Wednesday 11 January 2017

Filémon e o Novo Homem em Cristo

Randall Smith
Um amigo meu protestante fez uma observação interessante, o outro dia, sobre a Epístola de São Paulo a Filémon. Esta carta é muitas vezes encarada com algum embaraço, porque aparentemente Paulo está a enviar um escravo fugitivo, Onésimo, de volta para o seu senhor, um líder da Igreja Colossense chamado Filémon. “Como é que Paulo podia mandar um escravo de volta ao seu senhor?”, pergunta-se, “porque não proibiu simplesmente a escravatura?”

Alguns académicos modernos responderão, indubitavelmente, que Paulo, sendo um homem da sua época, não compreendia o quão horrível era a escravatura. Nós, que vivemos numa era mais iluminada, temos a visão que lhe faltava. Talvez seja verdade – todos temos pontos cegos – mas eu prefiro dar o benefício da dúvida às pessoas, sobretudo se estavam a escrever textos sob inspiração do Espírito Santo. Parece-me mais seguro.

Eis o que diz São Paulo:

Embora tenha toda a autoridade em Cristo para te impor o que mais convém, levado pelo amor, prefiro pedir como aquele que sou: Paulo, um ancião e, agora, até prisioneiro por causa de Cristo Jesus. Peço-te pelo meu filho, que gerei na prisão: Onésimo, que outrora te era inútil, mas agora é, para ti e para mim, bem útil. É ele que eu te envio: ele, isto é, o meu próprio coração. Eu bem desejava mantê-lo junto de mim, para, em vez de ti, se colocar ao meu serviço nas prisões que sofro por causa do evangelho. Porém, nada quero fazer sem o teu consentimento, para que o bem que fazes não seja por obrigação, mas de livre vontade. É que, afinal, talvez tenha sido por isto que ele foi afastado por breve tempo: para que o recebas para sempre, não já como escravo, mas muito mais do que um escravo: como irmão querido; isto especialmente para mim, quanto mais para ti, que com ele estás relacionado tanto humanamente como no Senhor. Se, pois, me consideras em comunhão contigo, recebe-o como a mim próprio. E se ele te causou algum prejuízo ou alguma coisa te deve, põe isso na minha conta.

Paulo, prisioneiro por Cristo, insta Filémon a não lançar na prisão o seu “amado filho” Onésimo, cujo “pai” ele se tornou durante o seu cativeiro. Na qualidade de escravo, Onésimo era “inútil” para Filémon. Agora, regressando não como escravo mas como irmão, pode ser útil a ambos, não para carregar os fardos das suas possessões terrenas inúteis, mas ajudando-os a carregar a cruz que conduz à salvação celeste.

“Recebe-o como a mim próprio”, diz Paulo, um homem acostumado a pedir aos outros que o recebam a ele como se recebessem Cristo. Se receber Paulo é receber Cristo, e se receber Onésimo é receber Paulo, então Filémon deve receber Onésimo como Cristo, aquele que “se esvaziou da sua divindade”, lavou os pés dos seus discípulos e lhes disse: “Estou entre vós como aquele que serve”, para que os primeiros sejam os últimos e aquele que seria o mestre venha a servir os outros.

“Se ele te causou algum prejuízo ou alguma coisa te deve”, diz Paulo a Filémon, “põe isso na minha conta”. Seria necessário Paulo dizer mais alguma coisa para recordar a Filémon a sua dívida não só para com Paulo, mas para Deus – Dívida essa paga por inteiro por Cristo? Paulo sabe que, tendo em conta tudo quanto Filémon lhe deve, poderia simplesmente dar-lhe uma ordem. Mas nesse caso Filémon não estaria a dar livremente, e Paulo sabe bem a diferença entre a obediência externa a um mandamento e aquilo que significa tornar-se um “homem novo”, inspirado por uma dádiva livre de amor.

Onésimo regressa a casa de Filémon
Por isso sim, Paulo envia Onésimo de volta para Filémon, não já como escravo, mas como “irmão” – um irmão em Cristo. A base da sua relação foi inteiramente transformada e com este gesto Paulo semeou as sementes que levarão ao fim da escravatura, não através de um tratado político cujo objectivo seja dirigir a partir de cima a aplicação do poder político, mas procurando mudar corações, levedando o pão a partir de dentro. Planta-se a semente nesta casa, com esta relação, e deixa-se a vida nova crescer daqui para o exterior.

Por mais “imperfeita” que pensemos que foi a resposta de Paulo ao problema da escravatura, não é verdade que nos deparamos com problemas semelhantes no nosso tempo? Existem instituições que sabemos que estão marcadas pela decadência da condição humana, contudo, não temos nem o poder nem a autoridade para as abolir. Burocracias que denigrem as pessoas em vez de as dignificar; estruturas económicas que enriquecem poucos e deixam os pobres sem meios de subsistência; mecanismos financeiros que protegem as pessoas das consequências morais das suas decisões de investimento.

Mas poderíamos viver sem as funções organizativas fornecidas pelas instituições burocráticas? Como é que reestruturávamos a nossa economia e reorganizaríamos a nossa bolsa para servirem melhor e mais fielmente o bem comum? É fácil criticar os males passados; mais difícil é compreender como reformar os aspectos difíceis do nosso sistema sem introduzir nele males ainda maiores do que aqueles que já enfrentamos.

Não nos devemos, então, rever em São Paulo? Sozinho ele não conseguiria reformar todo o Império Romano, nem convencer toda a gente a abandonar a instituição da escravatura. Que fazer?

Mesmo que não possamos fazer mais nada, podemos plantar as sementes e confiar que Deus as ajudará a crescer. Podemos estar dispostos a sacrificar-nos pelo Evangelho e abraçar-nos uns aos outros, não como “escravos” e “mestres”, “ricos” e “pobres”, “fracos” e “fortes”, mas como “irmãos em Cristo”.

Não nos cabe salvar o mundo; esse é o trabalho de Deus. Mas se amarmos os outros como Cristo, plantamos sementes espirituais e abrimos novas perspectivas para futuras gerações que neste momento talvez estejam vedadas ao pensamento humano. Temos de caminhar pela fé, e não à vista, fiéis ao Evangelho que nos foi confiado, mesmo quando parece bizarro ou chocante. Como Filémon certamente se deve ter sentido chocado quando abriu a porta e encontrou uma encomenda de São Paulo: Um antigo escravo, um novo irmão.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no sábado, 7 de Janeiro de 2017)

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