Friday, 31 March 2023

Papa hospitalizado em Roma e Centro Ismaili atacado em Lisboa

O Papa Francisco está hospitalizado com uma infecção respiratória. Por mais alarmante que isto seja, convém lembrar que estamos a falar de um homem de 86 anos com um historial de problemas respiratórios, pelo que o seu internamento à mínima preocupação não é uma grande surpresa. Em todo o caso, é sempre uma boa oportunidade para os católicos rezarem pelo seu Papa. Para quem tiver interesse, estive ontem no noticiário das 23h da SIC Notícias para participar numa conversa sobre o estado de saúde do Papa e as eventuais consequências imediatas e a médio prazo dos seus problemas de saúde. Não está online, tanto quanto vejo, mas podem recuar nas boxes para ver, se tiverem interesse. De resto, para um acompanhamento mais próximo sugiro, como sempre, a minha ex-colega e amiga Aura Miguel na Renascença.

Na terça-feira um homem atacou vários membros da comunidade ismaelita em Lisboa, matando duas mulheres e ferindo três pessoas. Chegou-se a pensar que era um atentado terrorista, motivado por extremismo religioso, mas essa possibilidade está definitivamente posta de parte, uma vez que o atacante era ele mesmo membro da comunidade. Eu ia dizer “chegou-se a temer” que era um atentado terrorista, mas a verdade é que, olhando para algumas das reacções de quem imediatamente partiu desse pressuposto parece que “temer” não é a palavra certa. Tristemente, parece haver mesmo quem anseie por um atentado que possa dar razão às suas profecias apocalípticas sobre as políticas migratórias e de admissão de refugiados. Sobre esta questão dos refugiados escrevi um texto já em 2015 que expressava a minha posição, e que mantenho.

Do Haiti chegam notícias preocupantes de mais raptos de sacerdotes. Nas últimas semanas foram dois.

Na Nigéria os cristãos ficaram preocupados quando o partido principal decidiu contrariar a convenção de apresentar uma candidatura com dois muçulmanos para os cargos de presidente e vice-presidente. Contudo, o candidato vencedor, Bola Ahmed Tinubu, sendo muçulmano, vem de uma zona marcada por diálogo e boas relações inter-religiosas e é casado com uma cristã praticante, o que dá aos bispos nigerianos alguma esperança para uma melhoria de relações entre as duas comunidades e o fim do que consideram ser discriminação.

Há notícias de um interessante milagre eucarístico nos EUA. Está a ser investigado. À primeira vista não parece ser uma coisa muito espectacular, mas neste artigo explico porque é que o aparente milagre de Thomaston pode ter um significado muito profundo para todos nós.  

Por falar em milagres, o padre Paul Scalia escreve esta semana para o The Catholic Thing sobre o milagre da ressurreição de Lázaro e como Jesus procura sempre expandir a fé de quem o segue.

Uma última nota. Na passada semana, já depois de ter enviado o mail, escrevi um texto em que falei do “caso” do Pe. Mário Rui, de Lisboa, que foi provisoriamente afastado do ministério por constar da lista da Comissão Independente. Em resultado desse artigo recebi, mais ou menos em igual medida, elogios e críticas. Mais do que uma pessoa, e algumas em público, acusaram-me de estar a partir de um ponto de presunção de culpa do Pe. Mário Rui. Isso é falso. Em lado nenhum no texto digo ou dou a entender isso. A presunção de inocência é uma conquista civilizacional que muito valorizo e pessoalmente ficarei muitíssimo satisfeito caso o Padre Mário Rui, ou qualquer outro na mesma situação, seja ilibado ou veja o processo arquivado e possa voltar ao ministério. Queria só deixar isso claro.

Thursday, 30 March 2023

Um milagre eucarístico nos EUA?

A arquidiocese de Hartford, nos EUA, está a investigar um possível milagre eucarístico que terá ocorrido na Igreja de St. Thomas, em Thomaston, no Connecticut.

Normalmente associamos milagres eucarísticos a hóstias que sangram, ou hóstias e vinho que se transformam materialmente em carne e sangue, e que ficam miracolosamente preservados, etc., e muitas vezes esses milagres ocorrem como resposta a uma profanação, mas este é de natureza diferente.

O padre Crowley estava a preparar a distribuição da Comunhão na missa das 10h. Ele não podia fazer a distribuição, pelo que percebi, porque tinha um dedo ligado, e por isso deu a uma ministra da comunhão um cibório com hóstias. Ela dirigiu-se a uma das zonas da igreja onde costuma haver mais gente para comungar e quando olhou para a quantidade de hóstias no cibório ficou preocupada porque pensou que não iriam chegar e que teria de ir pedir mais a outro ministro da comunhão. 

Contudo, quando olhou novamente para o cibório, já depois de ter distribuído muitas hóstias, apercebeu-se que ele estava aparentemente tão ou mais cheio do que inicialmente. À medida que continuava a distribuir, acontecia o mesmo. Quando terminou a distribuição, a bem mais de uma centena de pessoas, o cibório continha tantas ou mais hóstias do que no início. A questão não lhe passou despercebida e informou também o padre, que sabia mais ou menos quantas hóstias tinha o cibório e viu que em nenhuma altura ela foi pedir "reforços". O padre informou a congregação na missa e depois as autoridades diocesanas, que agora irão documentar e analisar o fenómeno. 

Aqui podem ouvir a homilia da semana seguinte, em que o Pe Crawley explica o que se passou.


Há uma série de pontos que me vêm logo à cabeça ao ouvir estas palavras. 

Em primeiro lugar, como não pensar imediatamente no milagre da multiplicação dos pães e dos peixes? Mas não é só isso. Eu sei e acredito que essa passagem do Evangelho tem várias camadas de significados, que o número de cinco pães e dois peixes, que somados dá sete, não é um acaso e tem um simbolismo, e admito até que possa haver fundamento na teoria de que se tratou também de uma partilha geral de alimentos. Agora, sempre me irritou a insistência por parte de alguns de que a multiplicação foi apenas simbólica, e que o verdadeiro milagre foi a partilha por parte de todos. Não é que a partilha não seja uma coisa boa, mas isto é normalmente dito dando a entender que Jesus não poderia ter multiplicado os pães porque isso é fisicamente impossível. Pois bem, a confirmar-se o que se diz ter passado em Thomaston, não é. 

A segunda coisa que me ocorre é que a Igreja Católica nos Estados Unidos está em plena campanha de renovação eucarística. Os bispos consideraram isto necessário depois de algumas sondagens mostrarem que a esmagadora maioria dos católicos nos EUA acreditam que a Eucaristia é apenas um símbolo da Última Ceia, e não o verdadeiro Corpo e Sangue de Cristo. Que este milagre - repito, a confirmar-se - tenha ocorrido nesta altura é, claro, muitíssimo significativo, e é algo que devemos agradecer a Deus. 

Terceiro, tocou-me o facto de o Pe Crawley estar aberto à ideia de que isto se calhar até acontece com mais frequência do que nós pensamos, só que desta vez foi notório e os envolvidos não podiam deixar de reparar. Talvez seja mesmo assim. Talvez não. Seja como for, faz-me pensar que nós não sabemos a quantidade de vezes que Deus intervém nas nossas vidas, através de gestos aparentemente pequenos mas que até podem afectar-nos muito. Andamos tantas vezes a pedinchar milagres, quem sabe a quantidade de milagres que já nos aconteceram sem darmos por isso?

Por fim, e como o Pe Crawley sublinha, isto até pode ter sido um milagre e se o foi, como diz de forma muito americana: "cool". Mas não nos esqueçamos que o verdadeiro milagre é o facto de Deus se deixar transformar todos os dias em alimento espiritual e físico para bem dos nossos corpos e das nossas almas. O verdadeiro milagre acontece na consagração, quer dêmos por isso ou não, e quando estamos a uma semana de Nosso Senhor nos ser retirado, no único dia do ano em que não há missa e em que os sacrários se esvaziam, fazemos bem em meditar sobre isso e dar muitas graças a Deus por esse tremendo dom. E isto é verdade, seja o milagre de Thomaston real ou não. 

