Filip Mazurczak
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Acaba de ser anunciado que o Papa Francisco irá
beatificar o arcebispo Oscar Romero. E faz bem, uma vez que Romero era um santo
pastor que foi morto, enquanto celebrava missa, por defender as vítimas da
repressão no El Salvador, em 1980. Muitos meios de comunicação social, porém,
vão utilizar a decisão do Papa Francisco como uma arma para atacar os seus
antecessores. Os comentadores irão certamente ressuscitar um mito antigo: Que
João Paulo II, cegado por um anticomunismo polaco e obscurantista, maltratou
Romero. Deixem-me já desmontar esta fantasia antes que ganhe terreno.
No obituário publicado após a morte de João Paulo II, em
2005, John Allen Jr., uma das maiores vozes do catolicismo progressista
americano, escreveu que o Papa “disciplinou pessoas que tinham arriscado as
suas vidas para conquistar na América Latina as liberdades que ele queria para
a Polónia. A forma como maltratou o arcebispo-mártir de El Salvador, Oscar
Romero, é apenas um dos exemplos mais bem conhecidos.”
No seu livro “History of the Popes”, o jesuíta John W,
O’Malley afirma que João Paulo II ficou “descontente” com Romero e só
postumamente lhe prestou o devido respeito, abrindo a sua causa de
beatificação.
Entretanto, no filme “Have no Fear: The Life of Pope John
Paul II”, da ABC, o pontífice, representado pelo actor alemão Thomas
Kretschmann, desanca Romero fanaticamente e diz-lhe para ser obediente a Roma.
Só após o assassinato do bispo é que sente remorsos e vai rezar junto ao seu
túmulo, em São Salvador.
Estes são apenas alguns exemplos de um mito duradouro de
que João Paulo II maltratou Romero. Mas o que é que aconteceu de facto?
No diário de Romero há referência a duas audiências que
João Paulo II lhe concedeu, em 1979 e 1980. Na primeira destas reuniões, Romero
fala das dificuldades do seu ministério num país dilacerado pela violência
política. João Paulo II ouve atentamente e compara estas experiências com as
suas, da Polónia, mas aconselha “prudência”. Romero fica com a impressão de que
o Papa o ouviu, mas mostra-se preocupado com a ideia de que os seus assessores
lhe tenham dito coisas críticas sobre ele: “Embora a minha primeira impressão
não tenha sido muito satisfatória, creio que a visita e a conversa foram muito
úteis, uma vez que ele foi muito franco.”
Contudo, antes da segunda reunião, o Cardeal Eduardo
Pironio, um colaborador argentino do Papa, fez um relatório muito elogioso
sobre Romero. O Santo Padre encorajou o arcebispo a lutar com coragem,
abraçou-o e disse-lhe que rezava por El Salvador todos os dias.
O futuro mártir ficou muito contente. No seu diário
escreveu que sentia total aprovação do Papa e “confirmação e a força de Deus
para o [seu] pobre ministério”. Disse ainda que esse dia tinha sido cheio de
“grande satisfação e muitos sucessos pastorais”. Pouco tempo depois, Romero
citou João Paulo II nas suas homilias quaresmais.
Após a morte de Romero, João Paulo II contrariou os
prelados que o queriam representar como um comunista disfarçado. Aquando do seu
assassinato, em 1980, enviou um telegrama a condenar o acto e mandou um seu
representante pessoal, o cardeal mexicano Ernesto Carripio para presidir à
missa do funeral.
Em 1983 visitou El Salvador. Os bispos latino-americanos
suplicaram-lhe para não visitar o túmulo de Romero, mas durante o cortejo ele
mandou desviar o papamóvel em direcção à catedral. Estava fechada, mas esperou
teimosamente que alguém fosse buscar a chave. Depois, rezou junto ao túmulo de
Romero, elogiando-o como um “pastor zeloso que tentou impedir a violência”.
João Paulo II com Oscar Romero |
Repetiu o gesto em 1996. Durante uma cerimónia no Coliseu
de Roma, em 2000, alguns cardeais da América Latina sugeriram que o Papa não
invocasse Romero como um mártir das américas, mas Wojtila fê-lo à mesma.
Então porque é que temos esta imagem popular do fariseu
João Paulo II a criticar Romero?
Quem promove esta narrativa quer usar Romero como um
instrumento para criticar João Paulo II, a quem pintam como um anticomunista
reaccionário, insensível ao sofrimento das pessoas que viviam debaixo de
ditaduras de direita. Querem ainda criticá-lo por condenar as heresias,
incluindo as interpretações marxistas da teologia da libertação.
Naturalmente, esta não passa de uma caricatura. Sim, João
Paulo II era anticomunista. Até os historiadores que não gostam da Igreja
admitem que a sua visita à Polónia em 1979 inspirou a ascensão da
Solidariedade, que desempenhou um papel central no colapso do império
soviético.
Mas João Paulo II não era um Henry Kissinger vestido de
branco. Ele visitou muitos países governados por ditaduras onde o anticomunismo
servia de desculpa para a tirania, como o Brasil, Chile, Haiti e Paraguai, onde
condenou a opressão. Estas visitas foram muitas vezes cruciais para a
restauração da democracia.
De igual forma, a ideia de Romero como um Camilo Torres
salvadorenho é ridícula. Como escrevi noutro local, para além de condenar a
desigualdade de rendimentos e os abusos da junta militar do El Salvador, Romero
também rejeito uma solução cubana para os problemas do seu país e criticou o
imperialismo soviético e o terrorismo de esquerda.
Não existem quaisquer provas de que Romero tenha lido
teologia da libertação (quanto muito terá sido indirectamente influenciado
através da sua amizade com muitos jesuítas que tinham estas tendências). As suas
homilias citam as Escrituras, encíclicas papais, documentos do Vaticano II e
textos da Conferência Episcopal da América Latina, mas nunca teologia marxista
ou da libertação, que ele evitava cuidadosamente.
Algumas pessoas próximas de João Paulo II tentaram impedir
a beatificação de Romero. O já falecido cardeal colombiano Alfonso López
Trujillo – ex-presidente do Conselho Pontifício para a Família e grande
defensor do Direito Natural – opunha-se à beatificação porque acreditava que
ele tinha sido morto em resultado de violência política e não por ódio à fé.
Pela mesma razão encarava com cepticismo a beatificação de Pino Puglisi, um
padre italiano que foi assassinado pela Mafia em 1993.
Mas o próprio João Paulo II nunca interveio para abrandar
o processo de Romero e, pelo contrário, disse ao jornalista Kenneth Woodward
que o mero facto de Romero ter sido assassinado enquanto celebrava missa por um
amigo falecido era o suficiente para ser reconhecido como mártir.
O Papa João Paulo II e o arcebispo Oscar Romero estão
entre os maiores defensores católicos da paz da história moderna. Precisamos de
os compreender como eram verdadeiramente, e não permitir que os seus legados
sejam caricaturados através da distorção da sua verdadeira relação, que era
sobretudo de respeito e apreciação mútua.
Filip Mazurczak contribui regularmente para o Katolicki Miesięcznik “LIST”. Os seus
textos já apareceram também no First Things, The European Conservative e Tygodnik Powszechny.
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