Tuesday, 28 March 2023

Ataque a Centro Ismaili de Lisboa - O que sabemos e o que interessa saber

O que sabemos?

Vou resumir neste post aquilo que já sabemos e o que importa ainda saber sobre o ataque ao Centro Ismaili que decorreu esta manhã de terça-feira em Lisboa.

O ataque aconteceu esta terça-feira de manhã e resultou em pelo menos um ferido e dois mortos. As duas vítimas mortais são mulheres. 

Mariana Jadaugy, de 24 anos era assistente social e Farana Sadrudin, de 49 anos, que era a gestora da fundação FOCUS - Assistência Humanitária. Ambas são portuguesas. Inicialmente surgiu a informação que uma das vítimas mortais era colega do atacante, mas embora seja verdade que o autor do ataque tenha ferido pessoas que frequentavam com ele a aula de português, incluindo o professor, nenhuma dessas vítimas morreu. 

O atacante agiu sozinho, usando uma faca de grandes dimensões. Quando confrontado pela polícia ofereceu resistência e foi baleado nas pernas. Está detido e a receber tratamento médico. 

O atacante foi identificado como Abdul Beshir, de 29 anos, um refugiado afegão que frequentava o centro para receber apoio alimentar e aprender português. Neste caso o incidente começou no contexto de uma aula de português para refugiados, e continuou no exterior da sala, onde foram asassinadas Mariana e Farana.

Abdul Beshir é viúvo, pai de três filhos menores e sofre de problemas psiquiátricos. A sua mulher morreu no centro de refugiados na Grécia onde ambos viviam. Veio para Portugal há cerca de um ano e recentemente ele vivia em Odivelas. Segundo o Ministro da Administração Interna, o cidadão afegão não estava sinalizado pelas autoridades e nada indicava que fosse uma ameaça.

Na quarta-feira a Polícia Judiciária falou sobre a questão e realçou que depois de ter falado com o suspeito e investigado aprofundadamente o seu estilo de vida, as suas comunicações e o seu percurso desde que chegou à Grécia até ao dia do incidente, não existe um único indício de que se tratou de um ataque terrorista, nem que tivesse motivos religiosos, mas que terá sido um acto levado a cabo por um surto psicótico. 

Esta quinta-feira, dois dias depois do ataque, contactei um membro da comunidade ismaelita e pude finalmente confirmar de forma independente que Abdul Beshir era ele próprio ismaelita, e que não frequentava o Centro apenas na qualidade de beneficiário de auxílio. Mais, não era um convertido, mas fazia mesmo parte da pequena comunidade ismaelita do Afeganistão, onde a esmagadora maioria da população é sunita. Fica então totalmente posta de parte a possibilidade de um ataque por motivos religiosos, sendo este claramente um incidente trágico mas intra-comunitário. 

Ficam neste momento, a meu ver, apenas duas perguntas por responder. Porque é que o atacante andava armado? Era costume nele? A presença da arma poderá apontar para alguma premeditação, embora a Polícia Judiciária o descarte nesta altura, mas também pode ser apenas um hábito de alguém que viveu numa sociedade muito violenta e que é marcado por inseguranças. 

A segunda questão tem a ver com o telefonema que Abdul Beshir recebeu e que parece ter espoletado o ataque. O presidente da Comunidade Afegã em Portugal levanta a possibilidade de ele poder estar a ser pressionado para voltar ao Afeganistão por parte dos talibãs, que estariam a ameaçar a sua família lá. A Polícia Judiciária diz que já sabe da natureza do telefonema, mas que não comenta, por se tratar de um assunto do foro privado. Sabemos que há muitos casos de pessoas que têm surtos psicóticos quando recebem notícias drásticas, que podem ter a ver com questões financeiras, ou de saúde, etc., Não é certo que alguma vez tenhamos a resposta a esta questão, mas ela parece ser uma das chaves para desvendar este mistério.

Quem são os ismaelitas?

Os ismaelitas são um ramo do islão xiita. Diferem de outros ramos xiitas, nomeadamente dos duodecimanos - maioritários no Irão e no Iraque - na medida em que aceitam como líder hereditário o príncipe Aga Khan, que consideram o legítimo herdeiro e sucessor de Maomé. 

As comunidades ismaelitas no ocidente tendem a ser conhecidos pela sua afluência e sucesso empresarial e também pelo importante trabalho que fazem a nível de acção social. Nesse sentido a comunidade portuguesa encaixa perfeitamente nessa imagem. 

Tal como a maioria da elite muçulmana em Portugal, os isamelitas têm as suas raízes sobretudo na Índia, tendo vindo para Portugal por via de Moçambique e outros países africanos de língua portuguesa. 

