À medida que me tornei mais
velho fui percebendo como as disciplinas da Quaresma podem ser edificantes e
construtivas. Como disse recentemente a um amigo, já cheguei ao ponto em que
até anseio a chegada da Quaresma. Trata-se de uma oportunidade calendarizada
para um reforço espiritual. Dá-nos aquela injecção extra de disciplina e de
estrutura que só fazem bem ao corpo.
Os pequenos confortos podem
tornar-se dependências. E a Igreja, na sua sabedoria, chama-nos a fazer
penitência e jejum, não apenas como forma de fortalecer a nossa vontade
interior, mas para nos ajudar a livrar-nos dessas dependências. O jejum, afinal
de contas, não é simplesmente uma questão de “abdicar” ou mesmo de “redimir” os
nossos pecados. Trata-se de nos libertar da dependência de amores concorrentes
ou desordenados para podermos ser livres de amar como devemos. E essa liberdade
transforma o nosso jejum e penitência de mera obrigação em oportunidade para
partilhar do sofrimento de Cristo, que é a nossa esperança.
Desta perspectiva, o
sofrimento não é apenas uma coisa a aguentar, mas está associado à esperança. O
Papa Bento XVI escreveu sobre a ligação entre o sofrimento e a esperança na sua
encíclica Spe Salvi, onde incluiu uma reflexão sobre a prática de “oferecer”
pequenas dificuldades. Não estava a escrever especificamente sobre a Quaresma,
mas aplica-se perfeitamente:
“Fazia parte de uma forma de devoção
– talvez menos praticada hoje, mas não vai ainda há muito tempo que era
bastante difundida – a ideia de poder ‘oferecer’ as pequenas canseiras da vida
quotidiana, que nos ferem com frequência como alfinetadas mais ou menos
incómodas, dando-lhes assim um sentido. (…) Deste modo, também as mesmas
pequenas moléstias do dia-a-dia poderiam adquirir um sentido e contribuir para
a economia do bem, do amor entre os homens. Deveríamos talvez interrogar-nos se
verdadeiramente isto não poderia voltar a ser uma perspectiva sensata também
para nós.”
A Quaresma é uma oportunidade
– quer ansiemos por ela ou não – de reavivar esta prática para nós mesmos. Como
é evidente, a penitência é apenas uma parte da nossa prática quaresmal. A
esmola desapega-nos do dinheiro, que pode ser uma coisa particularmente
pegajosa, no sentido espiritual, e abre-nos à caridade e ao cuidado pelos
outros. A oração, tal como a esmola e a penitência, não é apenas uma prática
para a Quaresma, mas encontrar tempo e formas adicionais para rezar durante a
Quaresma ajuda a fortalecer a nossa devoção ao longo do resto do ano.
No que toca à oração, existem
duas práticas quaresmais que tenho achado particularmente benéficas. Ambas têm
a ver com a Escritura. E embora nem uma, nem outra, sejam particularmente
novas, cada uma fornece formas de rezar e reflectir sobre a Palavra de Deus de
formas que a nossa vida do dia-a-dia – pelo menos no meu caso – não permitem.
Ambos nos obrigam a abrandar, o que na vida de passo acelerado que vivemos
actualmente é só por si uma forma muito necessária de penitência.
A primeira das sugestões é
mesmo muito simples: leiam os Evangelhos. Não estou a dizer para lerem uma
passagem dos Evangelhos de tempos a tempos, ou sequer que reflictam sobre o
Evangelho do dia (embora estas sejam coisas óptimas, como é evidente). A minha
sugestão é que se sentem a ler cada um dos Evangelhos de fio a pavio. Se
tiverem tempo para isso, tentem ler cada um dos Evangelhos de uma assentada. O
Evangelho de Marcos é o mais curto, por isso talvez queiram começar por aí, mas
também podem lê-los pela ordem, a começar por Mateus.
A maioria dos católicos
confrontam-se com a Escritura na Missa. Mas raramente lemos o Evangelho como um
todo. A leitura completa dos Evangelhos é uma forma maravilhosa de nos
encontrarmos com elas de novo, e uma forma excelente de reparar em novos
detalhes. Ajuda-nos a notar repetições subtis e alusões no texto. Permite-nos
apreciar o contexto de várias passagens, o que ajuda a compreender o todo, e
não apenas as partes.
Mãos à obra! |
A segunda sugestão de prática
quaresmal é esta: copiar as Escrituras. Estou a ser literal. Peguem num papel e
numa caneta e copiem as palavras da Escritura à mão. Escrevam com boa
caligrafia e com propósito. Usem uma caneta, e não papel, porque isso
obriga-nos a ter mais cuidado e evitar erros indeléveis. Os salmos são um bom
ponto de partida, na maior parte podem ser concluídos antes de ficar com
cãibras na mão.
A prática de copiar as
Escrituras à mão obriga-nos a concentrar-nos em cada uma das palavras.
Obriga-nos a desacelerar, o que é especialmente importante em passagens
familiares que podem facilmente passar despercebidas. Reparará que nalgumas
partes as palavras não são exactamente como se lembrava, ou o que esperava.
Reparará, ainda, em mudanças subtis de escolha de palavras, tom e sentido.
O melhor é que, como está a
escrever as palavras e não apenas a lê-las em silêncio ou a ouvi-las a serem
lidas alto, é mais fácil fixá-las. Não é por acaso que se costumava ensinar a
memorização, em parte, pela escrita repetitiva. Escrever as palavras da
Escritura é uma forma muito bonita de a aprender de maneira mais íntima.
Com o começo desta Quaresma,
já tenho comigo a minha Bíblia e a minha caneta preferida, pronta a usar. Sei
muito bem que o entusiasmo costuma ser forte ao início, mas que depois pode
escassear. Ainda assim, estou determinado. Sim, estou com vontade de iniciar
esta Quaresma. Tal como acontece todos os anos, é exactamente aquilo de que
preciso.
Stephen P. White é
investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em
Washington.
(Publicado em The
Catholic Thing na Quinta-feira, 23 de Fevereiro de 2023)
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