Wednesday 14 June 2023

Tornar perceptível o bater do Senhor

Corpus Christi 
Bento XVI
é uma festa singular e constitui um encontro importante de fé e de louvor para cada comunidade cristã. É uma festa que teve origem num determinado contexto histórico e cultural: nasceu com a finalidade de reafirmar abertamente a fé do Povo de Deus em Jesus Cristo vivo e realmente presente no santíssimo Sacramento da Eucaristia. É uma festa instituída para adorar, louvar e agradecer publicamente ao Senhor, que "no Sacramento eucarístico continua a amar-nos "até ao fim", até à doação do seu corpo e do seu sangue" (Sacramentum caritatis, 1).

Corpus Christi constitui assim uma retomada do mistério da Quinta-Feira Santa, quase em obediência ao convite de Jesus para "proclamar sobre os telhados" o que Ele nos transmitiu no segredo (cf. Mt 10, 27). Os Apóstolos receberam do Senhor o dom da Eucaristia na intimidade da Última Ceia, mas destinava-se a todos, ao mundo inteiro.

Eis por que deve ser proclamado e exposto abertamente, para que todos possam encontrar "Jesus que passa" como acontecia pelas estradas da Galileia, da Samaria e da Judeia; para que todos, recebendo-o possam ser curados e renovados pela força do seu amor. É esta, queridos amigos, a herança perpétua e viva que Jesus nos deixou no Sacramento do seu Corpo e do seu Sangue.

Precisamente porque se trata de uma realidade misteriosa que ultrapassa a nossa compreensão, não devemos surpreender-nos se também hoje muitos têm dificuldade em aceitar a presença real de Cristo na Eucaristia. Não pode ser de outra forma. Foi assim desde o dia em que, na sinagoga de Cafarnaum, Jesus declarou abertamente ter vindo para nos dar em alimento a sua carne e o seu sangue (cf. Jo 6, 26-58).

A linguagem pareceu "dura" e muitos se retiraram. Então como agora, a Eucaristia permanece "sinal de contradição" e não pode deixar de sê-lo, porque um Deus que se faz carne e se sacrifica a si mesmo pela vida do mundo põe em dificuldade a sabedoria dos homens.

Mas com humilde confiança, a Igreja faz sua a fé de Pedro e dos outros Apóstolos, e com eles proclama, e nós proclamamos: "A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna" (Jo 6, 68). Renovemos também nós esta tarde a profissão de fé em Cristo vivo e presente na Eucaristia. Sim, "é certeza para nós cristãos: / o pão transforma-se em carne, / o sangue faz-se vinho".

Como o maná para o povo de Israel, assim para cada geração cristã a Eucaristia é alimento indispensável que ampara enquanto atravessa o deserto deste mundo, ressequido por sistemas ideológicos e económicos que não promovem a vida, mas ao contrário a mortificam; um mundo no qual domina a lógica do poder e do ter em vez da do serviço e do amor; um mundo no qual com frequência triunfa a cultura da violência e da morte.

Mas Jesus vem ao nosso encontro e infunde-nos segurança: Ele mesmo é "o pão da vida" (Jo 6, 35.48). Repetiuno-lo nas palavras do Cântico ao Evangelho: "Eu sou o pão vivo descido do céu; quem come deste pão viverá eternamente" (cf. Jo 6, 51).

São Lucas, narrando o milagre da multiplicação dos dois peixes e dos cinco pães com que Jesus deu de comer à multidão "numa zona deserta" conclui dizendo: "Todos comeram e ficaram saciados" (cf. Lc 9, 11b-17).

Em primeiro lugar gostaria de ressaltar este "todos". De facto é desejo do Senhor que cada ser humano se alimente da Eucaristia, porque a Eucaristia é para todos.

Se na Quinta-Feira Santa é ressaltado o vínculo estreito que existe entre a Última Ceia e o mistério da morte de Jesus na cruz, hoje, festa do Corpus Christi, com a procissão e a adoração coral da Eucaristia chamamos a atenção sobre o facto de que Cristo se imolou pela humanidade inteira. A sua passagem entre as casas e pelas estradas da nossa Cidade será para quantos nela habitam uma oferenda de alegria, de vida imortal, de paz e de amor.

No trecho evangélico, sobressai um segundo elemento: o milagre realizado pelo Senhor contém um convite explícito a oferecer cada qual a própria contribuição. Os dois peixes e os cinco pães indicam a nossa contribuição, pobre mas necessária, que Ele transforma em doação de amor por todos.

No final da Celebração eucarística unir-nos-emos em procissão, como que para levar idealmente o Senhor Jesus por todas as estradas e bairros de Roma. Imergi-lo-emos, por assim dizer, na quotidianidade da nossa vida, para que Ele caminhe onde nós caminhamos, para que Ele viva onde nós vivemos.

De facto, sabemos como nos recordou o apóstolo Paulo na Carta aos Coríntios, que em cada Eucaristia, também na desta tarde, nós "anunciamos a morte do Senhor até que ele venha" (1 Cor 11, 26). Nós caminhamos pelas estradas do mundo sabendo que O temos ao nosso lado, amparados pela esperança de o poder ver um dia face a face revelado no encontro definitivo.

Entretanto, já agora ouvimos a sua voz que repete, como lemos no Livro do Apocalipse: "Olha que Eu estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, Eu estarei na minha casa e cearei com ele e ele comigo" (Ap 3, 20).

A festa do Corpus Christi quer tornar perceptível, não obstante a surdez do nosso ouvido interior, este bater do Senhor. Jesus bate à porta do nosso coração e pede-nos para entrar não só pelo espaço de um dia, mas para sempre. 

- Excerto da homilia do Papa Bento XVI no dia do Corpo de Cristo de 2007


Bento XVI, Joseph Aloisius Ratzinger, foi eleito Papa a 19 de Abril de 2005, tornando-se o 265º sucessor de São Pedro. Tornou-se Papa emérito com a sua resignação, a 28 de Fevereiro de 2013. Morreu, aos 95 anos, no dia 31 de Dezembro de 2022.

(Publicado em The Catholic Thing no domingo, 11 de Junho de 2023)

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