Thursday, 2 March 2023

Abusos - Alguns comentários sobre a carta aberta aos bispos

Um grupo de católicos escreveu uma carta aos bispos em que tece alguns comentários sobre o momento actual da Igreja portuguesa, pós-relatório, e faz sugestões de medidas concretas a adoptar para o futuro.

Muitos dos signatários desta carta são os mesmos que escreveram uma outra missiva em Novembro de 2021 a exigir a criação de uma Comissão Independente. O tempo mostrou, a meu ver, que essa exigência era necessária e correcta. Não tenho tantas certezas sobre se houve uma relação directa entre a carta e a decisão tomada pelos bispos, mas admito que possa ter havido.

No geral, não sou grande fã deste tipo de iniciativas, que creio que criam mais anticorpos entre o episcopado do que reacções positivas, mas isso é secundário. Proponho-me agora olhar mais de perto para algumas das coisas que estão escritas na carta e das sugestões feitas.

Perto do início, os autores usam um termo que me parece muito forte: “Este é o tempo da nossa grande vergonha e, por isso, da expiação do grande pecado organizado”. É evidente que estamos a falar de pecados e de pecados terríveis, mas falar de um “grande pecado organizado” parece-me excessivo*, pois dá a entender que os bispos – ou mais propriamente os seus antecessores – se sentaram em comitiva para delinear um plano de encobrimentos e protecção da instituição, que depois foi aplicado à Igreja como um todo. A leitura do relatório não permite tirar conclusões dessas. Houve encobrimento e houve casos graves em que os bispos agiram de forma irresponsável, mas houve também casos em que, mais do que encobrimento, houve o peso da cultura vigente. No próprio relatório aparecem casos descritos dos anos 60 e 70 em que os bispos bem tentaram fazer alguma coisa para afastar os padres em questão, mas quem se opôs e impediu isso foram as próprias comunidades que nalguns casos organizaram excursões para ir buscar o padre e trazê-lo de volta. Houve casos em que os bispos tentaram agir, mas não existiu vontade de colaboração das vítimas. Mas acima de tudo, o relatório deixa claro que em muitas dioceses nota-se já uma enorme diferença na forma como a Igreja lidava com estes problemas e na forma como lida actualmente, uma diferença para melhor.

A segunda conclusão é a de que na última década, a forma como a Igreja Católica actua em face a casos desta natureza mudou radicalmente, passando o apoio à vítima no centro das suas preocupações” (Pg. 427).

O que me leva ao segundo ponto, dois parágrafos abaixo. Dizem os subscritores da carta: “Como Igreja, temos agora dois caminhos possíveis: denegar e iludir, insistir no rumo que nos trouxe a esta aflição permanente de caminhar para a autodestruição e ferir pessoas; ou avançar, com oração e com coragem para mudar e reformar, com espírito humilde e destemido”.

Mais uma vez, isto parece-me injusto. Não é nesse ponto que estamos. A nomeação da comissão e a aceitação do relatório fazem parte já de um processo de reforma que começou há vários anos e que os bispos portugueses demoraram – mais uns que outros – a pôr em prática, mas que já está a andar. Não estamos, enquanto Igreja, ainda na posição de poder “insistir no rumo que nos trouxe” até aqui, já optámos por um caminho novo, em comunhão com as reformas iniciadas por Bento XVI e aprofundadas pelo Papa Francisco. Repito que isso fica bastante claro na leitura do relatório, não obstante algumas críticas justas feitas aos bispos, na maioria eles parecem ter compreendido que é preciso mudar e implementaram muitas dessas mudanças.

Quer isto dizer que agora é só deixar andar, que está tudo bem? De todo. Há coisas a fazer, o que nos leva à parte das sugestões práticas deixadas pelos signatários, e que irei analisar já de seguida. Mas antes queria repetir o que já disse em muitos lugares. Nós temos a sorte de estar a passar por isto com 25 anos de atraso em relação a vários outros países. A experiência nos Estados Unidos e no Reino Unido, por exemplo, mostra que as reformas implementadas desde que rebentou o grande escândalo de abusos e encobrimentos por lá estão a funcionar. Nem tudo foi fácil, tem sido necessário alterar alguns procedimentos, mas o esquema está feito. É só pegar e adaptar à realidade portuguesa. Nesse sentido, não me parece especialmente útil escrever e divulgar esta lista de sugestões, como se os bispos estivessem a operar no vazio, até porque agora, se eles adoptarem algumas das sugestões vai sempre parecer que o fizeram a reboque da exigência destes movimentos, o que duvido muito que seja verdade.

