A confusão nasceu precisamente
no seio da Comissão Independente. A ideia de que a lista iria incluir nomes de abusadores
ainda activos na Igreja foi avançada pelo próprio Pedro Strecht na conferência
de imprensa de apresentação do relatório e, mais, está inscrita no relatório,
na página 109.
Decidiu, assim, a Comissão
Independente, depois de muito ponderar, que a lista das pessoas alegadas
abusadoras ainda no ativo, seria remetida, apenas no termo dos trabalhos, tanto
ao Ministério Público, como à Conferência Episcopal Portuguesa, entidade que
promoveu o presente Estudo, para a análise que aí se julgar adequada,
recomendando, embora, e em ambas as situações, o máximo respeito pelo sigilo
desde o início garantido.
Naturalmente, por isso,
criou-se entre a imprensa e entre a população uma grande expectativa. Haveria
mais de 100 abusadores ainda no activo na Igreja portuguesa. O que é que os
bispos fariam sobre o assunto?
Quando Funchal divulgou os
seus dados, porém, veio-se a perceber que três dos quatro nomes afinal eram de
pessoas que estando vivas não exerciam qualquer cargo eclesiástico. Ora, isto
pode querer dizer muita coisa. Pode significar que o padre já se encontra afastado
do exercício do sacerdócio; que esteve afastado para investigação e até já foi
ilibado, mas ainda não foi reintegrado (há pelo menos um caso assim na lista geral);
que está reformado ou doente; ou então que já não tem qualquer cargo atribuído
porque entretanto foi demitido do estado clerical, ou por vontade própria ou
por imposição da Igreja. Posto por outras palavras, e para melhor se poder
perceber, na lista do Funchal, por exemplo, um dos três padres referidos
poderia até ser o “padre” Frederico, sobre quem o actual bispo pouco ou nada
poderia fazer, como é evidente.
Depois do Funchal surgiram
vários outros casos semelhantes e até bastantes de padres e leigos alegados
abusadores que já morreram.
Entretanto, muito por culpa
própria, a Igreja enfrentava uma profunda crise derivada do facto de ter dado a entender que não havia por parte dos bispos qualquer vontade de
afastar preventivamente os padres suspeitos. Juntando as duas coisas, fomos
sujeitados a vários exemplos como este:
Perante isto, a Renascença tentou falar com vários membros da Comissão para saber o que se passava,
mas nenhum atendeu, com excepção de Ana Nunes de Almeida que disse não iria
comentar as listas.
Um ou dois dias seguintes, contudo, em resposta a um tweet meu, em que eu expressava surpresa e desagrado por ter sido prometida uma lista de 100 nomes de abusadores activos quando afinal mais de 50% não podia de forma alguma ser descrita como activa, ela revelou que sim, a primeira intenção tinha sido de apresentar uma lista de abusadores activos, mas depois mudou-se de ideias e optou-se por se incluir na lista todos os casos, vivos e mortos.
Embora não fosse esse o foco do Estudo, mas p exigência moral e cívica, foi acordado com a CEP entregar-lhe no fim os nomes de todos os alegados abusadores q as vítimas referissem nos seus testemunhos. Caberia dp à Igreja fazer uso dessa informação como entendesse.
— Ana Nunes de Almeida (@amalmeidaseabra) March 10, 2023
Aliás, desde que Ana Nunes de Almeida deu essa entrevista, Pedro Strecht deu uma entrevista à SIC Notícias (Cerca 12’30”) em que a jornalista lhe perguntou se a lista com o nome de padres abusadores no activo iria ser entregue aos bispos e respondeu: “Exactamente”, se bem que depois – ouvindo agora com atenção é que se apanha – tenha dito que ao Ministério Público iria ser entregue uma lista com os nomes dos padres “ainda vivos”.
E agora mais recentemente
Daniel Sampaio veio
a público defender o trabalho da Comissão dizendo que “é possível que
existam [padres mortos] porque é uma lista muito difícil de concretizar,
estamos a falar de abusos entre 1950 e 2022”.
Isto não são declarações de
quem sabia à partida que era mesmo suposto a lista incluir nomes de padres já mortos, pelo contrário, é
uma desculpa para eles estarem lá acidentalmente.
