, não só o presidente do Dicastério se viu obrigado a dar várias entrevistas para tentar explicar melhor o documento que não precisaria de esclarecimentos adicionais, como hoje o Dicastério publicou um comunicado de imprensa para esclarecer ainda mais o documento que dispensava esclarecimentos adicionais. Chama-se a isto controlo de danos. Virá a tempo?

Como bom comentador, já levei porrada dos dois lados. Alguns críticos, incluindo bons amigos, acusaram-me de “Popesplaining”, isto é, de estar a fazer contorcionismo para tentar procurar a leitura mais benigna possível do Fiducia Supplicans, enquanto outros acharam, no texto que escrevi no blog e no Expresso a dar conta de como a declaração estava a causar divisões, que estava com isso a criticar o Papa e a própria ideia de dar bênçãos a homossexuais.

Deixem-me então, se é que interessa, expressar a minha opinião. Eu acho evidente que pessoas homossexuais, estejam ou não em uniões, bem como outras pessoas em uniões irregulares, podem e devem pedir e receber bênçãos à Igreja e aos seus ministros. Concordo plenamente com o texto quando este diz que esses pedidos, na maior parte dos casos, representam uma sede de aproximação de Deus e do Evangelho, e que as bênçãos devem ser entendidas como auxílio nessa caminhada, e não como sacralização do estado de vida de quem quer que seja.

Acredito – não só em teoria, mas por experiência pessoal de convívio próximo com pessoas nessas situações – que tal como os indivíduos não são a soma dos seus pecados, uma relação entre duas pessoas do mesmo sexo, ou entre duas pessoas que não se encontram validamente casadas, não se resume às suas dimensões pecaminosas, ou “irregulares”, embora estas possam existir. Todos os laços de amizade e de amor, ainda que seja um amor que não compreendamos ou que não consideramos equivalente ao que é consagrado no matrimónio cristão, têm dimensões positivas de entreajuda, de apoio mútuo, de amizade, de projectos de vida em comum, que podem e devem ser nutridos para crescerem e se desenvolverem da melhor maneira. Dito isto, no que diz respeito aos homossexuais, eu teria evitado usar a palavra “casais” na declaração, precisamente porque acredito que gera e promove precisamente a confusão que o texto diz querer evitar.

Uma porta aberta ou uma gaffe desnecessária

A pergunta que se impõe, a meu ver, é se esta declaração era necessária. Há quem diga que sim, porque aquilo que eu e outros consideramos evidências não as eram para todos. Haveria padres e bispos que se recusariam a abençoar um homem só porque estava numa relação homossexual, por exemplo. Acredito que sim, mas sinceramente parece-me que aquilo que a declaração urge era já prática mais que habitual.

Convence-me mais a ideia de que o Papa queria, com esta declaração, dar mais um sinal às pessoas em uniões irregulares de que se devem aproximar da Igreja, que as portas estão abertas, e que as coisas que nas suas vidas estão em dessintonia com o Evangelho devem ser resolvidas dentro da Igreja, e não fora, como se só os perfeitos e imaculados pudessem ter acesso à mesma.

O problema é que, se era essa a intenção, o resultado acabou por ser, em larga medida, contrário. A reacção causada pelo texto – quer pela ambiguidade que contém, quer pela que alguns fizeram os possíveis para encontrar – acabou por passar o sinal de que a Igreja Universal está dividida sobre os méritos de dar bênçãos a pessoas cuja vida não encaixa na perfeição sugerida. Isto passa tudo menos uma imagem de porta aberta.

Alguns temiam que o documento passaria a ser substituído por um vago e etéreo “espírito do Fiducia Supplicans” que passaria a justificar a bênção de facto, litúrgica, de uniões irregulares. Seria contrário ao texto da declaração em si? Sim, seria. Mas isso não seria impedimento para o exagero de alguns pseudo-iluminados. Se acho que esta preocupação é legítima, também acho que a sucessão de intervenções e, agora, este comunicado da Santa Sé, mostram claramente que esse não é um propósito disfarçado do Papa ou do prefeito do Dicastério.

Fortaleza v. Hospital de Campanha

Depois há o problema do timing. Porquê lançar esta declaração precisamente numa altura em que a civilização cristã parece estar a travar – e a perder – uma guerra contra as ideologias que promovem a homossexualidade e as siglas-alfabeto? Não se trata de uma concessão ao espírito dos tempos?