Wednesday, 29 March 2023

Despertando a Fé

Pe. Paul Scalia
Vivemos a Quaresma com os olhos postos na profissão de fé, na Páscoa. Nessa altura os catecúmenos farão a profissão de fé pela primeira vez e os baptizados renovarão a sua. É por isso que a Igreja nos dá a ler Evangelhos sobre a fé durante a Quaresma.

Ao longo das passadas cinco semanas temos escutado essas lições. Jesus é transfigurado diante dos apóstolos para confirmar nas suas mentes aquilo que já sabem pela fé. Na sua conversa paciente com a samaritana Jesus conduze-a a conhecê-lo como o Cristo: “Sou eu, que falo contigo”. Da mesma forma conduz o cego de nascença da escuridão da ignorância para a luz da fé. Este arranjo de leituras tem por objectivo aprofundar a nossa fé para que possamos renovar ainda mais convictamente as nossas promessas baptismais na Páscoa.

No passado domingo ouvimos esta última lição sobre a fé antes da Semana Santa. O relato da ressurreição de Lázaro (João 11, 1-45) coloca-nos diante do maior dos milagres de Jesus, o seu último “sinal” no Evangelho de São João. Do início ao fim, estamos perante uma história de fé. E a heroína da cena é Marta, a irmã ansiosa e mandona da mais pacífica e contemplativa Maria. Em Marta vemo-nos como somos e como devíamos ser.

Desde o início sentimos que Jesus pretende aumentar a fé de Marta e de Maria. O Evangelista João diz-nos que “Jesus amava Marta, a sua irmã, e Lázaro”. Depois diz, como se fosse uma consequência lógica: “Quando ouviu que ele estava doente, permaneceu ainda dois dias no lugar onde estava.” Como é que se explica esta demora?

Não é que nosso Senhor seja insensível e despreocupado com o pobre Lázaro. É antes que ele permite que esta grande tristeza recaia sobre aqueles que ama para poder retirar deles um maior acto de fé. Ele permite que a situação ultrapasse a mera esperança humana. Permite o desespero. Atrasa a sua resposta para lhes poder dar a oportunidade de aumentarem a sua fé. 

Porque é que Ele não vem? Podemos imaginar Marta a fazer essa pergunta quando Jesus não chega imediatamente. É uma pergunta que também nós colocamos sempre que as nossas orações parecem demorar a ser atendidas. Quanto tempo, meu Deus? Esta passagem fornece-nos, por isso, uma lição sobre a oração de intercessão. Não devemos desistir de rezar quando não vemos resultados imediatos, ou quando as coisas até parecem piorar. A nossa fé aumenta quando esperamos pelo Senhor. Ou, melhor dito, quando Nosso Senhor nos faz esperar é para aumentar a nossa fé.

Quando Jesus finalmente chega, Marta sai ao seu encontro. As suas palavras traduzem uma enorme confiança. Começa com uma profissão de fé sobre o passado (que também serve de ligeira admoestação): “Senhor, se tivesses estado aqui, o meu irmão não teria morrido”. Segue-se imediatamente uma profissão de fé sobre aquilo que é possível no presente: “Mas, ainda agora, eu sei que tudo o que pedires a Deus, Ele to concederá”, que é como quem diz: Eu antes confiava em ti… e ainda confio. Nem a morte pode quebrar esta confiança. Não obstante a morte de Lázaro e a aparente inutilidade das suas orações, ela persevera na fé.

Mas Jesus deseja uma fé mais forte ainda e age como um treinador que está a tentar que os seus atletas tenham um desempenho ainda melhor. Então diz de forma frontal a Marta: “Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que morra, viverá, e quem vive e crê em mim jamais morrerá para sempre”, seguido de: “Crês nisto?”

É uma pergunta que está ao nível da que coloca a Pedro em Cesareia Filipe: “Quem dizeis vós que eu sou?” De facto, Marta e Pedro são muito parecidos: obstinados, um pouco mandões, por vezes atrapalhando-se a si mesmos, mas cheios de fé. Fica-se com a ideia de que Jesus sentia por ambos uma afeição semelhante. Sem grandes surpresas Marta, como Pedro, responde com firmeza: “Sim, Senhor; eu creio que tu és o Cristo,

O Filho de Deus que deve vir ao mundo”.

Resta um teste, o mais duro de todos. “Onde o pusestes?”, pergunta Jesus. Ele quer que a fé de Marta seja posta à prova de forma extrema – na sepultura, frente a frente com o nada. Marta tropeça um pouco, tentando impedir o milagre: “Senhor, já cheira mal, pois é o quarto dia”. Por isso Jesus faz aquilo que já havia feito com Pedro, repreende Marta: “Não te disse que se creres, verás a glória de Deus?” És capaz de crer diante da morte? Confias só quando é mais fácil, ou também nos momentos mais escuros? Consegues crer e confiar até nos momentos de maior morte?

Com estas palavras Marta submete-se. A sua confiança é retribuída; Lázaro ressuscita.

Talvez nós fiquemos satisfeitos com uma fé superficial. Mas Deus não. Podemos pôr limites à nossa fé – a força ou a dimensão da nossa confiança, ou as situações em que confiamos. Mas Deus não coloca quaisquer limites. Ele continua a puxar por nós para aumentar a nossa fé. Aliás, Ele não fica satisfeito até que a nossa fé seja plena, penetrando as nossas vidas todas, chegando mesmo à sepultura. Até permite provas e sofrimentos, como a morte de uma pessoa querida, para dar mais oportunidades à nossa fé. E se perseverarmos como Marta, também nós seremos recompensados.


O Pe. Paul Scalia é sacerdote na diocese de Arlington, pároco da Igreja de Saint James em Falls Church e delegado do bispo para o clero. 

(Publicado pela primeira vez no domingo, 26 de Março de 2023 em The Catholic Thing

© 2023 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.   

Tuesday, 28 March 2023

Ataque a Centro Ismaili de Lisboa - O que sabemos e o que interessa saber

O que sabemos?

Vou resumir neste post aquilo que já sabemos e o que importa ainda saber sobre o ataque ao Centro Ismaili que decorreu esta manhã de terça-feira em Lisboa.

O ataque aconteceu esta terça-feira de manhã e resultou em pelo menos um ferido e dois mortos. As duas vítimas mortais são mulheres. 

Mariana Jadaugy, de 24 anos era assistente social e Farana Sadrudin, de 49 anos, que era a gestora da fundação FOCUS - Assistência Humanitária. Ambas são portuguesas. Inicialmente surgiu a informação que uma das vítimas mortais era colega do atacante, mas embora seja verdade que o autor do ataque tenha ferido pessoas que frequentavam com ele a aula de português, incluindo o professor, nenhuma dessas vítimas morreu. 

O atacante agiu sozinho, usando uma faca de grandes dimensões. Quando confrontado pela polícia ofereceu resistência e foi baleado nas pernas. Está detido e a receber tratamento médico. 

O atacante foi identificado como Abdul Beshir, de 29 anos, um refugiado afegão que frequentava o centro para receber apoio alimentar e aprender português. Neste caso o incidente começou no contexto de uma aula de português para refugiados, e continuou no exterior da sala, onde foram asassinadas Mariana e Farana.

Abdul Beshir é viúvo, pai de três filhos menores e sofre de problemas psiquiátricos. A sua mulher morreu no centro de refugiados na Grécia onde ambos viviam. Veio para Portugal há cerca de um ano e recentemente ele vivia em Odivelas. Segundo o Ministro da Administração Interna, o cidadão afegão não estava sinalizado pelas autoridades e nada indicava que fosse uma ameaça.

Na quarta-feira a Polícia Judiciária falou sobre a questão e realçou que depois de ter falado com o suspeito e investigado aprofundadamente o seu estilo de vida, as suas comunicações e o seu percurso desde que chegou à Grécia até ao dia do incidente, não existe um único indício de que se tratou de um ataque terrorista, nem que tivesse motivos religiosos, mas que terá sido um acto levado a cabo por um surto psicótico. 

Esta quinta-feira, dois dias depois do ataque, contactei um membro da comunidade ismaelita e pude finalmente confirmar de forma independente que Abdul Beshir era ele próprio ismaelita, e que não frequentava o Centro apenas na qualidade de beneficiário de auxílio. Mais, não era um convertido, mas fazia mesmo parte da pequena comunidade ismaelita do Afeganistão, onde a esmagadora maioria da população é sunita. Fica então totalmente posta de parte a possibilidade de um ataque por motivos religiosos, sendo este claramente um incidente trágico mas intra-comunitário. 

