Wednesday 4 October 2023

Papa autoriza bênçãos a uniões homossexuais? Calma aí…

Sempre que o Papa diz alguma coisa ligada a um assunto minimamente polémico, é certo que acontecerão duas coisas. Primeiro virão pessoas – frequentemente jornalistas e activistas – dizer que o Papa acaba de virar de pernas para o ar a posição da Igreja Católica sobre o assunto; e logo de seguida vêm pessoas explicar que o Papa não disse nada daquilo, e se disse não devia ter dito, ou que é indiferente, porque ele não o poderia dizer de qualquer maneira.

O que raramente vemos é tempo de antena dado a interpretar as palavras do Papa de forma correcta e ponderada.

É certo que com o Papa Francisco a questão põe-se mais vezes, até porque ele tem o hábito de se pronunciar de forma mais espontânea sobre tudo o que lhe perguntam, e também – há que ceder este ponto aos seus mais ferozes críticos – porque tende a formular as suas posições de forma ambígua, permitindo diferentes interpretações. Mas também é verdade que aconteceu o mesmo, e mais que uma vez, com o Papa Bento XVI.

A mais recente questão tem a ver com as bênçãos para uniões homossexuais.

Vamos então aos factos. Um grupo de cardeais endereçou ao Papa Francisco uma série de questões, vulgo “dúbia”, incluindo uma pergunta sobre se a prática “generalizada” de abençoar uniões homossexuais está de acordo com o magistério da Igreja Católica.  

Em resposta, o Papa disse que para a Igreja o casamento é entre um homem e uma mulher, e que por isso a Igreja se opõe a qualquer prática ou bênção que possa gerar confusão sobre esse assunto. Isto parece claro.

Mas a resposta prossegue, apelando à caridade pastoral quando se lida com pessoas. “A defesa da verdade objectiva não é a única expressão dessa caridade, que também é composta de bondade, paciência, compreensão, carinho e encorajamento. Logo, não podemos tornar-nos juízes que apenas negam, rejeitam e excluem”.

Diz ainda que, por esta razão, é necessário exercer prudência pastoral para determinar “se existem formas de bênçãos, solicitadas por uma ou mais pessoas, que não transmitem um conceito errado de casamento. Porque quando uma bênção é solicitada, isso expressa um pedido de auxílio de Deus, um desejo de poder viver melhor, confiança num Pai que nos pode ajudar a viver melhor”.

Por fim, diz a resposta, “embora existam situações que, de um ponto de vista objectivo, são moralmente inaceitáveis, a caridade pastoral requer que não tratemos como pecadores pessoas cuja culpa ou responsabilidade possa ser atenuada por vários factores”.

Bênçãos há muitas

A primeira conclusão que podemos tirar é que é muito exagerado dizer que o Papa está com isto a reverter a posição tradicional da Igreja sobre bênçãos a uniões homossexuais. Não há nada nesta resposta que indique que a união em si pode ou deve ser objecto de uma bênção. Pelo contrário, na medida em que tal bênção necessariamente implicaria uma confusão com o casamento, isso deve mesmo ser evitado.

Mas o Papa vai mais longe e diz que outra coisa são bênçãos solicitadas por pessoas – seja um, ou um par – que são homossexuais e estão numa união homossexual. Ou seja, é possível abençoar duas pessoas que estão numa relação, sem estar a abençoar a própria da relação.

Vejamos alguns exemplos hipotéticos. Dois homens homossexuais que estão numa relação e estão prestes a fazer uma viagem juntos, pedem a um padre uma bênção para a viagem. O padre pode dar essa bênção, até em conjunto, sem que isso implique, ou seja entendido como, uma bênção aos dois enquanto casal, ou o abençoar de tudo o que se passa na sua relação.

Mais, imaginemos que dois homens que estão numa relação homossexual decidem acolher em sua casa crianças com deficiência, com o sentido de missão de dar a essas crianças um lar onde possam sentir o amor de uma família, e que pedem a um padre uma bênção para esse empreendimento. O padre pode dar essa bênção, como abençoaria outras duas pessoas que se estão a dedicar a uma missão de ajudar os mais frágeis e vulneráveis, sem que passe pela cabeça de ninguém que ele está a dar luz verde ao que se passa na intimidade do quarto daqueles dois homens.

O mesmo se poderia aplicar se em vez de dois homens falássemos de um casal, homem e mulher, que vivem juntos, mas não são casados, talvez por um deles ser divorciado.

No fundo, o Papa está a dizer que todos temos fragilidades e pecados, e que uma bênção, seja por que razão for, não deve ser entendida como a validação ou o encorajamento desse nosso pecado ou fragilidade, mas sim como uma ajuda para o nosso crescimento espiritual e constante conversão. Se fosse necessário estarmos todos em estado de graça e impecabilidade para recebermos bênçãos, então as bênçãos pouco nos acrescentariam.

A Igreja continua a ter um ideal para a humanidade, mas não afasta de nós o seu auxílio só porque não estamos ainda nesse ideal, da mesma forma que não se deve mostrar condescendente com essas fraquezas ou fragilidades, antes ajudando-nos a ultrapassá-las, compreendendo, todavia, que todos estamos em diferentes fases de conversão e crescimento, e por isso não se pode nem deve colocar a mesma exigência a todos, indiscriminadamente.

Por isso não, o Papa não diz que se possa abençoar “uniões” homossexuais, mas isso não significa que pessoas que estão em uniões homossexuais não possam pedir bênçãos para as áreas mais variadas das suas vidas, seja pessoais, seja em conjunto. A isso chama-se cuidado pastoral, a arte de acompanhar espiritualmente as pessoas partindo do lugar, tempo e estado em que estão, e não de exigir que estejam primeiro onde achamos que deviam estar antes de lhes estendermos a mão.

5 comments:

  1. Muito obrigado por este texto. Parece-me o mesmo. E também me parece que continua válido o principal: todos temos de nos converter, ninguém deve ficar apenas onde está agora na caminhada. Mas compreensão e acolhimento a cada pessoa em concreto, esteja onde estiver, é uma coisa do Evangelho, de sempre, não só do Papa Francisco (que faz muito bem em recordar).

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  2. Miguel Duarte Silva5 October 2023 at 15:39

    Muito obrigado pelo esclarecimento, com o qual concordo.

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  3. Nazito Mira Delgado6 October 2023 at 16:26

    Muito bom artigo Filipe. Um abraço
    Bernardo

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  4. Aconselho a leitura deste texto e ver o vídeo do bispo espanhol José Ignacio Munilla
    https://infovaticana.com/2023/10/10/el-obispo-munilla-explica-el-no-de-la-iglesia-a-la-bendicion-de-parejas-homosexuales/?utm_medium=social&utm_source=whatsapp&utm_campaign=shareweb&utm_content=footer&utm_origin=footer

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