O Papa repetiu esta segunda-feira que a Igreja tem de
reflectir sobre a questão dos segundos casamentos e coisas que tais. A primeira
vez tinha sido no avião, a regressar do Rio de Janeiro, mas na altura isso
ficou quase esquecido no meio de tantas outras coisas que disse.
Este é um dos assuntos que a sociedade mais discute. Todos
conhecemos casais que sofrem por isto.
Por isso esta é uma discussão em que a sociedade vai querer
participar. Para isso, convém ter presente algumas considerações.
Em primeiro lugar, a Igreja não pode nem deve inventar
nestes assuntos. Simplesmente não é assim que ela funciona. A Igreja tem 2000
mil anos de tradição em que se apoiar e tem as escrituras em que se
fundamentar. Qualquer nova abordagem ou solução terá de se apoiar nesses dois
pilares.
O que temos no Evangelho? Jesus é muito claro em relação a
este assunto. Ele condena a noção do divórcio, que existia no seu tempo. Fá-lo utilizando uma palavra que deixa bem claro que a união entre um homem e uma mulher não é para ser rompida e que essa é a ordem das coisas desde a fundação do mundo. Simples. Mas num dos evangelhos o Senhor deixa uma ressalva, que
varia de tradução para tradução e que nalguns casos tem sido traduzido assim:
“Eu vos digo, porém, que qualquer que repudiar sua mulher, salvo
em caso de adultério, e casar com outra, comete adultério; e o que casar
com a repudiada também comete adultério”.
Noutros casos aparece “salvo em caso de união ilegal”.
Muito se debate o verdadeiro alcance destas palavras, mas o
Cristianismo Oriental usa isto como base para permitir, em certos casos, o
segundo casamento. Foi a isto que o Papa se referiu no avião e a mudar alguma
coisa na prática ocidental, seria muito provavelmente neste sentido.
De que estamos a falar?
A esta prática entre os orientais chama-se geralmente
divórcio de misericórdia. Basicamente, o que a Igreja faz é, por uma questão de
misericórdia e de reconhecimento da fraqueza humana, dá uma “segunda chance” a
casais cujo primeiro casamento acabou em fracasso.
Uma nota muito importante é que esse segundo casamento é uma
celebração penitencial, nunca alegre. Reconhece-se, nesta prática, que a
situação não é ideal nem desejada, mas é o que aconteceu.
A Igreja Católica ocidental reconhece e respeita esta
prática, embora a sua seja diferente.*
Contudo, há uma comparação possível na prática da Igreja
Católica, quando permite a homens que foram ordenados padres que sejam
dispensados dos seus votos de celibato, para poderem casar.*
Casamento ortodoxo |
A tradição da Igreja é que o sacramento da ordem é
impeditivo do casamento (já o contrário não é verdade, mas isso é outra
discussão). Por isso, bem vistas as coisas, um padre que seja dispensado ou que
abandone o sacerdócio não devia nunca poder casar numa Igreja. Contudo, a
Igreja, por uma questão de misericórdia (o termo mais correcto é o grego oikonomia),
reconhecendo que a situação não é ideal, dispensa generosamente o sacerdote,
que nunca deixa de o ser em verdade, para poder contrair um matrimónio legal
aos olhos da Igreja.
Basicamente é isto que os ortodoxos (e católicos de rito
oriental) fazem em relação ao casamento.
A situação está assim explicada, mas isto não implica que a
Igreja deva necessariamente seguir este percurso, significa apenas que, se o
fizer, é um percurso ancorado na tradição da Igreja Universal e por isso
defensável.
Pessoalmente custa-me. Mas este género de problemas tem
sempre duas dimensões que devem ser consideradas, a pessoal e a social.
Pessoalmente, esta podia de facto ser uma solução boa para
muitos casais que se encontram em situações tristes e que não são capazes de
aceitar a sugestão da Igreja de viverem o resto da vida em celibato ou a viver “como
irmãos” com os seus novos parceiros.
Contudo, socialmente, e por mais que a Igreja explicasse o
assunto, isto seria sempre apresentado como uma rendição ao mundo e à sociedade
moderna. Se os processos de nulidade são mal compreendidos, como é que se
explicaria uma mudança destas?
No nosso mundo o ensinamento da Igreja é um farol que faz
muita falta, para realçar a sacralidade do casamento, esse farol ficaria
necessariamente ofuscado.
Filipe d'Avillez
*Desde que escrevi este artigo muita coisa mudou e os assuntos foram aprofundados. Noto agora que ele contém algumas incorrecções. Em primeiro lugar, segundo o prefeito para Congregação para a Doutrina da Fé, o Cardeal Müller, a Igreja Católica não aceita nem reconhece a validade dos segundos casamentos ortodoxos a que me refiro aqui e, mais, elas não são praticadas pelas Igrejas Católicas de Rito Oriental.
Em segundo lugar, a comparação entre a dispensa dos sacerdotes que deixam o ministério para poder casar e os segundos casamentos não é exacta, uma vez que a proibição dos ministros ordenados contraírem casamento não é doutrinal, mas disciplinar. Existe casos raros de dispensa, por exemplo no caso de diáconos permanentes que enviúvam, para poderem contraír um segundo casamento, mantendo-se no ministério activo.
Correcção feita a 20/02/2014
*Desde que escrevi este artigo muita coisa mudou e os assuntos foram aprofundados. Noto agora que ele contém algumas incorrecções. Em primeiro lugar, segundo o prefeito para Congregação para a Doutrina da Fé, o Cardeal Müller, a Igreja Católica não aceita nem reconhece a validade dos segundos casamentos ortodoxos a que me refiro aqui e, mais, elas não são praticadas pelas Igrejas Católicas de Rito Oriental.
Em segundo lugar, a comparação entre a dispensa dos sacerdotes que deixam o ministério para poder casar e os segundos casamentos não é exacta, uma vez que a proibição dos ministros ordenados contraírem casamento não é doutrinal, mas disciplinar. Existe casos raros de dispensa, por exemplo no caso de diáconos permanentes que enviúvam, para poderem contraír um segundo casamento, mantendo-se no ministério activo.
Correcção feita a 20/02/2014
Penso que a solução possa passar, tal como o Papa já disse, por um acelerar dos processos de nulidade, e por introduzir nesses processos uma maior flexibilidade, para que dessa forma se assemelhe mais à flexibilidade ortodoxa. Ou seja, a Igreja não estaria a permitir o divórcio, estaria a "enquadrar melhor" os casos em que é declarada a nulidade do matrimónio... isto retiraria o tal peso social que falas, porque a Igreja continuaria com os mesmo procedimentos, apenas ajustaria critérios para fazer face a algumas circunstâncias, sempre com base no Evangelho.
ReplyDeleteNa minha opinião, discutir a anulação dos casamentos é abordar o problema pelo lado das consequências em vez de ser pelo lado da causa. A primeira preocupação da Igreja devia ser com o casamento em si. Se a Igreja se preocupar mais firmemente com a preparação e ajuda no discernimento para o casamento, certamente o número de pedidos de divórcios vai diminuir. Enquanto "casar" todos os que lhe batem à porta, pelas mais variadas razões, sem os ajudar a perceber o que estão a fazer, terá muitos pedido de nulidade para tratar.
ReplyDelete