Ficam neste momento, a meu ver, apenas duas perguntas por responder. Porque é que o atacante andava armado? Era costume nele? A presença da arma poderá apontar para alguma premeditação, embora a Polícia Judiciária o descarte nesta altura, mas também pode ser apenas um hábito de alguém que viveu numa sociedade muito violenta e que é marcado por inseguranças. 

A segunda questão tem a ver com o telefonema que Abdul Beshir recebeu e que parece ter espoletado o ataque. O presidente da Comunidade Afegã em Portugal levanta a possibilidade de ele poder estar a ser pressionado para voltar ao Afeganistão por parte dos talibãs, que estariam a ameaçar a sua família lá. A Polícia Judiciária diz que já sabe da natureza do telefonema, mas que não comenta, por se tratar de um assunto do foro privado. Sabemos que há muitos casos de pessoas que têm surtos psicóticos quando recebem notícias drásticas, que podem ter a ver com questões financeiras, ou de saúde, etc., Não é certo que alguma vez tenhamos a resposta a esta questão, mas ela parece ser uma das chaves para desvendar este mistério.

Quem são os ismaelitas?

Os ismaelitas são um ramo do islão xiita. Diferem de outros ramos xiitas, nomeadamente dos duodecimanos - maioritários no Irão e no Iraque - na medida em que aceitam como líder hereditário o príncipe Aga Khan, que consideram o legítimo herdeiro e sucessor de Maomé. 

As comunidades ismaelitas no ocidente tendem a ser conhecidos pela sua afluência e sucesso empresarial e também pelo importante trabalho que fazem a nível de acção social. Nesse sentido a comunidade portuguesa encaixa perfeitamente nessa imagem. 

Tal como a maioria da elite muçulmana em Portugal, os isamelitas têm as suas raízes sobretudo na Índia, tendo vindo para Portugal por via de Moçambique e outros países africanos de língua portuguesa. 

Em Portugal os ismaelitas são uma minoria em relação à comunidade muçulmana no geral mas não existe um historial de conflito ou sequer de grande rivalidade entre os dois grupos.

Embora exista rivalidade entre os xiitas e os sunitas, e os xiitas sejam frequentemente alvo de ataques por parte de sunitas nos países de maioria sunita, estes ataques não costumam acontecer fora do mundo muçulmano. 

Caso o atacante fosse motivado por fundamentalismo islâmico faria mais sentido - dentro da total falta de sentido - atacar um alvo cristão, não só por ser mais fácil, mas sobretudo por ter um efeito muito mais grave a nível social. 

Friday, 24 March 2023

O que é que andamos aqui a fazer?

Tenho acompanhado com muito interesse, e reflectido muito sobre a questão da acusação ao Pe. Mário Rui Pedras. Este é um caso muito difícil e que envolve muitas vertentes e penso que pode ser mais fácil tentar separar as águas e ver os pontos um por um, para depois tirar algumas conclusões. O ponto de partida aqui é este caso porque entretanto se tornou público, mas na verdade podia aplicar-se a qualquer um dos, até agora, 14 padres que se encontram cautelarmente afastados do ministério no âmbito desta questão dos abusos de menores.

1. O anonimato da denúncia

Por regra, o lugar das cartas e denúncias anónimas é o caixote do lixo. A maioria de nós foi educado nesse sentido, e bem. No meu trabalho estou farto de lidar com críticos e comentadores anónimos, e se no início isso ainda me preocupava e dava algum troco, deixei de o fazer. Quem tem uma opinião a partilhar deve estar disposto a dar a cara por ela, caso contrário não deve esperar ser atendida. O anonimato é muitas vezes o escudo dos cobardes.

Contudo, há excepções. Há alturas em que existe um genuíno medo de represálias. Se eu sei que os meus vizinhos do lado traficam heroína e têm armas automáticas em casa se calhar prefiro fazer uma denúncia anónima do que dar a cara e arriscar a vida. Ao contrário do que tenho lido por aí, é evidente que a denúncia anónima pode ser um ponto de partida para uma investigação, desde que contenha um mínimo de informação que o permita.

Nos casos dos abusos sexuais há ainda outra questão que é o trauma causado pelo abuso, que pode tornar muito difícil ou até inconcebível ao abusado dar a cara publicamente por aquilo que lhe aconteceu. Temos de compreender isso. Em relação à Comissão Independente e ao relatório, a única forma de garantir que o maior número possível de vítimas se chegaria à frente era assegurar-lhes o anonimato. Claro que existe aqui um risco muito grande, que é precisamente a possibilidade de alguém se aproveitar do sistema para poder dificultar a vida a um padre. Mas isso não é de agora, nem é culpa da Comissão Independente. A pessoa que fez esta denúncia podia perfeitamente tê-la feito em qualquer momento à comissão diocesana, ou podia ter ido para a imprensa, e o resultado seria provavelmente o mesmo, desde que desse indícios minimamente credíveis, o que não é difícil.

Concluindo, o anonimato da denúncia não descredibiliza automaticamente a mesma, nem neste, nem em qualquer outro caso.

2. A substância da denúncia

Tudo o que sabemos agora sobre a substância da denúncia é que refere um abuso alegadamente ocorrido na década de 90, quando a alegada vítima se encontrava no 8º ano, numa escola na periferia de Lisboa.

Com base nestes dados posso concluir com razoável certeza que este testemunho não está publicado no relatório, pelo que só os membros da comissão é que terão acesso ao testemunho completo e, possivelmente, as autoridades do Patriarcado, caso a Comissão tenha partilhado com eles os dados.

De resto, aparentemente a denúncia não inclui quaisquer outros dados: nem datas certas, nem o nome da vítima ou de outras vítimas, nem testemunhos, nem nada.

Se assim for, então tenho dúvidas de que o Patriarcado deveria ter pedido o afastamento cautelar do Pe. Mário Rui, ou de qualquer outro padre nesta situação, e deve-se perguntar porque razão o fez, mas já lá vamos. O ponto a que quero chegar para já é que a única fonte que temos para dizer que não existem quaisquer indícios sólidos é, neste momento, a palavra do acusado. Ora, não pretendo de forma alguma pôr em causa a honestidade do Pe. Mário Rui, mas tal como não se pode condenar alguém com base apenas numa denúncia anónima infundada, não se pode ilibar alguém só com base na sua versão daquilo que é a acusação.

Não temos falta de exemplos de pessoas que foram acusadas, por vezes com indícios muito fortes de culpa, que proclamam alto e bom som a sua inocência. É um mecanismo típico de defesa numa situação destas o agressor armar-se em vítima de conspirações e cabalas. Não estou, como é evidente, a dizer que é isso que o Pe. Mário Rui está a fazer, estou apenas a avisar que a sua versão dos factos e a sua proclamação de inocência não podem chegar para o ilibar, e que nós (eu e a esmagadora maioria das pessoas que me lêem) não estamos em posição para poder determinar se ele está a dizer a verdade ou não, porque não podemos ter a certeza de que conhecemos os dados todos.

3. O comunicado

Ontem escrevi uma curta nota no mail semanal que envio, em que dizia que se fosse eu a aconselhar o Pe. Mário Rui, não teria sugerido ele escrever aquele comunicado, ou, caso insistisse em escrever o que quer que seja, teria sugerido que o fizesse noutros tom e noutros termos, manifestando apenas a sua confiança de que a investigação que agora se abre irá demonstrar a sua inocência e pedindo orações aos fiéis naquele que é um momento difícil.

Já recebi muitas opiniões contrárias, que agradeço, porque este é um assunto complexo, como já disse, e embora possa ter opiniões não é fácil nem aconselhável ter certezas.

O que me parece é que o padre acusado, neste caso, tornou o caso muito público de forma desnecessária. Parece-me ainda que todas as teorias da conspiração, de que esta foi apenas uma forma de tentar atingir André Ventura, ou de o castigar por ter aberto a paróquia aos tradicionalistas, ou por ser muito próximo do Patriarca, são extemporâneas, na medida em que essas associações apenas se estão a fazer porque ele decidiu tornar a situação pública.

