Muitos dos signatários desta
carta são os mesmos que escreveram uma outra missiva em Novembro de 2021 a exigir
a criação de uma Comissão Independente. O tempo mostrou, a meu ver, que essa
exigência era necessária e correcta. Não tenho tantas certezas sobre se houve
uma relação directa entre a carta e a decisão tomada pelos bispos, mas admito
que possa ter havido.
No geral, não sou grande fã
deste tipo de iniciativas, que creio que criam mais anticorpos entre o
episcopado do que reacções positivas, mas isso é secundário. Proponho-me agora
olhar mais de perto para algumas das coisas que estão escritas na carta e das
sugestões feitas.
Perto do início, os autores
usam um termo que me parece muito forte: “Este é o
tempo da nossa grande vergonha e, por isso, da expiação do grande pecado
organizado”. É evidente que estamos a falar de pecados e de pecados
terríveis, mas falar de um “grande pecado
organizado” parece-me excessivo*, pois dá a entender que os bispos – ou mais
propriamente os seus antecessores – se sentaram em comitiva para delinear um
plano de encobrimentos e protecção da instituição, que depois foi aplicado à
Igreja como um todo. A leitura do relatório não permite tirar conclusões
dessas. Houve encobrimento e houve casos graves em que os bispos agiram de
forma irresponsável, mas houve também casos em que, mais do que encobrimento,
houve o peso da cultura vigente. No próprio relatório aparecem casos descritos
dos anos 60 e 70 em que os bispos bem tentaram fazer alguma coisa para afastar
os padres em questão, mas quem se opôs e impediu isso foram as próprias
comunidades que nalguns casos organizaram excursões para ir buscar o padre e
trazê-lo de volta. Houve casos em que os bispos tentaram agir, mas não existiu
vontade de colaboração das vítimas. Mas acima de tudo, o relatório deixa claro
que em muitas dioceses nota-se já uma enorme diferença na forma como a Igreja
lidava com estes problemas e na forma como lida actualmente, uma diferença para
melhor.
“A segunda conclusão é a de que na última década, a forma
como a Igreja Católica actua em face a casos desta natureza mudou radicalmente,
passando o apoio à vítima no centro das suas preocupações” (Pg. 427).
O que
me leva ao segundo ponto, dois parágrafos abaixo. Dizem os subscritores da
carta: “Como Igreja, temos agora dois
caminhos possíveis: denegar e iludir, insistir no rumo que nos trouxe a esta
aflição permanente de caminhar para a autodestruição e ferir pessoas; ou
avançar, com oração e com coragem para mudar e reformar, com espírito humilde e
destemido”.
Mais
uma vez, isto parece-me injusto. Não é nesse ponto que estamos. A nomeação da
comissão e a aceitação do relatório fazem parte já de um processo de reforma
que começou há vários anos e que os bispos portugueses demoraram – mais uns que
outros – a pôr em prática, mas que já está a andar. Não estamos, enquanto Igreja,
ainda na posição de poder “insistir no rumo que
nos trouxe” até aqui, já optámos por um caminho novo, em comunhão com as
reformas iniciadas por Bento XVI e aprofundadas pelo Papa Francisco. Repito que
isso fica bastante claro na leitura do relatório, não obstante algumas críticas
justas feitas aos bispos, na maioria eles parecem ter compreendido que é preciso
mudar e implementaram muitas dessas mudanças.
Quer isto dizer que agora é só
deixar andar, que está tudo bem? De todo. Há coisas a fazer, o que nos leva à
parte das sugestões práticas deixadas pelos signatários, e que irei analisar já
de seguida. Mas antes queria repetir o que já disse em muitos lugares. Nós
temos a sorte de estar a passar por isto com 25 anos de atraso em relação a
vários outros países. A experiência nos Estados Unidos e no Reino Unido, por
exemplo, mostra que as reformas implementadas desde que rebentou o grande
escândalo de abusos e encobrimentos por lá estão a funcionar. Nem tudo foi
fácil, tem sido necessário alterar alguns procedimentos, mas o esquema está
feito. É só pegar e adaptar à realidade portuguesa. Nesse sentido, não me parece
especialmente útil escrever e divulgar esta lista de sugestões, como se os
bispos estivessem a operar no vazio, até porque agora, se eles adoptarem algumas
das sugestões vai sempre parecer que o fizeram a reboque da exigência destes
movimentos, o que duvido muito que seja verdade.
