Wednesday, 21 June 2023

Amor Real e Irreal

Stephen P. White

Há muitos anos, quando eu e a minha mulher estávamos noivos, fizemos um teste chamado “FOCCUS Inventory”, que é uma espécie de prova de compatibilidade que a diocese exige a todos os jovens casais que se estão a preparar para o matrimónio. O objectivo do exercício, se bem me lembro, era identificar áreas de potencial conflito ou desacordo entre os futuros marido e mulher, para que a fonte de fricção, ou de potencial fricção, pudesse ser abordado antes, e não depois, de se casarem.

O casamento é muito mais (e por vezes muito menos) do que aquilo que dois jovens possam imaginar. Não é mal pensado identificar de antemão alguns dos elementos mais mundanos, mas não menos importantes, da beleza do casamento. Nem que seja para dar ao sacerdote alguma ideia das rochas submersas que se encontram no caminho, ainda que o casal se mantenha obstinadamente ingénuo.

Fizemos o teste separadamente e depois encontrámo-nos com o pároco para rever os resultados. Ele recordou-nos que o teste é essencialmente um diagnóstico. Não existem respostas “correctas” ou “erradas”, assegurou-nos, apenas respostas que podem apresentar ocasião para uma reflexão, consideração e conversa mais aprofundadas. Só que, estávamos prestes a descobrir, afinal havia respostas erradas.

Muitas das perguntas na prova eram sobre o tipo de consideração prática que poderia facilmente passar despercebida a um par de jovens apaixonados: Quem vai tratar das finanças? Já conversaram sobre como os filhos podem afectar os planos de carreira para um ou ambos? Espera que o seu futuro esposo mude depois de se casar?

Acontece que eu e a minha mulher respondemos de forma diferente a essa última questão. Ela, tão querida, respondeu “não”, o que obviamente é a resposta correcta. As pessoas que se casam com alguém que desesperadamente esperam que se transforme noutra, estão a preparar-se para uma grande desilusão. Raramente é isso que acontece.

Como já devem desconfiar, eu respondi “sim”. Sirenes. Não só tinha dado uma resposta diferente, mas neste teste sem respostas erradas eu tinha claramente dado a resposta errada. O Sr. Prior ficou com um ar muito sério, um olhar de preocupação.

“Precisamos de conversar sobre isto. Stephen, porque é que esperas que ela mude?”. Via-se na cara da minha noiva que ela queria fazer uma pergunta semelhante, embora me pareça que ela a teria posto noutros termos.

Respondi com outra pergunta: “Se o objectivo do casamento é ajudar-nos a crescer em santidade, para que cada um ajude o outro a chegar ao Céu, então de que serve o sacramento se nos deixa iguais ao que somos agora?”

O prior suspirou, teceu um sorriso irónico, e comentou: “Não é isso que eles querem dizer com a pergunta”.

Não pude deixar de ripostar: “Pois devia ser. E seja como for, é isso que eu quero dizer com a minha resposta”.

Agora foi a vez de ela, a minha bela noiva, suspirar. Ela não estava sob qualquer ilusão, sabia muito bem que se ia casar com um espertalhão. Graças a Deus para mim, e como já vimos, ela tinha todas as expectativas de que eu seria assim para sempre. E ainda assim avançou.

O objectivo desta história não é mostrar-vos que a minha mulher é paciente e compreensiva, ou pelo menos não é esse o único objectivo. O drama de cada vida humana passa-se entre a pessoa que somos e a pessoa em que nos estamos a transformar. Estamos todos algures no meio. Arriscamos o desastre se não aspirarmos a ser mais do que somos – se não esperamos, rezamos e trabalhamos para mudar, para nos convertermos, para nos tornarmos cada vez mais a pessoa que somos chamados a ser.

Ao mesmo tempo, esta ideia de “a pessoa que eu devo ser” pode tornar-se também uma ilusão. É tão fácil como é perigoso apaixonar-se por uma ideia, seja uma versão idealizada de nós mesmos ou de outros. É um hábito peculiarmente humano ver nos outros aquilo que desejamos ver, e de acreditar naquilo que queremos que seja verdade. É curioso como o coração humano pode estar tão ansioso de acreditar que os seus desejos sejam verdade.

As amizades e os amores mais verdadeiros não são forjados a partir de ideais puros ou de meras ligações mundanas. Somos corpo e alma, e a exaltação de um acima do outro ao ponto de os separar invariavelmente conduz à destruição de ambos. O homem que ama a “humanidade” pode facilmente não amar o seu vizinho. O que ama aquilo que é seu – ele próprio, ou a sua tribo – acima de, e contra todos os outros, acaba por diminuir ambos.

A amizade humana não existe como abstracção. A ideia da amizade não é um amigo. E a ideia da família ou da nação não substitui essas realidades. Mas o homem também não se pode tornar ele mesmo se o seu coração nunca for para além da sua própria carne e vida.

Uma das passagens mais citadas do Concílio, da Gaudium et Spes tantas vezes citada por João Paulo II, chega ao cerne da questão:

Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. Adão, o primeiro homem, era efectivamente figura do futuro, isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime. Não é por isso de admirar que as verdades acima ditas tenham n'Ele a sua fonte e n'Ele atinjam a plenitude.

Compreender isto é compreender o mundo como ele realmente é. É aprender a diferença entre o amor real e irreal. Tanta da nossa história tem sido uma derrapagem contínua entre o materialismo e o idealismo. No centro, pode-se dizer, encontra-se o Deus Homem, Cristo Encarnado, mantendo toda a criação em conjunto. Nele, começamos a fazer sentido para nós mesmos. 


Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado em The Catholic Thing na Quinta-feira, 15 de Junho de 2023)

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