Posso não estar a par dos factos todos. Pode ser que o seu nome estivesse prestes a ser divulgado na imprensa e ele se quisesse antecipar, o que é compreensível – embora, mais uma vez, eu o tivesse feito com um comunicado diferente – ou pode ser que no caso dele fosse tão evidente que o seu afastamento temporário da paróquia seria associado a esta situação que ele achou por bem tranquilizar os seus paroquianos. São tudo factores a ter em conta e que podem ter influenciado a sua decisão.

4. “É tudo mentira porque o Pe X é o maior”

Tenho visto muito esta reacção agora com o caso do Pe. Mário Rui. Claramente há muita gente que tem por ele a maior estima, a maior simpatia e a maior admiração. Eu não o conheço pessoalmente, mas também por isso não tenho razões para duvidar da sinceridade de todas essas opiniões que as pessoas têm sobre ele.

O que devemos ter em conta, contudo, é que isso vale muito pouco. Deus queira que o Pe. Mário Rui, e outros na sua situação, estejam inocentes. Mas eles não são inocentes pelo facto de nós gostarmos deles.

A história, incluindo a história muito recente da Igreja, está cheia de exemplos de pessoas aparentemente incríveis que afinal não o eram. E para que não pensem que estou a fazer os outros de parvos, digo-vos que a minha reacção quando soube da morte de Jean Vanier foi escrever um post no meu blog a dizer “Santo Subito”. Só que depois veio-se a saber que ele passou grande parte da sua vida a abusar sexual e psicologicamente de mulheres adultas que se confiavam a ele como director espiritual.

Como é óbvio, isto não quer dizer que todas as pessoas carismáticas são manipuladoras. Só convém é lembrar que só porque eu acho que uma acusação é inconcebível, porque a pessoa parece ser tão recta e admirável, não quer dizer que assim seja.

5. A decisão de o afastar. Cedência à pressão?

Vamos partir do princípio que tudo o que o Pe. Mário diz no seu comunicado é verdade, e que não existem quaisquer indícios na acusação contra ele nivelada. Porque é que ele foi afastado, então?

O que as regras dizem, nestes tempos de tolerância zero em que vivemos, é que basta haver uma denúncia credível para que o padre seja temporariamente afastado enquanto se faz uma investigação preliminar.

Obviamente, a lei não pode ser muito mais específica que isso, mas é possível que os indícios, ainda que parcos, fossem suficientes para considerar a denúncia credível.

Por exemplo, o padre Mário Rui desempenhou algum cargo em escolas na periferia de Lisboa na década de 90 que o tenham colocado em contacto com alunos do 8º ano? Isso pode ser suficiente.

Atenção, não o suficiente para o condenar, mas o suficiente para o afastar enquanto se faz uma investigação mais rigorosa. Isto é o cumprimento das regras da Santa Sé.

Houve um caso semelhante em Setúbal há uns anos. Um padre foi acusado de ter abusado de uma criança numa creche, ou num infantário paroquial. Sendo pároco, era credível que ele estivesse na escola e que estivesse em contacto com as crianças da mesma. Imediatamente o padre foi afastado enquanto o caso era investigado mais cabalmente. Logo se percebeu, contudo, que no dia indicado o padre não tinha estado na escola, logo não podia ter praticado os abusos de que era acusado. O caso foi arquivado. Todo o processo foi seguido, as regras cumpridas, prevaleceu a justiça e houve transparência quanto a isso.

A pergunta que se pode fazer é: caso a diocese saiba, neste caso em particular, que esta investigação não tem quaisquer pernas para andar, porque não há denunciante identificado ou identificável, nem testemunhas, nem nada que se pareça, então deveria ter aberto sequer uma investigação preliminar e afastado cautelarmente o padre? Sem conhecer os dados, não conseguimos ter uma opinião mais fundamentada, mas é claramente uma questão subjectiva. O Patriarcado pode sempre escusar-se, dizendo que está a cumprir as regras à letra.

Agora, não podemos descartar a possibilidade de a pressão mediática, e a pressão colocada por alguns membros da Comissão Independente, terem levado o Patriarcado a sentir que neste caso não tinha outra possibilidade senão agir, afastando o Pe Mário Rui e outros padres que estejam numa situação idêntica.

Em relação a isto, tenho dito que não se compreende a diferença de critérios usados por Laborinho Lúcio e Daniel Sampaio em relação às listas entregues aos bispos e ao Ministério Público. Se no caso do MP tiveram o cuidado de dizer que entregaram nomes, mas estão cientes de que provavelmente nada resultará na maior parte dos casos porque não há indícios para investigar ou para condenar, porque é que não fizeram a mesma ressalva naquele?

6. E o direito ao bom nome?

Este é, em larga medida, o cerne da questão. O Pe. Mário Rui, e tantos outros como ele, têm obviamente o direito ao bom nome, como temos todos.

Também é evidente que o nosso direito ao bom nome não pode ser uma barreira a investigações e eventuais acusações.

Mas é claro que existe aqui um conflito, quando a acusação parece ter poucas ou nenhumas bases e os danos feitos ao bom nome são potencialmente irreparáveis, ou pelo menos de muito longa duração.

Não há aqui soluções perfeitas, e sempre se soube que poderia haver padres falsamente acusados. Aliás, temos tido vários casos nos últimos anos na Igreja de padres que foram acusados e depois veio-se a ver e as acusações eram infundadas, bem como outros casos em que depois de investigada, a pessoa em causa foi ilibada. Houve acusações falsas antes do Relatório da Comissão Independente e haverá depois. O facto de potencialmente haver casos infundados também no âmbito do relatório não é, por isso, um factor determinante para avaliar a credibilidade e o valor do trabalho feito no geral pela Comissão.

O que faz a diferença aqui são mesmo as regras internas da Igreja que são mais rigorosas que as leis civis e que prevêem o afastamento cautelar de pessoas sob investigação mal exista uma denúncia credível, sendo que a fasquia para a credibilidade não tem de ser muito alta, basta que a denúncia seja possível.

Porque é que isto é assim? Não será injusto? Em muitos casos será injusto, mas a Igreja determinou que há aqui um bem maior a preservar, que é a segurança de potenciais vítimas. Não pode de forma alguma acontecer – como infelizmente aconteceu muito no passado – um homem manter-se em funções, com acesso a menores de idade, consumando abusos sexuais sobre novas vítimas enquanto é investigado. Para eliminar esse risco sacrificam-se alguns direitos do denunciado, removendo-o cautelarmente de funções enquanto o assunto é investigado de forma mais rigorosa.

Trata-se de um caso clássico de conflito de direitos. Mas convém recordar que quem decidiu que seria este o modus operandi não foi a Comissão, nem o Governo, nem a maçonaria, nem uma qualquer organização secreta judaica, foi a Igreja. (E bem sei que para alguns dos meus leitores a Igreja moderna está irremediavelmente infiltrada por maçons e membros de organizações secretas judaicas, mas enfim…).

E se a Igreja o fez, é porque considera que a segurança dos fiéis, especialmente os mais vulneráveis, tem primazia sobre o direito ao bom nome dos seus sacerdotes que, enquanto imagem de Cristo, devem estar disponíveis para sofrer e dar a vida pelas suas ovelhas.

É muito fácil dizer estas coisas do conforto da minha sala? Admito que sim. Mas isso não muda a realidade. É bom que os padres e os bispos compreendam que é essa a realidade em que vivemos agora. Sim, estamos todos – e estão eles em particular, pelos cargos que desempenham – numa posição em que podemos vir a ser falsamente acusados de um crime horrendo, e ter de viver com isso para o resto da vida, ainda que o caso seja arquivado ou que sejamos ilibados.

De quem é a culpa? É de muitos, mas é em grande parte das gerações anteriores que quando confrontados com estes casos trataram-nos como inconveniências em vez de terríveis atentados à verdade, ao Evangelho e à dignidade de crianças muito amadas por Cristo e criadas à imagem de Deus.

Há inimigos exteriores que se deliciam com tudo isto? Há, sempre houve e sempre haverá, mas são como abutres que estão agora a banquetear-se nas carcaças que nós próprios semeámos cá dentro.