Mas vamos às sugestões propriamente
ditas:
Em primeiro lugar, sugere-se a
criação de “mecanismos que viabilizem apoio e ajuda
psicológica e psiquiátrica às vítimas a realizar fora do âmbito eclesial, e
ajuda espiritual, caso elas a pretendam”. Isto parece-me ser essencial. Já expliquei
noutro lado que a maioria das vítimas ouvidas no relatório não pede indemnizações,
pede ajuda psicológica. Não me parece que seja inviável a Igreja criar estas
estruturas e acredito que o deve fazer o quanto antes.
Os signatários
pedem ainda que: “seja criada uma nova
comissão independente, à semelhança da anterior, que prossiga o trabalho,
continue a receber denúncias de abusos e a acompanhar casos”. Mais uma vez,
isto parece-me fundamental e é mesmo uma sugestão da própria comissão.
Claramente ficaram muitas vozes por ouvir. Muitas pessoas não terão contactado
a comissão por uma questão de desconhecimento, outras por falta de coragem ou
de confiança, mas acredito que tudo o que se tem dito e falado sobre o relatório
nas últimas semanas possa motivar outros a vir contar as suas histórias. É
importante que este seja um trabalho a continuar no tempo e espero que a Igreja
aproveite esta oportunidade para isso mesmo.
No
ponto f, a carta aberta pede que “bispos encobridores,
a existirem, se retirem de funções”. É apenas uma frase, mas tem muito que
se lhe diga. Eu acredito, mesmo depois de ter lido o relatório, que a
esmagadora maioria dos bispos actualmente ao serviço não são culpados de encobrir
casos, sobretudo de forma consciente. Convém, recorde-se, não julgar os casos
de há 10, 15 ou mais anos à luz das normas em vigor hoje. Houve casos em que
não se denunciou às autoridades civis, por exemplo, não por vontade de
encobrir, mas por respeito pela vontade da vítima, etc.,
Em
todo o caso, é possível que se venha a descobrir que houve outros casos mais
explícitos de encobrimento, que digam respeito a bispos no activo. O problema é
– e ainda não vi quase ninguém falar disso – quem supervisiona os bispos?
A meu
ver uma das formas de os bispos mostrarem que estão verdadeiramente
comprometidos com uma nova cultura de transparência e responsabilização seria
dar alguma autoridade a uma comissão – até pode ser a mesma que vai dar seguimento
ao trabalho desta que cessa agora funções – para avaliar a forma como cada caso
é ou foi tratado e fazer recomendações com base nisso, dizendo, por exemplo, se
consideram que houve dolo na forma como um bispo tratou um caso de abusos. A
questão depois passa para as mãos do próprio bispo e da Santa Sé.
É
importante perceber que abusadores e predadores sempre os haverá, por mais que
se possa apostar na formação dos padres para prevenir o pior, mas o que é
verdadeiramente indesculpável é o encobrimento, como já vimos em larga escala
noutros lugares. É muito importante que esta consciência que os bispos actuais
parecem ter ganho sobre a gravidade do encobrimento e a necessidade de transparência
permaneça e não se perca com o passar do tempo e das gerações.
O ponto
j preocupa-me. “Seja encetada uma reflexão de
fundo sobre o impacto negativo que a percepção distorcida sobre a sexualidade
humana tem vindo a causar em toda a Igreja, com a ajuda de especialistas
externos”.
O que
é que isto quer dizer, precisamente? Que a ideia que a Igreja tem e defende
sobre a sexualidade humana é distorcida? É isso que me parece que estão a dizer
os signatários, e conhecendo alguns deles, não me espanta que assim seja. Acontece
que eu discordo profundamente. Acho que a noção de sexualidade apresentada pela
Igreja, quando verdadeiramente explicada e aprofundada, é precisamente a
solução para alguns dos problemas de natureza sexual que encontramos com
predadores dentro da Igreja e com a sociedade em geral. Pode ser que esteja a
entender mal a frase, mas se sim, é porque está pouco clara e pode querer dizer
tudo ou nada. Seja como for, a mim causa-me desconfiança e acho que não faz
falta na carta.