Mas vamos às sugestões propriamente ditas:

Em primeiro lugar, sugere-se a criação de “mecanismos que viabilizem apoio e ajuda psicológica e psiquiátrica às vítimas a realizar fora do âmbito eclesial, e ajuda espiritual, caso elas a pretendam”. Isto parece-me ser essencial. Já expliquei noutro lado que a maioria das vítimas ouvidas no relatório não pede indemnizações, pede ajuda psicológica. Não me parece que seja inviável a Igreja criar estas estruturas e acredito que o deve fazer o quanto antes.

Os signatários pedem ainda que: “seja criada uma nova comissão independente, à semelhança da anterior, que prossiga o trabalho, continue a receber denúncias de abusos e a acompanhar casos”. Mais uma vez, isto parece-me fundamental e é mesmo uma sugestão da própria comissão. Claramente ficaram muitas vozes por ouvir. Muitas pessoas não terão contactado a comissão por uma questão de desconhecimento, outras por falta de coragem ou de confiança, mas acredito que tudo o que se tem dito e falado sobre o relatório nas últimas semanas possa motivar outros a vir contar as suas histórias. É importante que este seja um trabalho a continuar no tempo e espero que a Igreja aproveite esta oportunidade para isso mesmo.

No ponto f, a carta aberta pede que “bispos encobridores, a existirem, se retirem de funções”. É apenas uma frase, mas tem muito que se lhe diga. Eu acredito, mesmo depois de ter lido o relatório, que a esmagadora maioria dos bispos actualmente ao serviço não são culpados de encobrir casos, sobretudo de forma consciente. Convém, recorde-se, não julgar os casos de há 10, 15 ou mais anos à luz das normas em vigor hoje. Houve casos em que não se denunciou às autoridades civis, por exemplo, não por vontade de encobrir, mas por respeito pela vontade da vítima, etc.,

Em todo o caso, é possível que se venha a descobrir que houve outros casos mais explícitos de encobrimento, que digam respeito a bispos no activo. O problema é – e ainda não vi quase ninguém falar disso – quem supervisiona os bispos?

A meu ver uma das formas de os bispos mostrarem que estão verdadeiramente comprometidos com uma nova cultura de transparência e responsabilização seria dar alguma autoridade a uma comissão – até pode ser a mesma que vai dar seguimento ao trabalho desta que cessa agora funções – para avaliar a forma como cada caso é ou foi tratado e fazer recomendações com base nisso, dizendo, por exemplo, se consideram que houve dolo na forma como um bispo tratou um caso de abusos. A questão depois passa para as mãos do próprio bispo e da Santa Sé.

É importante perceber que abusadores e predadores sempre os haverá, por mais que se possa apostar na formação dos padres para prevenir o pior, mas o que é verdadeiramente indesculpável é o encobrimento, como já vimos em larga escala noutros lugares. É muito importante que esta consciência que os bispos actuais parecem ter ganho sobre a gravidade do encobrimento e a necessidade de transparência permaneça e não se perca com o passar do tempo e das gerações.

O ponto j preocupa-me. “Seja encetada uma reflexão de fundo sobre o impacto negativo que a percepção distorcida sobre a sexualidade humana tem vindo a causar em toda a Igreja, com a ajuda de especialistas externos”.