7. O que é que andamos aqui a fazer?

E com isto chego ao último ponto: O que é que andamos aqui a fazer? Porque é que estamos nesta discussão? Porque é que houve Comissão Independente, porque é que houve relatório? Porque é que andamos a discutir o que fazer com casos de padres acusados, com mais ou menos credibilidade? Qual é o objectivo de tudo isto?

O objectivo de tudo isto é a regeneração e conversão interior da Igreja. O objectivo é isto tudo ser a chapada na cara de que precisávamos – e como alguns bispos precisavam! – para acordar e perceber que é preciso mudar muita coisa. É preciso mudar normas, é preciso mudar práticas, é preciso mudar mentalidades. Muito tem sido feito, graças a Deus, mas há muito ainda por fazer.

Num mundo em que ninguém parece pestanejar perante a sexualização precoce de crianças e adolescentes, em que num dia nos dizem que é proibido proibir, mas no dia seguinte querem nos obrigar a assinar um termo de consentimento antes de ter relações sexuais com alguém, a Igreja está a ser chamada a purificar-se e a ser para o mundo um farol de sanidade, um local onde as crianças e pessoas vulneráveis podem estar em segurança.

A Comissão Independente, as listas, os casos individuais de padres acusados, falsa ou acertadamente, são absolutamente secundários em relação a este objectivo final.

Isso não implica que abandonemos a verdade e sacrifiquemos o justo com o pecador. Pelo contrário, a verdade nos libertará e é preciso que os processos e as investigações sejam marcados pelo rigor e pela justiça.

Mas sabemos, porque sempre foi assim e agora não é excepção, que nesta purificação alguns sofrerão injustamente, serão vítimas de calúnia, terão o seu bom nome posto em causa e será pouco o consolo que derivam do facto de os seus processos serem arquivados ou mesmo de virem a ser ilibados. Esses, certamente, receberão a sua devida recompensa de quem a dá sempre com justiça e verdade.

Mas temo que essas injustiças apenas se possam evitar sacrificando os mais fracos e vulneráveis, que são sempre as vítimas preferidas de predadores. E esse é um sacrifício que a Igreja não pode voltar a fazer, porque ainda está a pagar o preço de o ter feito demasiadas vezes.

Quanto a todos os padres Mário Rui que temos por aí, em Portugal e noutros lados, que Deus os ajude e console. Que sejam inocentes e que essa inocência se possa comprovar e que os culpados sejam justamente condenados. Que os nossos bispos tenham a fortaleza e a coragem de levar a cabo processos rápidos, rigorosos e justos e que algum dia, talvez, o resto do mundo tenha a coragem de seguir o exemplo da única instituição que está de facto a tentar extirpar este problema do seu seio, por mais doloroso que seja. 

Wednesday, 22 March 2023

Os Dois Martírios de São João Brébeuf

Michael Pakaluk
Uma réplica exacta do Santo Sudário está em exposição no Centro de Informação Católica em Washington, D.C., promovida pelo Museu Bíblico. O padre Charles Trullols, do CIC, comenta que: “Contemplando a marca dos sofrimentos de Nosso Senhor no Sudário, temos de manter a mensagem da Quarta-feira de Cinzas marcada nas nossas almas. Também devemos ajudar Jesus com a sua Cruz e com os seus sofrimentos”.

Lendo essas palavras, por alguma razão não me saía da cabeça o martírio de São João de Brébeuf. Fui por isso à procura do relatório original preservado pelos Jesuítas, que tem por base o testemunho dado logo no dia seguinte por dois índios Huron que testemunharam a sua morte e conseguiram escapar.

Começaram por lhe arrancar as unhas. Depois espancaram-no ferozmente com cacetes, atingindo-o cerca de 200 vezes nos lombos, barriga, pernas e face. “Embora o peso destes golpes tenha sido esmagador para o padre De Brébeuf, não deixou de falar continuamente de Deus, e de encorajar os novos cristãos que estavam cativos como ele a sofrer bem, para que pudessem morrer bem, podendo assim ir com ele para o Paraíso.”

A seguir, um dos índios Iroquois levou a cabo uma caricatura de um baptismo, entornando água a ferver três vezes por cima da sua cabeça. “Echon”, disse o índio, usando o seu nome em Huron, “tu dizes que o baptismo e os sofrimentos desta vida conduzem directamente ao Paraíso; tu para lá irás em breve, por isso vou-te baptizar, e fazer-te bem sofrer, para que possas ir tanto mais rápido para o teu Paraíso.”

Então colocaram sobre ele um colar de seis machados de guerra incandescentes. “Nunca vi um tormento que me causasse tanta compaixão como aquele. Estávamos diante de um homem, atado nu a um poste, com este colar à volta do pescoço, que não sabe em que posição deve estar. Inclinando-se para a frente, pesam-lhe mais os que tem em cima dos ombros, inclinando-se para trás sofre o mesmo com os que tem sobre a barriga; mantendo-se direito, sem se inclinar para um lado ou para o outro, os machados incandescentes, aplicados de igual forma de ambos os lados, torturam-no duplamente”.

Depois, puseram-lhe em torno do peito um cinturão recheado de alcatrão e resina altamente inflamáveis e pegaram-lhe fogo, “assando todo o seu corpo”. Durante tudo isto o padre De Brébeuf aguentou que nem uma rocha, insensível ao fogo e às chamas, para espanto dos malditos sanguinários que o atormentavam. O seu zelo era tal que pregava continuamente a estes infiéis, tentando convertê-los”.

Então, para o impedir de falar, cortaram-lhe os lábios. Depois esfolaram-lhe as pernas, até ao osso, e assaram a carne diante dele. Continuaram a gozar. “Como bem vês, estamos a ser teus amigos, pois seremos a causa da tua felicidade eterna. Porque é que não nos agradeces por estes bons ofícios que te prestamos, uma vez que quanto mais sofres, mais Deus te vai recompensar.”

Quando estava já prestes a morrer, mas ainda vivo, arrancaram-lhe o coração e comeram-no, bebendo o seu sangue ainda quente. Estavam de tal forma impressionados pela sua coragem que queriam ser como ele.

Sabia que a solenidade dos mártires da América do Norte é a 19 de Outubro, mas quando é que João de Brébeuf morreu? Fui ver. Foi a 16 de Março de 1649, durante a Quaresma. (Nesse ano o Domingo de Páscoa calhou a 4 de Abril). Tinha sido capturado às primeiras horas da madrugada e morreu às 16h, depois daquilo que um autor secular descreveu como “um dos martírios mais atrozes nos anais do Cristianismo”.

Note-se que este testemunho extraordinário não veio do nada. O padre de Brébeuf tinha chegado a “Nova França” 24 anos antes. Estudou com muito cuidado primeiro os Algonkin, depois os Huron. Foi o primeiro europeu a aprender a falar fluentemente a língua Huron, tendo escrito um dicionário, uma gramática e catecismos.

Escreveu também um famoso cântico Huron, em Wendat, que contém um aviso contra as tentações do demónio.

Tende coragem, vós, que sois homens. Jesus, Ele nasceu.

Vede, fugiu aquele espírito que nos aprisionava.

Não o escutais, pois corrompe-nos a mente, o espírito dos nossos pensamentos.

(Aqui podem ouvir a música original, tirada de “Une Jeune Pucelle,” uma música tradicional francesa de 1557.)

A Viagem Espiritual de João de Brébeuf revela um homem profundamente dedicado à oração contemplativa, e que seguia rigorosamente a sua regra; que teve muitas visões místicas, algumas das quais acompanhadas em simultâneo por tentações demoníacas. Em 1631 fez um “juramento de serviço”, com as seguintes palavras: “Juro nunca falhar, da minha parte, na graça do martírio, caso na tua infinita misericórdia algum dia o ofereceres a mim, o teu servo indigno”.

Mas talvez seja igualmente impressionante o seu martírio sem sangue, o facto de ter regressado ao apostolado, uma e outra vez, ao longo de três décadas, apesar da repetidas rejeições e perseguições, e com nada mais que uma mão cheia de conversões. Pouco antes de morrer, escreveu:

Deus meu, porque é que não és conhecido? Porque é que esta terra bárbara não está convertida a ti? Porque não foi abolido daqui o pecado? Porque não és amado? Sim, meu Deus, se todos os tormentos que os cativos podem aguentar nestes países, pela crueldade das torturas, caírem sobre mim, a isso me ofereço com todo o coração, e sofrê-los-ei sozinho.