Finalmente, esta terça-feira o
Observador publicou uma longa e interessante entrevista com Laborinho Lúcio em que se
aborda longamente esta questão das listas. Ele confirma aquilo que Ana Nunes de
Almeida já tinha dito, mas deixa também no ar a ideia de que esta discussão foi
criada como forma de desviar a atenção do essencial, que são as vítimas. Ora,
dizer isso é não compreender a comunicação social. É evidente que, criada a
ideia de que havia 100 pedófilos à solta na Igreja, esse seria sempre o foco
principal da comunicação social na semana depois da entrega das tais listas.
Urge, por isso, perguntar
porque é que ao longo de mais de uma semana em que todos os meios de
comunicação continuaram a falar de uma lista de abusadores ainda no activo,
ninguém da Comissão veio anunciar publicamente, de forma clara e a um meio de
grande circulação e audiência – que obviamente estariam disponíveis para isso –
que afinal tinha-se espalhado uma percepção errada e que a decisão de base era
outra. Tenho criticado muito as falhas de comunicação dos bispos, mas estas
falhas de comunicação da Comissão também são lamentáveis. A diferença é que já
vimos bispos a vir fazer meas culpas pelos seus fracassos
comunicacionais, mas a Comissão continua a recusar qualquer crítica ou a fazer
qualquer esclarecimento.
E depois?
É natural que se pergunte, e
muitos têm perguntado, afinal o que é que isto interessa? Mortos ou vivos, se
estes homens abusaram mesmo de alguém então o que importa é reconhecer e ajudar
a vítima. Têm toda a razão!
O problema é que esta confusão
das listas, a somar-se à confusão das declarações dos bispos, aparentemente
contraditórios, corre o risco de afectar sobretudo as vítimas. As que
contribuíram para o relatório e outras que ou ainda não contribuíram, ou então ainda
estão por vir. Esse é o grande objectivo de toda esta operação. O relatório, as
comissões diocesanas, a comissão independente, os memoriais, os pedidos de
desculpa, tudo isso só faz sentido se contribuir para criar um ambiente
eclesial em que as pessoas se sentem em segurança e em que sentem que se
tiverem uma denúncia a fazer podem fazê-la e que serão levadas a sério.
Tudo o que servir para descredibilizar
o processo desta Comissão Independente e do relatório que produziu, acaba por
prejudicar as vítimas. É por isso que é importante reconhecer que esta
baralhada das listas, que acabou por gerar muito ruído, foi um erro. Podiam
incluir lá os padres que quisessem, não podiam era anunciar uma coisa, deixar
espalhar-se uma ideia, e depois fazer uma coisa diferente.
Mais, estes erros encorajam
aqueles que nunca quiseram aceitar o trabalho e as conclusões da Comissão
Independente e do relatório, descrevendo-o como um “ataque à Igreja”.
Já o disse várias vezes, e
repito. A melhor solução para isto é os bispos e a Comissão Independente
juntarem-se novamente, falarem sem cerimónias, porem cá para fora tudo o que os
desagradou nestas últimas semanas e aceitar que de ambos os lados se cometeram
erros. Afinal de contas, é a primeira vez que se faz algo deste género em
Portugal, era natural que nem tudo corresse bem. Urge, contudo, salvar a
credibilidade deste processo para que não tenha sido tudo em vão.
É por isso com muito agrado
que vejo, por entre algumas críticas duras, palavras conciliatórias nesta
entrevista de Laborinho Lúcio ao Observador, recusando quase sempre imputar má
vontade aos bispos que têm dito coisas infelizes e elogiando muito claramente a
coragem da Igreja de se deixar escrutinar desta forma.
Tenho sugerido que a Comissão e os bispos se voltem a encontrar para falar. Algumas pessoas me têm dito que isso não é cada vez menos provável. Mantenho a esperança de que impere de ambos os lados o bom senso de resgatar a credibilidade de todo este processo para benefício das vítimas, sobretudo.
O problema é que existem listas com 407 pessoas abusadoras (Pa) nas páginas 385-388 que não coincidem com a lista dos 100, de vivos e mortos, que vão de 1950 a 2022. A lógica da CI devia ter sido a entrega de 407 nomes à CEP e foi de 100 nomes, por estarem vivos os padres e as vítimas que poderão ser ressarcidas. E isto tem mesmo de ser perguntado; ou porque eles existem ou porque não existem; se não existirem podemos pôr em causa centenas de testemunhos credíveis. Portanto, para nos podermo centrar nas vítimas, é preciso esclarecer as questões metodológicas, abertas por Daniel Sampaio e Laborinho Lúcio.
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