Wednesday 30 March 2022

A Teologia e os Conflitos Humanos

O Cardeal Manning – que foi contemporâneo e seguidor do Cardeal Newman – disse certa vez que “todo o conflito humano é, no final de contas, teológico”. (Podíamos mesmo dizer que tudo o que é humano envolve necessariamente a teologia, mas esse é um assunto complexo para tratar noutro dia). Na actual guerra da Rússia contra a Ucrânia, porém, a teologia não é sequer uma consideração distante, está mesmo à superfície. Mesmo que a guerra chegue a um final aparentemente tolerável, as divisões teológicas permanecerão connosco muito tempo.

Isto porque não é apenas Vladimir Putin que tem falado numa “Guerra Santa” na Ucrânia, mas também líderes religiosos como o Patriarca Cirilo de Moscovo. Putin tem estado a usar cinicamente os ortodoxos como cobertura moral para as suas ambições. Mas também já intuiu que para “tornar a Rússia grande outra vez” a Ortodoxia Russa – que carrega em si muitos dos elementos mais profundos da Santa Mãe Rússia e da sua projecção secular, “o mundo russo” – é uma parte fundamental do plano político.

Já os líderes da Igreja Ortodoxa Russa não têm a mesma desculpa política.

Na verdade, o que estamos a ver agora não é apenas corrupção política entre os líderes religiosos comprometidos, mas uma profunda divisão espiritual que estava de certa forma disfarçada por profissões de fraternidade cristã. Até existem cristãos no Ocidente que, traumatizados pela nossa decadência e “wokeismo” se deixaram convencer de que a Rússia de Putin – com a sua repressão em larga escala, assassinato de dissidentes (incluindo no estrangeiro) e maior taxa de aborto no mundo – é de alguma forma um salvador religioso.

Vários Papas no passado recente fizeram grandes esforços para pôr fim ao cisma entre Roma e a Ortodoxia – e na maior parte das vezes têm sido rechaçados. Antes de a guerra ter começado o Papa Francisco estava a procurar um segundo encontro com o Patriarca Cirilo. O primeiro aconteceu em 2016, no aeroporto de Havana. O local não foi boa ideia, mas pelo menos ambos os líderes exprimiram um “profundo desejo” por unidade. E o Papa disse mais tarde que “falámos como irmãos”.

Esse espírito fraternal não perdurou. Durante a sua videoconferência, no início deste mês, Francisco parece ter criticado abertamente Cirilo por afirmar que esta “operação militar especial” é uma “guerra santa”. Francisco foi ainda mais longe quando, na sexta-feira passada, consagrou a Rússia, a Ucrânia e todo o mundo a Nossa Senhora de Fátima. Cirilo e Putin sabem que Nossa Senhora pediu essa consagração para que os erros da Rússia não se espalhassem pelo mundo, e para que a Rússia se converta. Parabéns a Francisco por ter feito ambas estas coisas, por mais objecções que tenha tido que enfrentar.

Infelizmente, Francisco também contradisse toda a tradição cristã durante o seu encontro com Cirilo, quando disse que todas as guerras são injustas. Na semana passada acrescentou, durante uma conversa com um grupo de organizações de mulheres, que “fiquei envergonhado quando li que um grupo de estados se comprometeu a gastar dois por cento do PIB na aquisição de armamento, em resposta ao que se está a passar agora. É loucura”, disse, lamentando “a velha lógica de poder que continua a dominar a chamada geopolítica”.

É verdade que sim, e assim continuará a ser enquanto os seres humanos decaídos continuarem a existir no planeta. E é por isso que algumas potências – histórica e moralmente imperfeitas – devem, por vezes, impedir que os mais impiedosos de entre nós dominem o mundo.

Quando as nações decidem aumentar os seus orçamentos de defesa, à luz de ameaças que enfrentam, não se trata de “loucura”. Diante de uma Rússia agressiva, os líderes políticos estão apenas a ser responsáveis quando decidem robustecer a defesa nacional. A decisão peca é por tardia.

Francisco parece pensar que a única resposta cristã permissível perante uma ameaça é o “diálogo” e não a dissuasão. Pode-se entender o seu horror pela guerra sem aceitar essa premissa. O diálogo não nos trouxe sequer o entendimento religioso com Cirilo. Estou certo de que Putin adoraria ver diálogo, diálogo infindável – nas igrejas, na NATO, na política americana – enquanto ele continua a atacar uma nação atrás da outra.

Os ucranianos têm uma opinião diferente. É por isso que continuam de pé, e a Rússia teve de se contentar com ambições menores na Ucrânia.

A queda da União Soviética abriu algumas possibilidades – tanto para as Igrejas como para a Rússia. A Igreja Ortodoxa da Rússia – a maior das ortodoxas – foi perseguida e comprometida pelo comunismo. Na sua colaboração – ou possivelmente mesmo trabalho activo – com a KGB, Cirilo desempenhou um papel vergonhoso nessa pérfida aliança.

Agora voltou a comprometer-se, alienando a maioria dos ortodoxos na Ucrânia enquanto abençoa os massacres de Putin. Nestas circunstâncias é difícil imaginar como é que Moscovo continuará a ser parte de qualquer diálogo ecuménico no futuro, ou sequer como é que a Igreja Ortodoxa Russa permanecerá intacta.

O Grande Cisma de 1054 entre a Igreja Ocidental e os Ortodoxos já foi há quase um milénio, e é tanto mais doloroso porque – independentemente das questões como o Filioque – deveu-se sobretudo a questões de jurisdição e de administração. A Igreja Católica não reconhece apenas como válidas as ordens e os sacramentos ortodoxos, mas também as ricas tradições litúrgicas e espirituais do Oriente, que devem ser integradas numa Igreja global e universal.

O próprio Cristo rezou por uma unidade eclesial semelhante à que ele tinha com o Pai. Os cristãos não têm tido muito jeito nesse campo importante mas desafiante. (João: 17,21)

Na sua encíclica de 1995 Ut Unum Sint (Que sejam um só), o Papa São João Paulo II falou de um verdadeiro ecumenismo – não a coisa sentimentalista e mole que vemos frequentemente nas discussões ecuménicas no ocidente – enraizado na realidade histórica e substância espiritual do Oriente e do Ocidente:

a Igreja deve respirar com os seus dois pulmões! No primeiro milénio da história do cristianismo, essa frase referia-se sobretudo ao binómio Bizâncio-Roma; desde o baptismo da Rus' para a frente, ela vê alargarem-se os seus confins: a evangelização estendeu-se a um âmbito muito mais vasto, a ponto de abraçar praticamente a Igreja inteira. Se se considera ainda que esse acontecimento salvífico, verificado ao longo das margens do Dniepre, remonta a uma época em que a Igreja no Oriente e no Ocidente não estava dividida, compreende-se claramente como a perspectiva a seguir para a plena comunhão, seja aquela da unidade na legítima diversidade.

Também o Papa Francisco tem falado de unidade sem uniformidade. O seu desafio, de agora em diante, será pôr isso em prática dentro da Igreja Ocidental. A janela para o Oriente está, por ora, fechada.


Robert Royal é editor de The Catholic Thing e presidente do Faith and Reason Institute em Washington D.C. O seu mais recente livro é A Deeper Vision: The Catholic Intellectual Tradition in the Twentieth Century, da Ignatius Press. The God That Did Not Fail: How Religion Built and Sustains the West está também disponível pela Encounter Books.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Segunda-feira, 28 de Março de 2022)

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