São João de Brébeuf, rogai por nós.


Michael Pakaluk, é um académico associado a Academia Pontifícia de São Tomás Aquino e professor da Busch School of Business and Economics, da Catholic University of America. Vive em Hyattsville, com a sua mulher Catherine e os seus oito filhos.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quarta-feira, 15 de Março de 2023)

© 2023 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

Friday, 17 March 2023

Listas completas e descarrilamentos

Foi um bocado a conta gotas, mas as últimas dioceses comunicaram finalmente o número de casos que tinham recebido nas famosas listas dadas pela Comissão Independente. Já actualizei os dados todos, com um quadro todo jeitoso feito no Excel. Fiz as fórmulas sozinho e tudo! A minha mulher está muito orgulhosa…

Mas isto não é só uma questão de números. Há conclusões gerais a tirar dos dados, e é isso que tento fazer aqui.

Uma das conclusões mais evidentes é que o item mais representado na lista de 98 nomes são os alegados abusadores que já morreram. Recordo que inicialmente era suposto esta ser uma lista de alegados abusadores ainda no activo. É importante isto? Não é fundamental – o fundamental são sempre as vítimas e o que pudermos enquanto Igreja fazer para melhorar a vida das que já existem e que possam ainda vir a existir – mas é importante, e é sobretudo importante por causa das vítimas. Confusos? Tudo explicado aqui.

Estas semanas foram um exemplo perfeito de algo que tinha tudo para correr bem e depois descarrilou. Escrevi um artigo para o The Pillar a explicar como é que isso aconteceu e o que as partes envolvidas pensam sobre o assunto. Está em inglês, mas encontram aqui dados que não encontram na imprensa portuguesa, por isso leiam.

Tenho sido solicitado com frequência para ir à televisão e rádio falar deste assunto e explicar o que se está a passar. Muitos desses comentários depois não ficam online, mas aqui podem ver algumas recentes, incluindo o muito simpático elogio que Paulo Portas fez ao meu trabalho no seu comentário a este assunto no Global, na TVI.

Estive também como convidado no programa “E Deus Criou o Mundo”, na Antena 1. Foram dois episódios em que se falou deste tema, mas também de diálogo inter-religioso. Podem ouvir aqui.

E por fim fui convidado para conversar com Margarida Vaqueiro Lopes e com a Rita Carvalho, do Ponto SJ, sobre o que se está a passar nesta questão dos abusos, e esse podcast, fresquinho e acabado de publicar, está aqui.

Temos artigo novo do The Catholic Thing, em que Anthony Esolen nos explica que vamos ser julgados por Deus por aquilo que fizemos e somos e não por aquilo que talvez tivéssemos feito e sido noutras circunstâncias. É sempre um bom exercício pensar nestas coisas na Quaresma.

Termino com um convite. Há Caminhada Pela Vida este fim-de-semana. Participem. Estas coisas podem às vezes parecer um exercício fútil. Vamos à caminhada, vemos amigos, parece que somos sempre os mesmos, vamos para casa e no dia seguinte percebemos que a cultura da morte continua a sua marcha aparentemente imparável. Mas lembrem-se que há muita gente a trabalhar para contrariar esta realidade. Fazem-no sem recursos, fazem-no sem grandes apoios, fazem-no até sem grande esperança de sucesso. A vossa presença nas caminhadas, que acontecem um pouco por todo o país, são um encorajamento que não se pode menosprezar. Nem que seja por isso.

Thursday, 16 March 2023

Conclusões sobre a lista de alegados abusadores

[Post já actualizado depois de Lisboa ter anunciado o afastamento provisório de 4 dos 5 padres na sua lista]
Agora que já temos informação de todas as dioceses sobre as listas que receberam, é tempo de tirar algumas ilações. Os dados propriamente ditos, o mais completos possível, estão aqui.

Menos de cem nomes

Sempre foi dito que seriam mais de 100 nomes, havendo quem falasse de 120. Afinal, somando todos estes casos temos apenas 98. Contudo, pode haver uma explicação para isto. Talvez a Comissão Independente se estivesse a referir a todos os nomes, incluindo os que estão nas listas a entregar ainda às congregações religiosas. A outra hipótese é que o número de “mais de 100” tenha sido dito assim por alto. Afinal de contas 98 é muito próximo de 100. Este não me parece ser um problema extraordinariamente grave, mas se for esta a hipótese é mais uma demonstração de falta de rigor no que diz respeito à lista de abusadores, o que era desnecessário.

37% mortos

Já dediquei um artigo inteiro a explicar porque é que é importante a questão de saber se a lista continha os nomes de mortos ou não, não me vou repetir. Mas fica o registo de que 36 dos nomes na lista dizem respeito a alegados abusadores que já morreram. É, de longe, o maior número de todos os itens.

Isto não deixa de ser boa notícia. Não porque o sofrimento das vítimas seja menor, mas porque é a maior das garantias de que, caso esses homens tenham sido de facto abusadores de menores, já não constituem uma ameaça activa para ninguém.

9 no activo

Este é um número sujeito ainda a muitas mudanças. À medida que as dioceses que pediram mais informação sobre alguns dos nomes nas suas listas a forem recebendo, poderemos ver novos casos de afastamento provisório e abertura de processos canónicos e/ou civis. Na verdade, contudo, apenas se aguarda mais informação relativa a 4 destes nomes, uma vez que o Porto optou por manter quatro dos nove padres nomeados em funções, Lisboa indicou que um dos cinco padres sobre quem tinha pedido mais informação já tinha sido investigado e ilibado e Coimbra já recebeu a informação pedida e concluiu que não se tratava de um caso de abuso de menores. Este último facto será escrutinado um pouco mais abaixo.

Falta de uniformidade

Uma das dificuldades com a lista é a falta de uniformidade com que cada diocese apresentou os seus dados. Por exemplo, algumas dioceses dizem que têm padres na lista que não têm cargo atribuído. Isto pode querer dizer que estão a gravemente doentes e hospitalizados (há um caso assim); pode querer dizer que estão reformados e possivelmente incapazes de participar em qualquer tipo de inquérito; pode querer dizer que foram expulsos do sacerdócio ou que o abandonaram de livre vontade (há pelo menos três casos assim) ou pode querer dizer que o padre em questão já foi ilibado pela justiça civil e canónica, mas ainda não foi nomeado para um novo cargo (também há um caso assim).

No que diz respeito a este último exemplo, algumas dioceses disseram especificamente que os padres nas suas listas tinham sido já alvo de processos. Alguns disseram quais tinham sido os resultados, outros não.

Tudo isto torna difícil sistematizar os dados, mas é mais do que isso. É um exemplo – pequeno, mas real – do que correu pior em todo este processo, que foi a variedade de estilos e ritmos de resposta dos bispos e das dioceses. Eu sei que cada diocese é independente e que zelam muito por isso, mas teria feito sentido, num tema destes centralizarem as respostas e falarem a uma só voz.

E agora? A transparência continua?

Não está tudo feito (e estou a referir-me só à lista, nem estou a falar de tudo o resto que falta fazer). Neste momento ainda temos 4 casos de padres sobre quem foi pedida mais informação, mais dois casos que foram enviados para a diocese errada e ainda os casos dos padres desconhecidos que poderão eventualmente ser identificados com mais dados fornecidos pela Comissão. Agora que a atenção mediática vai começar a diminuir, será que as dioceses vão continuar com a política da transparência e manter a comunidade informada sobre os desenvolvimentos em relação a esses casos? Era muito importante que isso acontecesse.

E nesse sentido, sublinha-se que algumas das dioceses aproveitaram os seus comunicados para informar que alguns dos casos já tinham sido tratados processualmente, embora essa informação nunca tivesse sido pública. Claro que é bom que assim seja, mas porque é que isso não tinha sido tornado público antes?

Pode-se argumentar que a população em geral não tem nada que saber se um padre é acusado formalmente de um crime de abuso sexual ou não, que o que interessa é que a coisa seja tratada. Mas na Igreja os maiores prejuízos que têm sido causados por este escândalo não são só a existência de predadores, que sempre os haverá em qualquer sector da sociedade, mas sobretudo os encobrimentos. Ora, é muito mais fácil um bispo cair na tentação de encobrir um caso se não existir uma cultura de transparência total.