Em Portugal os ismaelitas são uma minoria em relação à comunidade muçulmana no geral mas não existe um historial de conflito ou sequer de grande rivalidade entre os dois grupos.

Embora exista rivalidade entre os xiitas e os sunitas, e os xiitas sejam frequentemente alvo de ataques por parte de sunitas nos países de maioria sunita, estes ataques não costumam acontecer fora do mundo muçulmano. 

Caso o atacante fosse motivado por fundamentalismo islâmico faria mais sentido - dentro da total falta de sentido - atacar um alvo cristão, não só por ser mais fácil, mas sobretudo por ter um efeito muito mais grave a nível social. 

3 comments:

  1. Manuel Lourenço29 March 2023 at 09:54

    Caro Filipe,
    Parece-me, com o devido respeito, que há um padrão que tende a ser utilizado que é: no caso de refugiados, nomeadamente na Alemanha (e foram várias vezes nos últimos anos), sempre que um afegão, ou outro muçulmano que provêm da mesma zona, comete um acto parecido: assassinar pessoas com facas, é sempre utilizado o mesmo tom de que é um acto isolado, por razões psiquiátricas, que não há motivos para crer que haja uma organização por detrás etc.
    Ora, segundo as noticias este afegão recebeu um telefonema, na sequência do qual iniciou a matança numa forma especialmente sanguinolenta (por comparação por exemplo com matar com armas de fogo), porque envolve uma proximidade física e um esforço físico.
    Seria importante saber com quem falou antes no telefone, se por exemplo, quando estava a esfaquear invocou o nome de Alá, etc, etc.
    Não estou a afirmar que seja por motivos religiosos que fez o que fez, mas não podemos ficar com meias verdades, até porque noutros países europeus estão reportados esse tipo de comportamentos.
    Pois, e não é nenhuma novidade, existem casos de mortandade até por exemplo no Iraque, entre muçulmanos sunitas versus sunitas e vice versa. Além de que os Ismaelitas (https://en.wikipedia.org/wiki/Isma%27ilism), sendo muçulmanos são considerados quer pelos sunitas e pelos chiitas hereges (devido ao sincretismo das suas práticas), pelo que a possibilidade de um acto tresloucado, mas motivado por razões religiosas não é de afastar.

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    1. Olá Manuel,
      Concordo com quase tudo o que diz, há questões que precisam de resposta. No entanto, com base na informação de que já dispomos, tudo parece apontar para um acto isolado de uma pessoa desequilibrada. O facto de isto acontecer noutros países com pessoas de perfil parecido não é de espantar, uma vez que estamos a lidar com um sector da população muito propício a traumas e pressões psicológicas, desespero, etc.,
      A questão é que um acto de uma pessoa desequilibrada e desesperada não se torna terrorismo só porque é refugiada. Este tipo de crimes violentos e aparentemente sem grande explicação acontecem com frequência entre a população nativa também. Ainda o outro dia um avó esfaqueou e matou a neta porque pensava que ia ficar sem a pensão...
      É verdade que existe rivalidade entre xiitas e sunitas, e que os Ismailis são mal-vistos por muitos sunitas, como diz, mas como eu refiro no artigo, este tipo de ataques podem ser comuns no mundo muçulmano, mas não fora dele.
      À primeira vista e, repito, com a informação de que dispomos, treinar e radicalizar um homem destes com o propósito de atacar um funcionárias do Centro Ismaili não me parece encaixar minimamente no padrão do terrorismo islâmico.
      Cumprimentos,
      Filipe

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  2. Manuel Lourenço29 March 2023 at 11:25

    Caro Filipe,
    As "funcionárias" eram Ismaelitas e não se trata de treinar, tal como um avô matou uma neta (não esteve certamente a treinar), esfaquear não precisa de treino, mas sim de impulso e de intenção. Quanto à radicalização - não sejamos ingénuos - basta uma interpretação mais literal/parcial do Corão.
    Em relação a traumas e pressões psicológicos é verdade que os povos dessa região os tiveram, assim como os ucranianos os têm diariamente desde há mais de um ano, agora, volto a referir que seria interessante saber se o afegão invocou Alá quando cometeu os actos que fez (como aconteceu noutros países europeus), e quem fez o telefonema e qual o conteúdo, que teria recebido antes de ter iniciado o actos hediondos.
    Por último, rezar pelas vitimas, suas famílias, pelo afegão (que se arrependa e que Deus o perdoe) e pelos seus filhos, que agora nem sequer irão ter a figura do pai a acompanhá-los.

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