E
chegamos por fim a dois pontos que acho que devem ser discutidos em conjunto,
que são o g e o k.
No
ponto g lê-se “todos os abusadores que
estejam actualmente ao serviço da Igreja sejam suspensos com carácter
preventivo sempre que haja indícios minimamente credíveis sobre abusos e,
quando considerados culpados à luz da moral cristã, independentemente de
eventual processo judicial, sejam dispensados de funções e no caso de clérigos
passando ao estado laical”.
E no ponto k: “seja
proporcionado um acompanhamento aos abusadores que necessariamente inclua tratamento
psiquiátrico e psicológico”.
O problema é que estes dois
pontos são contraditórios.
É muito fácil pedir a demissão
do estado clerical para pessoas culpadas de abusos sexuais de menores. Mas o
problema põe-se quando não existe possibilidade de processo judicial civil, por
prescrição, por exemplo. Aí, tudo o que acontece com a expulsão do estado
clerical do abusador é que ele é devolvido à sociedade sem qualquer supervisão
e sem qualquer controlo. A Igreja livra-se de uma dor de cabeça, mas a
sociedade fica com uma ameaça à solta.
Este ponto é referido mesmo no
relatório, por exemplo na página 441: “O facto de os abusos sexuais na
Igreja Católica ter ganho projeção mediática relativamente tarde em Portugal
permitiu que o padre F., depois de cumprir a pena, recomeçasse a sua vida de
sacerdote num país onde o seu passado não era conhecido. Atualmente, atendendo
à presença mediática do tema em Portugal, tal teria sido menos provável; o
padre F. teria sido eventualmente convidado a solicitar a passagem ao estado
laical ou colocado sob vigilância apertada sem qualquer contacto com crianças e
adolescentes. Assumindo que a expulsão da Igreja Católica não «resolve o
problema» no sentido de evitar a reincidência do crime noutros espaços,
situações como a do padre F. convidam a uma reflexão sobre como lidar com
sacerdotes condenados pela justiça civil que manifestem vontade de permanecer
no seio da Igreja Católica.»
Cada caso é um caso. Em muitos
a expulsão do sacerdócio pode e deve ser a solução, mas noutros pode não ser a
melhor resposta para proteger a sociedade, pelo que exigências simples como
esta apresentada na carta não são muito úteis.
Mais, como referi, essa
exigência entra em contradição directa com o ponto k, que pede acompanhamento
psicológico para os abusadores. Ora, se os abusadores forem expulsos do estado
clerical, deixando por isso de ter qualquer obrigação de obediência aos seus
superiores hierárquicos, quem é que os vai obrigar a aceitar esse acompanhamento?
Podem fazê-lo de forma voluntária, claro. Mas conhecendo o perfil psicológico
da maioria dos abusadores, que tendem a não reconhecer a sua culpa ou a
gravidade dos seus crimes, não é provável que isso aconteça.
Os bispos reúnem-se amanhã.
Terão muito trabalho pela frente. Esperemos que dêem seguimento e continuidade
ao muito de bom que já foi feito, que identifiquem e reconheçam pontos onde
podem melhorar e rezemos para que se sintam inspirados pelo Espírito Santo e apoiados
pelos fiéis nesta caminhada em que devemos continuar.
* Já depois de publicado o artigo, o meu amigo Rui Almeida publicou no Facebook o seguinte comentário, que me parece pertinente reproduzir aqui: "Obrigado, Filipe, por disponibilizares a carta e pela tua reflexão. Em relação à expressão «pecado organizado» (que calculo que tenha sido decalcado da famosa "Cantata da Paz", de Sophia de Mello Breyner), percebo a forma como a interpretas, mas parece-me que fazes uma interpretação excessiva. Num texto («Servir ou servir-se?»), incluído no livro 'Uma anatomia do poder eclesiástico' (Universidade Católica Editora, 2022), o Pe. José Manuel Pereira de Almeida fala em «estruturas de pecado», expressão que vai buscar à encíclica de João Paulo II, 'Solicitudo rei socialis', para identificar os ambientes eclesiais quem permitiram (também) os abusos sexuais. Talvez a leitura deste texto ajude a perceber a expressão usada na carta."