Recentemente, algumas dioceses já adoptaram a prática de fazer comunicados quando um padre é alvo de uma acusação credível de abuso sexual, e nalguns casos divulgam mesmo o seu nome. Esta última questão é discutível, mas eu acho que é boa política, pois sendo muito duro para o padre, que pode vir a ser ilibado, não dizer o nome coloca todo o resto do clero sob suspeita.

O que se passou em Coimbra?

Um dos casos mais curiosos foi o que se passou com a lista entregue a Coimbra. Sem quaisquer informações sobre um dos padres na sua lista, a diocese pediu mais dados à Comissão, que prontamente os enviou. Na sequência, a diocese disse que tendo em conta esses dados tinha-se concluído que a situação não enquadrava qualquer tipo de abuso sexual, nem de menores, nem de outra espécie. Como é que isto acontece?

Uma possibilidade – e isto é uma suposição minha – é que seja um caso parecido com o que surge na página 236 do relatório, embora dificilmente seja especificamente o mesmo caso, por causa das datas:

Nascido na década de 30, M preencheu o inquérito online com a ajuda de um neto. Conta que, com 14 anos, foi uma vez confessar-se, numa igreja importante de uma cidade do Norte e o padre lhe fez perguntas «impróprias e sexuais. Disse: "já namoras? Já puseste as mãos nas maminhas da tua namorada? e nas coxinhas?" (…) Fui-me embora e nunca mais entrei numa Igreja.» Contou aos pais que lhe pediram «para não falar».   

Eu percebo que um caso destes esteja no relatório, se a pessoa ficou incomodada com o estilo da confissão, fez bem em falar do assunto, até porque já vimos que muitos dos abusos foram de facto insinuações e frases ditas nesse ambiente. Mas dificilmente este caso em particular configura uma situação de abuso sexual de menor.

Pode ter sido isto? Não sei, mas tendo a Comissão validado este testemunho, caso o nome do padre tenha sido divulgado, então deve estar na lista. Se não na de Coimbra, uma vez que não sabemos a diocese, então noutra qualquer.

[Nota: Depois de ter publicado isto recebi alguns comentários e telefonemas a alertar-me para ter cuidado, porque este tipo de conversa pode de facto constituir abuso. Agradeço e aceito que não deveria ter escrito "dificilmente este caso em particular configura uma situação de abuso sexual de menor". Não vou apagar por uma questão de transparência, e porque acho que vale a pena alertar para o facto de este ser um assunto que cai mesmo naquela fronteira cinzenta da questão e acredito que possa haver casos - não estou a falar deste em particular, mas no geral - em que as perguntas sejam inocentes mas não sejam entendidas assim pelo penitente.]

Padres afastados

Por fim, a célebre questão dos padres afastados preventivamente do ministério enquanto os seus processos são investigados. Tem havido muitas críticas às listas e à forma como tudo se passou, mas por causa delas pelo menos 13 padres já foram afastados e isso é importante. Não estou aqui a contar com o padre de Viseu que já estava suspenso antes de ter sido nomeado na lista. Este número está sujeito a aumentar, uma vez que há 4 padres sobre quem se espera mais informação e quando essa informação chegar eles também poderão ser afastados preventivamente, bastando para isso que haja credibilidade na acusação, o que não implica qualquer assunção automática de culpa. Este é o grande fruto desta lista e não pode ser negligenciado. Frases como “a montanha pariu um rato” não ajudam ninguém nesta fase. Sim, falou-se em 100; sim, isso gerou um ruído desnecessário, mas isso está no passado.

Agora estes casos serão investigados e se tudo correr bem será feita justiça, passe isso por uma condenação e eventual pena, ou por arquivamento ou ilibação. Essa justiça é que é importante, mais do que guerras de números.

Conclusão: Uma Igreja segura e insegura

O objectivo final de todo este processo é garantir que a Igreja seja simultaneamente mais e menos segura.

Mais segura para crianças e adultos vulneráveis, como é evidente. Segura não só no sentido de ser muito menos provável alguém passar por uma situação de abusos – impossível nunca será – mas também no sentido de saberem que há mecanismos e processos que funcionam caso façam uma denúncia.

Ao mesmo tempo é importante – e este ponto depende do anterior – que nenhum predador sinta que possa seguir uma vida na Igreja porque assim terá caminho facilitado para poder cometer abusos. Isto é crucial. Trabalhar a montante, evitando a ordenação ou contratação de pessoas que revelem comportamentos desviantes, falta de maturidade sexual ou outras características que certamente os psiquiatras conseguirão identificar melhor que eu, é das maiores reformas que a Igreja deve empreender ou, onde já é feito, aprofundar e dar continuidade. De resto, muita atenção, sem tornar a Igreja um estado policial, para ter a certeza que qualquer comportamento suspeito não é ignorado.

É assim que se tem feito noutros países que já levam umas décadas de avanço, é assim que se deve fazer aqui também. Deus dê força aos nossos bispos para continuarem o bom trabalho que já existe, e fazer o que falta fazer.

A Igreja sabe comunicar?

Tive o privilégio de ser convidado pelo Ponto SJ para discutir este assunto com a Rita Carvalho e a Margarida Vaqueiro Lopes. Falámos longamente sobre a questão dos abusos e a forma como a Igreja reagiu ao relatório da Comissão Independente e ao que se seguiu, incluindo o famoso caso das listas. 

Uma conversa entre três pessoas que percebem alguma coisa de comunicação social e que querem que a Igreja saia de tudo isto mais forte. 

Ouçam e partilhem, que acho que vale mesmo muito a pena!

O que sabemos da lista dos abusadores dada à CEP pela Comissão Independente - Final

[Este post deixou de ser actualizado. Toda a informação aqui constante encontra-se também neste post, mais completo, e frequentemente actualizado]

Já mais de metade das dioceses revelaram alguma informação sobre as listas que receberam da Comissão Independente. Neste post irei actualizando os dados referentes a isto.

Todas as 21 dioceses já revelaram informação sobre as listas. Entre parênteses está o número de alegados abusadores na lista de cada uma e no final encontram um gráfico que irei actualizando à medida que surgir mais informação.

  • Algarve (2)
  • Angra (2)
  • Aveiro (3)
  • Beja (5)
  • Braga (8)
  • Bragança-Miranda (3)
  • Coimbra (7)
  • Évora (2)
  • Forças Armadas (0)
  • Funchal (4)
  • Guarda (2)
  • Lamego (2)
  • Leiria-Fátima (5)
  • Lisboa (24)
  • Portalegre Castelo Branco (2)
  • Porto (12)
  • Santarém (0)
  • Setúbal (5)
  • Viana do Castelo (2)
  • Vila Real (3)
  • Viseu (5)

Total 98

Deste total, tendo por base a informação veiculada pelas dioceses e, nalguns casos, cruzada com informação que já era pública ou do meu conhecimento:

  • 36 já morreram (um é leigo)
  • 14 estão suspensos preventivamente (treze foram suspensos no seguimento do entregar da lista, um já estava. Inclui-se aqui um de Vila Real que foi preventivamente suspenso embora seja originário de outra diocese, pelo que não foi contabilizado no ítem de "Diocese errada", para não haver duplicação. Três da diocese do Porto e quatro de Lisboa foram suspensos depois de terem recebido mais informação da Comissão Independente)
  • 8 ninguém sabe quem são 
  • 2 Estão identificados, mas eram de outras dioceses, tendo os seus dados sido remetidos para essas dioceses. (Não está aqui incluído o padre de outra diocese que se encontrava em Vila Real e que foi preventivamente afastado lá, tendo a informação sido enviada para a diocese de origem. Está contabilizado na lista dos suspensos, para evitar duplicações)
  • 12 já não desempenham cargos (pode ser por serem idosos/reformados, ou por terem abandonado ou sido expulsos do estado clerical)
  • 9 são padres no activo, esperando-se mais informação da Comissão para poder decidir as medidas a aplicar (4 do Porto, 1 de Coimbra, 2 de Lamego, 2 de Setúbal). No dia 16 de Março o Porto informou que recebeu informação que levou à suspensão preventiva de três dos sete padres sobre quem tinha pedido mais informação. Não disse nada a respeito dos restantes quatro. Actualidade Religiosa sabe também que os 2 de Lamego têm processo aberto, que foi enviado para Roma. O padre de Coimbra é um sobre quem se concluiu que não se tratava de uma situação de abuso sexual.)
  • 4 já foram ilibados (1 civil e canonicamente, 1 só canonicamente, porque civilmente estava prescrito, 1 - de Braga - só civilmente, 1 em Setúbal pelo menos canonicamente)
  • 10 já tratados civil e/ou canonicamente (4 de Viseu, mas sem que se saiba o resultado do processo, 1 de Braga que foi condenado e cumpre pena de medidas disciplinares, 1 de Coimbra cujo processo foi arquivado civil e canonicamente, 1 de Bragança que foi condenado e tem medidas disciplinares em vigor, 2 em Vila Real, que resultaram em penas de suspensão e de dispensa do ministério e 1 de Lisboa que segundo o comunicado do patriarcado de 21 de Março, já tinha sido sujeito a medidas cautelares mas já estava novamente no activo, pelo que se presume que viu o caso arquivado)
  • 3 são leigos (1 Lisboa, 2 Leiria-Fátima, sendo que um destes poderá já ter morrido. Beja também reportou um leigo, mas que está contabilizado com os mortos)

(Clicar para aumentar)

Wednesday, 15 March 2023

E Deus Criou o Mundo - Abuso de Menores e Casa Abraâmica

Fui novemente convidado para participar em dois episódios do programa "E Deus Criou o Mundo", da Antena 1. 

O tema do primeiro episódio foi o abuso de menores. 

No segundo falámos, entre outras coisas, da inauguração da Casa Abraâmica, em Abu Dhabi.

Podem ouvir os programas clicando abaixo.


Abusos de menores


Casa abraâmica

O Único Caminho para um Coração Limpo

Anthony Esolen
Recentemente, durante uma conversa, comentei que a introdução da pílula nas relações entre rapazes e raparigas jovens tinha elevado perigosamente o risco das relações sexuais. Todas os prazos saudáveis que medeiam entre um encontro amigável e uma noite na cama foram varridos. De repente, nenhum dos sexos sabia muito bem o que esperar do outro. O resultado, como tenho estado a dizer há muitos anos, foi a solidão de todos os que não alinham no jogo e uma variedade de destroços morais e pessoais para quem alinha. E talvez, no final de contas, uma solidão ainda mais profunda, incluindo uma alienação completa do sexo oposto.

Como é que não prevemos isto? Como é que os católicos, e em particular os teólogos e filósofos, não compreenderam aquilo que pagãos como Platão, Aristóteles, Zenão o Estóico, Cícero e Marco Aurélio viram, que mascarar o pecado não altera o seu efeito, tal como polvilhar com açúcar não diminui o efeito de um prato de veneno?

O meu interlocutor ficou admirado, respondendo que se a pílula tivesse sido disponibilizada 40 anos antes, as pessoas de então teriam agido exactamente da mesma forma que os seus descendentes. Estava a sugerir que a geração do meu avô era tão fraca, egoísta e podre como a que aceitou a pílula.

Respondi que não podemos julgar as pessoas por aquilo que achamos que teriam feito, mas apenas por aquilo que de facto fizeram. Ele admitiu que os mais antigos eram melhores na arte do cortejo, mas contrapôs que fumavam cigarros em elevadores com crianças, ao que eu poderia ter respondido que os nossos tempos também estão repletos de obscenidade públicas, entretenimento ordinário e pornografia, tudo na presença de crianças e, no que diz respeito aos primeiros dois, encorajando mesmo a sua participação.

Há que fazer distinções. A natureza humana não muda. Os alemães que se tornaram nazis talvez fossem pilares das suas comunidades se tivesse crescido noutro local ou tempo; e qualquer um de nós, sobretudo aqueles com tendência para movimentos intelectuais ou para encontrar bodes expiatórios, coisa não rara entre a humanidade, poderia ter-se tornado nazi.

Talvez seja mais seguro dizer que este exercício não faz muito sentido. É como pensar como seríamos se tivéssemos nascido de outro sexo. Isso implicaria ter todo um outro corpo, mas não existe um “eu” flutuando por aí, dissociável do meu corpo.

Posso imaginar, ou adivinhar, o que eu, enquanto pessoa já existente, teria feito caso não tivesse feito um curso em Princeton que mudou a minha vida, ou caso não tivesse conhecido a minha mulher Debra, mas mesmo aí estou em território minado. Se calhar, quando tentamos adivinhar o que teríamos feito perante um determinado conjunto de circunstâncias, estamos na verdade a basear essa suposição naquilo que de facto já fizemos em circunstâncias semelhantes.

Por exemplo, aqueles que actualmente se divertem em difamar outros, ou em interpretar as suas palavras ou acções à pior luz possível, talvez tivessem dado óptimos informadores. Ou, pegando na coisa de outra forma, talvez os que actualmente partem do princípio que o lugar da relação sexual é numa relação comprometida e exclusiva, com vista à permanência (por mais iludidas que as pessoas possam estar em relação a tudo isso), teria praticado a castidade e a continência antes do casamento naquela altura.

Ainda assim, fazemos o que fazemos e os nossos actos tornam-se aquilo que somos. John C. Calhoun tratava os seus escravos de forma bondosa, e isso fez mais do que deixar uma marca na sua alma. Esse pecado consumiu a sua alma e assimilou-se a ela de tal forma que na sua velhice Calhoun já não sentia qualquer vergonha por ser esclavagista, olhando-o mesmo como um bem.

Não pretendo julgar a disposição eterna da sua alma. Deus é o juiz. Mas aquilo que vemos, podemos declarar. O pecado deforma e o pecado praticado com uma consciência tranquila, como parece ter ocorrido com Calhoun, deforma ainda mais. Daí que a prostituta que chorou aos pés de Jesus estivesse em melhor estado que Simão o Leproso, que pecava com orgulho e com a consciência límpida como a luz do dia.

O pecado está para a alma como a doença para corpo, mas com uma diferença fundamental que torna o pecado ainda mais perigoso. O corpo consegue combater a doença com os seus próprios recursos. A alma não consegue combater o pecado desta forma. Isto acontece, mais uma vez, porque o pecado é mais do que um invasor. “Quem me libertará do corpo sujeito a esta morte?”, clama São Paulo, descrevendo a luta daquele que sabe aquilo que é bom para a alma, que quer escolher esse bem, mas dá por si a escolher o mal. 

Pior ainda é a luta de quem já nem sequer reconhece o bem. Deve ser claro que nenhum esforço da alma lhe pode valer, uma vez que a escória está completamente misturada com o minério. O minério não tem qualquer forma de expulsar a escória, salvo uma. Só a operação da graça divina pode valer, com a palavra de Deus que penetra até à medula.

Daí decorre também a necessidade urgente de pregar a verdade. Ninguém nos diz que que Deus vai julgar uma ficção de nós mesmos, algo que poderíamos ter sido noutras circunstâncias, imaginárias. Ninguém nos diz que Ele deve salvar a mesma percentagem de nazis e de carpinteiros amish. Somos todos pecadores e todos ficamos aquém da glória de Deus.

Devemos voltar-nos para Deus e dizer: “Um novo coração me dá Senhor”. É algo grandioso que pedimos, porque a re-criação de uma só alma é uma maravilha maior do que a criação do mundo. Não devemos pedir a Deus que “julgue aquilo que eu poderia ter sido”, mas sim “perdoa aquilo que sou, e faz de mim uma pessoa nova”.


Anthony Esolen é tradutor, autor e professor no Providence College. Escreveu, entre outros, Out of the Ashes: Rebuilding American Culture, and Nostalgia: Going Home in a Homeless World, e mais recentemente The Hundredfold: Songs for the Lord. É professor e autor residente na Magdalen College of the Liberal Arts, em Warner, New Hampshire. Pode visitor o seu site em: Word and Song.

(Publicado pela primeira vez no sábado, 11 de Março de 2023 em The Catholic Thing)

© 2023 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org

The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.

 

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