O que é que isto quer dizer, precisamente? Que a ideia que a Igreja tem e defende sobre a sexualidade humana é distorcida? É isso que me parece que estão a dizer os signatários, e conhecendo alguns deles, não me espanta que assim seja. Acontece que eu discordo profundamente. Acho que a noção de sexualidade apresentada pela Igreja, quando verdadeiramente explicada e aprofundada, é precisamente a solução para alguns dos problemas de natureza sexual que encontramos com predadores dentro da Igreja e com a sociedade em geral. Pode ser que esteja a entender mal a frase, mas se sim, é porque está pouco clara e pode querer dizer tudo ou nada. Seja como for, a mim causa-me desconfiança e acho que não faz falta na carta.

E chegamos por fim a dois pontos que acho que devem ser discutidos em conjunto, que são o g e o k.

No ponto g lê-se “todos os abusadores que estejam actualmente ao serviço da Igreja sejam suspensos com carácter preventivo sempre que haja indícios minimamente credíveis sobre abusos e, quando considerados culpados à luz da moral cristã, independentemente de eventual processo judicial, sejam dispensados de funções e no caso de clérigos passando ao estado laical”.

E no ponto k: “seja proporcionado um acompanhamento aos abusadores que necessariamente inclua tratamento psiquiátrico e psicológico”.

O problema é que estes dois pontos são contraditórios.

É muito fácil pedir a demissão do estado clerical para pessoas culpadas de abusos sexuais de menores. Mas o problema põe-se quando não existe possibilidade de processo judicial civil, por prescrição, por exemplo. Aí, tudo o que acontece com a expulsão do estado clerical do abusador é que ele é devolvido à sociedade sem qualquer supervisão e sem qualquer controlo. A Igreja livra-se de uma dor de cabeça, mas a sociedade fica com uma ameaça à solta.

Este ponto é referido mesmo no relatório, por exemplo na página 441: “O facto de os abusos sexuais na Igreja Católica ter ganho projeção mediática relativamente tarde em Portugal permitiu que o padre F., depois de cumprir a pena, recomeçasse a sua vida de sacerdote num país onde o seu passado não era conhecido. Atualmente, atendendo à presença mediática do tema em Portugal, tal teria sido menos provável; o padre F. teria sido eventualmente convidado a solicitar a passagem ao estado laical ou colocado sob vigilância apertada sem qualquer contacto com crianças e adolescentes. Assumindo que a expulsão da Igreja Católica não «resolve o problema» no sentido de evitar a reincidência do crime noutros espaços, situações como a do padre F. convidam a uma reflexão sobre como lidar com sacerdotes condenados pela justiça civil que manifestem vontade de permanecer no seio da Igreja Católica

Cada caso é um caso. Em muitos a expulsão do sacerdócio pode e deve ser a solução, mas noutros pode não ser a melhor resposta para proteger a sociedade, pelo que exigências simples como esta apresentada na carta não são muito úteis.

Mais, como referi, essa exigência entra em contradição directa com o ponto k, que pede acompanhamento psicológico para os abusadores. Ora, se os abusadores forem expulsos do estado clerical, deixando por isso de ter qualquer obrigação de obediência aos seus superiores hierárquicos, quem é que os vai obrigar a aceitar esse acompanhamento? Podem fazê-lo de forma voluntária, claro. Mas conhecendo o perfil psicológico da maioria dos abusadores, que tendem a não reconhecer a sua culpa ou a gravidade dos seus crimes, não é provável que isso aconteça.

Os bispos reúnem-se amanhã. Terão muito trabalho pela frente. Esperemos que dêem seguimento e continuidade ao muito de bom que já foi feito, que identifiquem e reconheçam pontos onde podem melhorar e rezemos para que se sintam inspirados pelo Espírito Santo e apoiados pelos fiéis nesta caminhada em que devemos continuar.


* Já depois de publicado o artigo, o meu amigo Rui Almeida publicou no Facebook o seguinte comentário, que me parece pertinente reproduzir aqui: "Obrigado, Filipe, por disponibilizares a carta e pela tua reflexão. Em relação à expressão «pecado organizado» (que calculo que tenha sido decalcado da famosa "Cantata da Paz", de Sophia de Mello Breyner), percebo a forma como a interpretas, mas parece-me que fazes uma interpretação excessiva. Num texto («Servir ou servir-se?»), incluído no livro 'Uma anatomia do poder eclesiástico' (Universidade Católica Editora, 2022), o Pe. José Manuel Pereira de Almeida fala em «estruturas de pecado», expressão que vai buscar à encíclica de João Paulo II, 'Solicitudo rei socialis', para identificar os ambientes eclesiais quem permitiram (também) os abusos sexuais. Talvez a leitura deste texto ajude a perceber a expressão usada na carta."