O problema com esta ideia é de que parte do pressuposto do conflito, a famosa guerra cultural. A Igreja contra o mundo. A Igreja fortaleza. Se há alguma coisa que o Papa tem demonstrado durante o seu pontificado é de que essa não é uma visão própria para os cristãos. Não somos a Igreja entrincheirada, somos a Igreja hospital de campanha, e as hordas que nos batem à porta, ainda que professem ódio a tudo o que somos e defendemos, não são inimigos a abater, mas vítimas estropiadas de uma cultura individualista e niilista, uma cultura de morte. Somos chamados a ajudá-las, a não a derrotá-las.

Visto desta perspectiva, não havia melhor altura para este gesto de boa-vontade. O que não implica que o gesto tomasse esta forma. Pessoalmente acho que teria sido muito mais útil, e bem mais ao estilo do Papa, fazê-lo de forma informal, em conversa ou entrevista, ou ter tomado mesmo a iniciativa de dar uma destas bênçãos não litúrgicas. Acredito que causaria bem menos polémica do que uma declaração definitiva que afinal não é tão definitiva assim.

O que temos agora é um ciclo de explicações e esclarecimentos, com o prefeito para o Dicastério para a Doutrina da Fé a ver-se na situação de ter de publicar um comunicado a explicar que a sua mais recente declaração não é “herética, contrária à Tradição da Igreja ou blasfema”. Não é uma posição confortável para o guardião da ortodoxia, resta ver se não é pior a emenda que o soneto.

Wednesday 3 January 2024

A Paz que é Dom de Deus

Assinalando o ano da morte de Bento XVI, e o início de um novo ano, publicamos neste dia a homilia, ligeiramente encurtada, que o anterior Papa fez no dia 1 de Janeiro de 2013, o seu último ano de pontificado.

Queridos irmãos e irmãs!

“Que Deus nos dê a sua graça e a sua bênção, e sua face resplandeça sobre nós”. Assim aclamamos com as palavras do Salmo 66, depois de termos escutado, na primeira leitura a antiga bênção sacerdotal sobre o povo da aliança. É particularmente significativo que, no início de cada ano novo Deus projete sobre nós, seu povo, o brilho do seu santo Nome, o Nome que é pronunciado três vezes na fórmula solene da bênção bíblica. Não menos significativo é o fato de que seja dado ao Verbo de Deus - que “se fez carne e habitou entre nós», como «a luz de verdade que ilumina todo ser humano” (Jo 1, 9.14) -, oito dias depois seu natal - como nos narra o Evangelho de hoje - o nome de Jesus (cf. Lc 2, 21)

(…)

O homem é feito para a paz, que é dom de Deus. Tudo isso me sugeriu buscar inspiração, para esta Mensagem, às palavras de Jesus Cristo: “Bem-aventurados os obreiros da paz, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5, 9).

Esta bem-aventurança “diz que a paz é, simultaneamente, dom messiânico e obra humana.... é paz com Deus, vivendo conforme à sua vontade; é paz interior consigo mesmo, e paz exterior com o próximo e com toda a criação” (Ibid., 2 e 3). Sim, a paz é bem por excelência que deve ser invocado como um dom de Deus e, ao mesmo tempo, que deve ser construído com todo o esforço.

Podemos perguntar-nos: qual é o fundamento, a origem, a raiz dessa paz? Como podemos sentir em nós a paz, apesar dos problemas, da escuridão e das angústias? A resposta nos é dada pelas leituras da liturgia de hoje. Os textos bíblicos, a começar pelo Evangelho de Lucas, há pouco proclamado, nos propõe a contemplação da paz interior de Maria, a Mãe de Jesus.

Durante os dias em que “deu à luz o seu filho primogênito” (Lc 2,7), Maria deve de afrontar muitos acontecimentos imprevistos: não só o nascimento do Filho, mas antes a árdua viagem de Nazaré à Belém; não encontrar um lugar no alojamento; a procura de um abrigo improvisado no meio da noite; e depois o cântico dos anjos, a visita inesperada dos pastores.
Maria, no entanto, não se perturba com todos estes fatos, não se agita, não se abala com acontecimentos que lhe superam; Ela simplesmente considera, em silêncio, tudo quanto acontece, guardando na sua memória e no seu coração, refletindo com calma e serenidade. É esta é a paz interior que queremos ter em meio aos acontecimentos às vezes tumultuosos e confusos da história, acontecimentos cujo sentido muitas vezes não conseguimos compreender e que nos deixam abalados.

