Tuesday, 14 March 2023

Abusadores activos ou não activos? E isso interessa?

Jesus a reactivar Lázaro

Ao longo da última semana, desde que as dioceses começaram a lançar comunicados a dar conta dos nomes que tinham recebido nas suas listas, que a perplexidade se tem adensado. Afinal não era suposto a lista de 100+ nomes que a Comissão Independente entregou aos bispos incluir apenas abusadores que estão no activo? Pois parece que não. Mas como é que esta confusão nasceu?

A confusão nasceu precisamente no seio da Comissão Independente. A ideia de que a lista iria incluir nomes de abusadores ainda activos na Igreja foi avançada pelo próprio Pedro Strecht na conferência de imprensa de apresentação do relatório e, mais, está inscrita no relatório, na página 109.

Decidiu, assim, a Comissão Independente, depois de muito ponderar, que a lista das pessoas alegadas abusadoras ainda no ativo, seria remetida, apenas no termo dos trabalhos, tanto ao Ministério Público, como à Conferência Episcopal Portuguesa, entidade que promoveu o presente Estudo, para a análise que aí se julgar adequada, recomendando, embora, e em ambas as situações, o máximo respeito pelo sigilo desde o início garantido.

Naturalmente, por isso, criou-se entre a imprensa e entre a população uma grande expectativa. Haveria mais de 100 abusadores ainda no activo na Igreja portuguesa. O que é que os bispos fariam sobre o assunto?

Quando Funchal divulgou os seus dados, porém, veio-se a perceber que três dos quatro nomes afinal eram de pessoas que estando vivas não exerciam qualquer cargo eclesiástico. Ora, isto pode querer dizer muita coisa. Pode significar que o padre já se encontra afastado do exercício do sacerdócio; que esteve afastado para investigação e até já foi ilibado, mas ainda não foi reintegrado (há pelo menos um caso assim na lista geral); que está reformado ou doente; ou então que já não tem qualquer cargo atribuído porque entretanto foi demitido do estado clerical, ou por vontade própria ou por imposição da Igreja. Posto por outras palavras, e para melhor se poder perceber, na lista do Funchal, por exemplo, um dos três padres referidos poderia até ser o “padre” Frederico, sobre quem o actual bispo pouco ou nada poderia fazer, como é evidente.

Depois do Funchal surgiram vários outros casos semelhantes e até bastantes de padres e leigos alegados abusadores que já morreram.

Entretanto, muito por culpa própria, a Igreja enfrentava uma profunda crise derivada do facto de ter dado a entender que não havia por parte dos bispos qualquer vontade de afastar preventivamente os padres suspeitos. Juntando as duas coisas, fomos sujeitados a vários exemplos como este:

 


Perante isto, a Renascença tentou falar com vários membros da Comissão para saber o que se passava, mas nenhum atendeu, com excepção de Ana Nunes de Almeida que disse não iria comentar as listas.

Um ou dois dias seguintes, contudo, em resposta a um tweet meu, em que eu expressava surpresa e desagrado por ter sido prometida uma lista de 100 nomes de abusadores activos quando afinal mais de 50% não podia de forma alguma ser descrita como activa, ela revelou que sim, a primeira intenção tinha sido de apresentar uma lista de abusadores activos, mas depois mudou-se de ideias e optou-se por se incluir na lista todos os casos, vivos e mortos.


O problema? É que se esqueceram de avisar o resto do mundo. E não, uma resposta breve no meio de uma longa entrevista apenas disponível para assinantes de um jornal online, não conta como um aviso ao mundo.


Aliás, desde que Ana Nunes de Almeida deu essa entrevista, Pedro Strecht deu uma entrevista à SIC Notícias (Cerca 12’30”) em que a jornalista lhe perguntou se a lista com o nome de padres abusadores no activo iria ser entregue aos bispos e respondeu: “Exactamente”, se bem que depois –  ouvindo agora com atenção é que se apanha – tenha dito que ao Ministério Público iria ser entregue uma lista com os nomes dos padres “ainda vivos”.

E agora mais recentemente Daniel Sampaio veio a público defender o trabalho da Comissão dizendo que “é possível que existam [padres mortos] porque é uma lista muito difícil de concretizar, estamos a falar de abusos entre 1950 e 2022”.

Isto não são declarações de quem sabia à partida que era mesmo suposto a lista incluir  nomes de padres já mortos, pelo contrário, é uma desculpa para eles estarem lá acidentalmente.

