Bento XVI |
O Corpus Christi constitui
assim uma retomada do mistério da Quinta-Feira Santa, quase em obediência ao
convite de Jesus para "proclamar sobre os telhados" o que Ele nos
transmitiu no segredo (cf. Mt 10, 27). Os Apóstolos receberam
do Senhor o dom da Eucaristia na intimidade da Última Ceia, mas destinava-se a
todos, ao mundo inteiro.
Eis por que deve ser proclamado e
exposto abertamente, para que todos possam encontrar "Jesus que
passa" como acontecia pelas estradas da Galileia, da Samaria e da Judeia;
para que todos, recebendo-o possam ser curados e renovados pela força do seu
amor. É esta, queridos amigos, a herança perpétua e viva que Jesus nos deixou
no Sacramento do seu Corpo e do seu Sangue.
Precisamente porque se trata de
uma realidade misteriosa que ultrapassa a nossa compreensão, não devemos
surpreender-nos se também hoje muitos têm dificuldade em aceitar a presença
real de Cristo na Eucaristia. Não pode ser de outra forma. Foi assim desde o
dia em que, na sinagoga de Cafarnaum, Jesus declarou abertamente ter vindo para
nos dar em alimento a sua carne e o seu sangue (cf. Jo 6,
26-58).
A linguagem pareceu
"dura" e muitos se retiraram. Então como agora, a Eucaristia
permanece "sinal de contradição" e não pode deixar
de sê-lo, porque um Deus que se faz carne e se sacrifica a si mesmo pela vida
do mundo põe em dificuldade a sabedoria dos homens.
Mas com humilde confiança, a
Igreja faz sua a fé de Pedro e dos outros Apóstolos, e com eles proclama, e nós
proclamamos: "A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida
eterna" (Jo 6, 68). Renovemos também nós esta tarde a
profissão de fé em Cristo vivo e presente na Eucaristia. Sim, "é
certeza para nós cristãos: / o pão transforma-se em carne, / o sangue faz-se
vinho".
Como o maná para o povo de
Israel, assim para cada geração cristã a Eucaristia é alimento indispensável
que ampara enquanto atravessa o deserto deste mundo, ressequido por sistemas
ideológicos e económicos que não promovem a vida, mas ao contrário a
mortificam; um mundo no qual domina a lógica do poder e do ter em vez da do
serviço e do amor; um mundo no qual com frequência triunfa a cultura da
violência e da morte.
Em primeiro lugar gostaria de
ressaltar este "todos". De facto é desejo do Senhor que cada ser
humano se alimente da Eucaristia, porque a Eucaristia é para todos.
Se na Quinta-Feira Santa é
ressaltado o vínculo estreito que existe entre a Última Ceia e o mistério da
morte de Jesus na cruz, hoje, festa do Corpus Christi, com a
procissão e a adoração coral da Eucaristia chamamos a atenção sobre o facto de
que Cristo se imolou pela humanidade inteira. A sua passagem entre as casas e
pelas estradas da nossa Cidade será para quantos nela habitam uma oferenda de
alegria, de vida imortal, de paz e de amor.
No trecho evangélico, sobressai
um segundo elemento: o milagre realizado pelo Senhor contém um convite
explícito a oferecer cada qual a própria contribuição. Os dois peixes e os
cinco pães indicam a nossa contribuição, pobre mas necessária, que Ele
transforma em doação de amor por todos.
No final da Celebração
eucarística unir-nos-emos em procissão, como que para levar idealmente o Senhor
Jesus por todas as estradas e bairros de Roma. Imergi-lo-emos, por assim dizer,
na quotidianidade da nossa vida, para que Ele caminhe onde nós caminhamos, para
que Ele viva onde nós vivemos.
De facto, sabemos como nos
recordou o apóstolo Paulo na Carta aos Coríntios, que em cada
Eucaristia, também na desta tarde, nós "anunciamos a morte do Senhor até
que ele venha" (1 Cor 11, 26). Nós caminhamos pelas
estradas do mundo sabendo que O temos ao nosso lado, amparados pela esperança
de o poder ver um dia face a face revelado no encontro definitivo.
Entretanto, já agora ouvimos a
sua voz que repete, como lemos no Livro do Apocalipse: "Olha
que Eu estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, Eu
estarei na minha casa e cearei com ele e ele comigo" (Ap 3,
20).
A festa do Corpus Christi quer
tornar perceptível, não obstante a surdez do nosso ouvido interior, este bater
do Senhor. Jesus bate à porta do nosso coração e pede-nos para entrar não só
pelo espaço de um dia, mas para sempre.
- Excerto da homilia do Papa Bento XVI no dia do Corpo de Cristo de 2007
Bento XVI, Joseph Aloisius Ratzinger, foi eleito Papa a 19 de Abril de 2005, tornando-se o 265º sucessor de São Pedro. Tornou-se Papa emérito com a sua resignação, a 28 de Fevereiro de 2013. Morreu, aos 95 anos, no dia 31 de Dezembro de 2022.
(Publicado em The Catholic Thing no domingo, 11 de Junho de 2023)
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