Carissimo Francisco: "É isso que me parece que estão a dizer os signatários, e conhecendo alguns deles, não me espanta que assim seja"; "Seja como for, a mim causa-me desconfiança e acho que não faz falta na carta." - o que o caro Francisco necessita mais?
ReplyDeleteBoa tarde, quem são os subscritores?
ReplyDeleteA lista de subscritores é enorme... Por isso não publiquei.
DeleteMas há uma lista mais curta de "Subscritores colectivos":
• Movimento “Nós Somos Igreja-Portugal”
• ACI - Ação Católica dos meios sociais independentes
• Foco ecológico da Comunidade da Capela do Rato, Lisboa
• GRAAL
• Metanoia - Movimento Católico de Profissionais
• Nós Entre Nós - Grupo Sinodal, Braga
Francisco, se tiveres aí, o SR tem umas perguntas para te fazer.
ReplyDeletePeço imensa desculpa por este erro tão clamoroso, corrijo para Caríssimo Filipe. As minhas desculpas novamente, vou testar não voltar a falhar pois isto ė tremendo.
DeleteEstava a brincar consigo. Há poucas pessoas no mundo piores que eu a lembrar nomes e caras.
DeleteUma recomendação importante seria precisamente reforçar o ensino da doutrina da Igreja sobre a sexualidade. É sem dúvida o melhor remédio e a melhor prevenção. O plano de Deus para o amor humano, conhecido como Teologia do Corpo, tem um ciclo específico para a vida consagrada. Em Portugal há uma associação dedicada ao estudo e promoção deste ensinamento: CERTA-Centro de Estudos e Recursos Teologia do Amor.
DeleteUma recomendação importante seria precisamente reforçar o ensino da doutrina da Igreja sobre a sexualidade. É sem dúvida o melhor remédio e a melhor prevenção. O plano de Deus para o amor humano, conhecido como Teologia do Corpo, tem um ciclo específico para a vida consagrada. Em Portugal há uma associação dedicada ao estudo e promoção deste ensinamento: CERTA-Centro de Estudos e Recursos Teologia do Amor.
ReplyDeleteTenho-me interrogado sobre se não haverá também católicos leigos implicados neste tipo de abusos. O processo casa Pia veio revelar que na sua grande maioria se passavam no seio das famílias e o próprio Papa Francisco aludiu ao facto na entrevista que concedeu à Maria João Avillez.
ReplyDeleteMaria José Salema
Sabe-se que na maioria se passam nas famílias, mas isso é semelhante a dizer que a maioria dos acidentes de carro se passam na estrada. É nas famílias que as crianças estão, na sua maioria. Não são realidades comparáveis.
DeleteEm todo o caso, sabe-se que alguns dos implicados são leigos, sim. Acólitos, catequistas, professores de EMRC, etc.
Também estão incluídos no relatório.
É preciso ter cuidado com os alegados católicos. Podem não ser tanto.
ReplyDeleteReforço as palavras da Maria José Vilaça. Sem um estudo aprofundado da maravilha que é a visão da sexualidade humana da Igreja Católica, não iremos muito longe, nem no tema dos abusos, nem no tema da preparação para o matrimónio. Conhecer a doutrina da Igreja é fundamental. E a Teologia do Corpo está aí para que todos os católicos, solteiros, casados, consagrados, sacerdotes, possam viver a sua sexualidade como ela foi pensada por Deus.
ReplyDeleteInfelizmente, muitos dos signatários desta carta, pelo menos dos grupos que o Filipe nomeou, defendem posições contrárias à doutrina católica - uma modernice dos católicos dos nossos tempos, e um sinal dos tempos, em que ninguém parece saber exatamente o que significa ser católico.