12 comments:

  1. Carissimo Francisco: "É isso que me parece que estão a dizer os signatários, e conhecendo alguns deles, não me espanta que assim seja"; "Seja como for, a mim causa-me desconfiança e acho que não faz falta na carta." - o que o caro Francisco necessita mais?

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  2. Boa tarde, quem são os subscritores?

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    1. A lista de subscritores é enorme... Por isso não publiquei.
      Mas há uma lista mais curta de "Subscritores colectivos":
      • Movimento “Nós Somos Igreja-Portugal”
      • ACI - Ação Católica dos meios sociais independentes
      • Foco ecológico da Comunidade da Capela do Rato, Lisboa
      • GRAAL
      • Metanoia - Movimento Católico de Profissionais
      • Nós Entre Nós - Grupo Sinodal, Braga

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  3. Francisco, se tiveres aí, o SR tem umas perguntas para te fazer.

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    1. Peço imensa desculpa por este erro tão clamoroso, corrijo para Caríssimo Filipe. As minhas desculpas novamente, vou testar não voltar a falhar pois isto ė tremendo.

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    2. Estava a brincar consigo. Há poucas pessoas no mundo piores que eu a lembrar nomes e caras.

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    3. Uma recomendação importante seria precisamente reforçar o ensino da doutrina da Igreja sobre a sexualidade. É sem dúvida o melhor remédio e a melhor prevenção. O plano de Deus para o amor humano, conhecido como Teologia do Corpo, tem um ciclo específico para a vida consagrada. Em Portugal há uma associação dedicada ao estudo e promoção deste ensinamento: CERTA-Centro de Estudos e Recursos Teologia do Amor.

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  4. Uma recomendação importante seria precisamente reforçar o ensino da doutrina da Igreja sobre a sexualidade. É sem dúvida o melhor remédio e a melhor prevenção. O plano de Deus para o amor humano, conhecido como Teologia do Corpo, tem um ciclo específico para a vida consagrada. Em Portugal há uma associação dedicada ao estudo e promoção deste ensinamento: CERTA-Centro de Estudos e Recursos Teologia do Amor.

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  5. Tenho-me interrogado sobre se não haverá também católicos leigos implicados neste tipo de abusos. O processo casa Pia veio revelar que na sua grande maioria se passavam no seio das famílias e o próprio Papa Francisco aludiu ao facto na entrevista que concedeu à Maria João Avillez.
    Maria José Salema

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    1. Sabe-se que na maioria se passam nas famílias, mas isso é semelhante a dizer que a maioria dos acidentes de carro se passam na estrada. É nas famílias que as crianças estão, na sua maioria. Não são realidades comparáveis.
      Em todo o caso, sabe-se que alguns dos implicados são leigos, sim. Acólitos, catequistas, professores de EMRC, etc.
      Também estão incluídos no relatório.

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  6. É preciso ter cuidado com os alegados católicos. Podem não ser tanto.

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  7. Reforço as palavras da Maria José Vilaça. Sem um estudo aprofundado da maravilha que é a visão da sexualidade humana da Igreja Católica, não iremos muito longe, nem no tema dos abusos, nem no tema da preparação para o matrimónio. Conhecer a doutrina da Igreja é fundamental. E a Teologia do Corpo está aí para que todos os católicos, solteiros, casados, consagrados, sacerdotes, possam viver a sua sexualidade como ela foi pensada por Deus.
    Infelizmente, muitos dos signatários desta carta, pelo menos dos grupos que o Filipe nomeou, defendem posições contrárias à doutrina católica - uma modernice dos católicos dos nossos tempos, e um sinal dos tempos, em que ninguém parece saber exatamente o que significa ser católico.

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