Comecemos por reconhecer um facto inescapável. A conferência de imprensa de sexta-feira foi um desastre. Mas não foi um desastre em termos de conteúdo, tanto quanto um desastre em termos de forma.
Começou com a leitura de um
comunicado cheio de frases corridas, quando o que se pedia era uma nota mais
sucinta e por pontos, do estilo: “Estas são as medidas que vamos implementar
para abordar e resolver este problema.”
Depois veio D. José Ornelas,
de quem tenho boa impressão enquanto homem e pastor, mas que falou de forma confusa
e pegou em todas as perguntas exactamente ao contrário daquilo que se exigia.
Questionado sobre o que fará
com as listas dos nomes de padres alegadamente abusadores, o bispo disse algo
do género: “Vai ser muito difícil, em alguns casos só temos nomes, sem factos, e
não podemos suspender as pessoas assim, porque toda a gente tem direito à
presunção de inocência, mas claro que vamos investigar”.
A resposta que se exigia seria
algo assim: “Que ninguém tenha dúvidas de que os bispos irão fazer tudo o que
estiver ao seu alcance para identificar e investigar rigorosamente todos os
nomes nesta lista. Tal como está previsto no direito canónico, e como tem sido
prática nas dioceses há muitos meses, em todos os casos em que a acusação seja
considerada minimamente credível, o padre em questão será imediatamente suspenso
preventivamente para que possa decorrer o devido processo canónico.
Dito isto, lamentamos que em muitos
casos o nosso trabalho seja dificultado pelo facto de termos recebido da
Comissão Independente unicamente uma lista de nomes, sem qualquer enquadramento,
alegações ou factos que o acompanhem. Contudo, reafirmo que tudo faremos para investigar
com o rigor possível os nomes em causa e convidamos as vítimas, tanto as que já
falaram com a comissão, como as que ainda não o fizeram, a contactarem as respectivas
dioceses para colaborar com essas investigações, fornecendo os detalhes
possíveis, para ajudar nessa investigação e para que assim se possa fazer justiça”.
Estas respostas dizem
essencialmente a mesma coisa, mas uma mostra vontade de chegar à verdade e
outra dá primazia aos obstáculos e às dificuldades.
Porque vamos ser francos,
esses obstáculos existem. Como tive oportunidade já de dizer em quase todos os
comentários que tenho feito sobre este assunto na televisão e na rádio, não há
muito para inventar aqui por parte dos bispos. Eles só têm de colocar em
prática as normas que já existem e que têm sido implementadas noutros países
com grande sucesso. No caso de haver uma acusação esta é analisada; no caso de
ser uma acusação credível o padre é imediatamente suspenso de forma preventiva
e impedido de ter qualquer contacto com crianças ou pessoas vulneráveis
enquanto se investiga para ver se há matéria para se fazer um julgamento ou
não. Caso haja, o padre é julgado (hoje em dia com bastante celeridade), caso
contrário, o processo é arquivado. Simples.
Agora, esses indícios e essa
matéria têm de existir. Não basta um nome escrito numa folha de papel. Pelo que
pergunto, não será possível a comissão fornecer mais dados sem comprometer o
anonimato das vítimas? O relatório está recheado de detalhes de abusos que são
claramente credíveis. Descrevem o espaço em que o alegado abuso aconteceu, o
ambiente, a época ou mesmo o ano. Essa informação não pode, pelo menos nalguns
casos, acompanhar o nome? Parece-me estranho que isso não seja possível, ainda
que nalguns casos possa existir o risco de isso levar à identificação da vítima
por parte de quem conhece as situações.
O problema, para além da forma
da comunicação pelos bispos, é que nas semanas que se passaram desde a
publicação do relatório criou-se uma expectativa desmedida sobre o que iria
acontecer aos padres nomeados na lista. Eu avisei contra isso várias vezes,
incluindo na conversa com o Octávio Carmo, no
podcast Hospital de Campanha. Nunca iria acontecer os nomes serem
simplesmente transpostos para a base de dados das dioceses e riscados da lista.
Há processos a seguir, sob risco de transformarmos a justiça numa caça às bruxas.
Isto é uma coisa tão evidente,
que me espanta muitos jornalistas terem embarcado na narrativa de “afinal a
Igreja não vai suspender os padres suspeitos”, quando ninguém disse isso. O que
se disse foi que essa suspensão não pode ser automática e sem bases, tem de
existir alguma informação para além da simples existência do nome numa lista.
Penso que enquanto sociedade
temos, por isso, o direito a pedir honestidade e inteligência aos jornalistas
que tratam estes assuntos e aos comentadores. As noções de presunção de primazia
do direito e do processo jurídico são basilares numa sociedade que se quer
justa e todos ficamos a ganhar quando isso é respeitado.
Dito isto, também é justo
pedir honestidade e inteligência aos bispos, sendo que aqui a palavra
honestidade pode ser substituída por transparência. Já que estoiraram
magnificamente a oportunidade de esclarecer as pessoas e marcar a vossa posição
na conferência de imprensa, tomem medidas rápidas para mostrar aos portugueses
que estão comprometidos com a justiça e com a verdade.
Há três dias que receberam as
ditas listas. Bastaram
horas para que a diocese do Funchal publicasse um comunicado em que diz
muito claramente que a lista que recebeu contém quatro nomes, um dos quais é
desconhecido e que nenhum dos outros exerce funções na Igreja actualmente.
Porque razão as restantes
dioceses não publicaram já comunicados neste sentido? Neste momento há uma boa parte
dos portugueses que pensa que os bispos meteram a lista na gaveta e que a
tencionam ignorar. Mostrem que isso não é assim. Publiquem os dados que têm –
não é preciso publicar nomes ainda – e periodicamente vão dando conta dos
progressos. Quando uma acusação for considerada credível e o padre for suspenso
preventivamente, conforme está estabelecido, publiquem um comunicado a informar
quem foi e porquê, como tem acontecido recentemente em várias dioceses com
casos de suspeita de abusos, incluindo alguns em que o suspeito acabou por ser
ilibado ou viu o caso arquivado. Depois, deixem o processo seguir o seu curso e
publicitem o seu resultado, seja qual for.
E por amor de Deus, contratem alguém
que vos ajude na comunicação. Seja a nível diocesano – sei que alguns já o fizeram
– seja a nível da CEP. Eu sei que custa dinheiro, mas é nestas alturas que se
percebe que é dinheiro bem gasto.
O resto do país pode não ter
esta noção, mas eu tenho acompanhado isto há muitos anos e tenho visto
claramente uma evolução na forma como a Igreja em Portugal lida com alegações e
casos de abusos. Sei que há muito trabalho feito e muito terreno ganho. Não
deixem que, pelo menos na opinião pública, tudo isso seja deitado a perder por
causa de uma conferência de imprensa que correu mal.
"em todos os casos em que a acusação seja considerada minimamente credível" - será que é para que "padre em questão será imediatamente suspenso preventivamente para que possa decorrer o devido processo canónico" ?????
ReplyDeleteQuando se fala de padres suspeitos que continuam em funções, não se percebe se falamos da Igreja ou do futebol português.
ReplyDeleteTem toda a razão, cometeram os erros todos que podiam. É urgente começar a dizer as coisas certas e pela ordem certa, caso contrário haverá danos enormes.
ReplyDeleteClaramente precisavam de te contratar! Obrigada Filipe pela clareza das tuas palavras e boa ajuda a interpretar o que se passa na comunicação social!
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