A passagem do Evangelho termina com uma menção à circuncisão de Jesus. Conforme a Lei de Moisés, oito dias após o nascimento, o menino devia ser circuncidado, e nesse momento lhe era dado o nome. O próprio Deus, através de seu mensageiro, dissera a Maria - e também a José – que o nome a ser dado para a criança era “Jesus” (cf. Mt 1, 21; Lc 1, 31), e assim aconteceu. Aquele nome que Deus já tinha estabelecido antes mesmo que o Menino fosse concebido, lhe é dado oficialmente no momento da circuncisão.

E isto marca definitivamente a identidade de Maria: ela é “a mãe de Jesus”, ou seja, a mãe do Salvador, do Cristo, do Senhor. Jesus não é um homem como qualquer outro, mas é o Verbo de Deus, uma das Pessoas divinas, o Filho de Deus: por isso a Igreja deu a Maria o título de Theotokos, ou seja, “Mãe de Deus”.

A primeira leitura nos recorda que a paz é um dom de Deus e está ligada ao esplendor da face de Deus, de acordo com o texto do Livro dos Números, que transmite a bênção usada pelos sacerdotes do povo de Israel nas assembleias litúrgicas. Uma bênção que por três vezes repete o santo Nome de Deus, o nome impronunciável, ligando a cada repetição o santo Nome a dois verbos que indicam uma ação em favor do homem: «O Senhor te abençoe e te guarde. O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face, e se compadeça de ti. O Senhor volte para ti o seu rosto e te dê a paz» (6, 24-26). A paz é, portanto, o ponto culminante dessas seis ações de Deus em nosso favor, em que Ele nos dirige o esplendor da sua face.

Para a Sagrada Escritura, a contemplar a face de Deus é a felicidade suprema: «o cobristes de alegria em vossa face», diz o salmista (Sl 21, 7). Da contemplação da face de Deus nascem alegria, paz e segurança. Mas o que significa concretamente contemplar a face do Senhor, tal como se entende no Novo Testamento?

Significa conhecê-Lo diretamente, tanto quanto é possível nesta vida, através de Jesus Cristo, no qual Deus se revelou. Deleitar-se com o esplendor da face de Deus significa penetrar no mistério de seu Nome manifestado a nós por Jesus, compreender algo da sua vida íntima e da sua vontade, para que possamos viver de acordo com seu desígnio de amor para a humanidade.

O apóstolo Paulo expressa justamente isso na segunda leitura, da Carta aos Gálatas (4, 4-7), afirmando que do Espírito, que no íntimo dos nossos corações, clama: “Abá! Ó Pai». É o clamor que brota da contemplação da verdadeira face de Deus, da revelação do mistério do Nome. Jesus diz: «Manifestei o teu nome aos homens” (Jo 17, 6).

O Filho de Deus feito carne nos deu a conhecer o Pai, nos fez perceber no seu rosto humano visível a face invisível do Pai; através do dom do Espírito Santo derramado em nossos corações, nos fez conhecer que n’Ele nós também somos filhos de Deus, como diz São Paulo na passagem que escutamos: “Porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abá! Ó Pai” (Gal 4, 6).

Queridos irmãos e irmãs, eis o fundamento da nossa paz: a certeza de contemplar em Jesus Cristo o esplendor da face de Deus, de ser filhos no Filho e ter, assim, na estrada da vida, a mesma segurança que a criança sente nos braços de um Pai bom e onipotente. O esplendor da face do Senhor sobre nós, que nos dá a paz, é a manifestação da sua paternidade; o Senhor dirige sobre nós a sua face, se mostra como Pai e nos dá a paz. Aqui está o princípio daquela paz profunda – “paz com Deus” – que está intimamente ligada à fé e à graça, como escreve São Paulo aos cristãos de Roma (Rm 5, 2).

Nada pode tirar daqueles que creem esta paz, nem mesmo as dificuldades e os sofrimentos da vida. De fato, os sofrimentos, as provações e a escuridão não corroem, mas aumentam a nossa esperança, uma esperança que não decepciona, porque "o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado" (Rm 5, 5).

Que a Virgem Maria, que hoje veneramos com o título de Mãe de Deus, nos ajude a contemplar a face de Jesus, Príncipe da Paz. Que Ela nos ajude e nos acompanhe neste novo ano; que Ela obtenha para nós e para o mundo inteiro o dom da paz. Amém!


Bento XVI, Joseph Aloisius Ratzinger, foi eleito Papa a 19 de Abril de 2005, tornando-se o 265º sucessor de São Pedro. Tornou-se Papa emérito com a sua resignação, a 28 de Fevereiro de 2013. Morreu, aos 95 anos, no dia 31 de Dezembro de 2022.

(Publicado em The Catholic Thing na Segunda-feira, 1 de Janeiro de 2024)

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