Finalmente, esta terça-feira o Observador publicou uma longa e interessante entrevista com Laborinho Lúcio em que se aborda longamente esta questão das listas. Ele confirma aquilo que Ana Nunes de Almeida já tinha dito, mas deixa também no ar a ideia de que esta discussão foi criada como forma de desviar a atenção do essencial, que são as vítimas. Ora, dizer isso é não compreender a comunicação social. É evidente que, criada a ideia de que havia 100 pedófilos à solta na Igreja, esse seria sempre o foco principal da comunicação social na semana depois da entrega das tais listas.

Urge, por isso, perguntar porque é que ao longo de mais de uma semana em que todos os meios de comunicação continuaram a falar de uma lista de abusadores ainda no activo, ninguém da Comissão veio anunciar publicamente, de forma clara e a um meio de grande circulação e audiência – que obviamente estariam disponíveis para isso – que afinal tinha-se espalhado uma percepção errada e que a decisão de base era outra. Tenho criticado muito as falhas de comunicação dos bispos, mas estas falhas de comunicação da Comissão também são lamentáveis. A diferença é que já vimos bispos a vir fazer meas culpas pelos seus fracassos comunicacionais, mas a Comissão continua a recusar qualquer crítica ou a fazer qualquer esclarecimento.

E depois?

É natural que se pergunte, e muitos têm perguntado, afinal o que é que isto interessa? Mortos ou vivos, se estes homens abusaram mesmo de alguém então o que importa é reconhecer e ajudar a vítima. Têm toda a razão!

O problema é que esta confusão das listas, a somar-se à confusão das declarações dos bispos, aparentemente contraditórios, corre o risco de afectar sobretudo as vítimas. As que contribuíram para o relatório e outras que ou ainda não contribuíram, ou então ainda estão por vir. Esse é o grande objectivo de toda esta operação. O relatório, as comissões diocesanas, a comissão independente, os memoriais, os pedidos de desculpa, tudo isso só faz sentido se contribuir para criar um ambiente eclesial em que as pessoas se sentem em segurança e em que sentem que se tiverem uma denúncia a fazer podem fazê-la e que serão levadas a sério.

Tudo o que servir para descredibilizar o processo desta Comissão Independente e do relatório que produziu, acaba por prejudicar as vítimas. É por isso que é importante reconhecer que esta baralhada das listas, que acabou por gerar muito ruído, foi um erro. Podiam incluir lá os padres que quisessem, não podiam era anunciar uma coisa, deixar espalhar-se uma ideia, e depois fazer uma coisa diferente.

Mais, estes erros encorajam aqueles que nunca quiseram aceitar o trabalho e as conclusões da Comissão Independente e do relatório, descrevendo-o como um “ataque à Igreja”.

Já o disse várias vezes, e repito. A melhor solução para isto é os bispos e a Comissão Independente juntarem-se novamente, falarem sem cerimónias, porem cá para fora tudo o que os desagradou nestas últimas semanas e aceitar que de ambos os lados se cometeram erros. Afinal de contas, é a primeira vez que se faz algo deste género em Portugal, era natural que nem tudo corresse bem. Urge, contudo, salvar a credibilidade deste processo para que não tenha sido tudo em vão.

É por isso com muito agrado que vejo, por entre algumas críticas duras, palavras conciliatórias nesta entrevista de Laborinho Lúcio ao Observador, recusando quase sempre imputar má vontade aos bispos que têm dito coisas infelizes e elogiando muito claramente a coragem da Igreja de se deixar escrutinar desta forma.

Tenho sugerido que a Comissão e os bispos se voltem a encontrar para falar. Algumas pessoas me têm dito que isso não é cada vez menos provável. Mantenho a esperança de que impere de ambos os lados o bom senso de resgatar a credibilidade de todo este processo para benefício das vítimas, sobretudo.

1 comment:

  1. O problema é que existem listas com 407 pessoas abusadoras (Pa) nas páginas 385-388 que não coincidem com a lista dos 100, de vivos e mortos, que vão de 1950 a 2022. A lógica da CI devia ter sido a entrega de 407 nomes à CEP e foi de 100 nomes, por estarem vivos os padres e as vítimas que poderão ser ressarcidas. E isto tem mesmo de ser perguntado; ou porque eles existem ou porque não existem; se não existirem podemos pôr em causa centenas de testemunhos credíveis. Portanto, para nos podermo centrar nas vítimas, é preciso esclarecer as questões metodológicas, abertas por Daniel Sampaio e Laborinho Lúcio.

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