Randall Smith |
Estava a ler um maravilhoso
pequeno livro do meu amigo Chris Dorn, chamado “Following Jesus on the Way:Biblical Meditations on Lenten Themes”, à luz da vela, apesar da escuridão e do
frio, e lembrei-me de que a Quaresma é frequentemente comparada ao deserto,
tanto o deserto que o povo judeu atravessou durante quarenta anos antes de
poderem entrar na Terra Prometida e o deserto para onde Jesus foi durante
quarenta dias e quarenta noites de oração e jejum.
Como diz, e bem, o
padre Dorn, o deserto é ao mesmo tempo um lugar de purificação e de tentação.
Na verdade é pouco provável alguém conseguir atingir a purificação sem a
tentação, ainda que seja apenas a tentação de não se purificar.
O deserto também
tem os seus demónios. Nunca me apetece comer carne mais do que nas
sextas-feiras da Quaresma, tal como nunca tenho mais fome do que entre aquelas refeições ligeiras de Quarta-feira de Cinzas. Cristo venceu as suas tentações
no deserto, escolhendo o caminho da Cruz acima das tentações do dinheiro, poder
e prazer e também nós o devemos fazer.
“Os sinais dos
tempos” sugerem que os Cristãos possam ter de passar um bom bocado “no
deserto”. Só Deus sabe. Sabemos que nunca é fácil deixar para trás as
“panelas de carne do Egipto”. Mas na verdade só isso nos dá liberdade.
A questão que a Quaresma
nos obriga a enfrentar é esta: Estamos prontos? Estamos prontos para quarenta
anos no deserto? Sessenta anos de exílio na Babilónia? Estamos prontos a
abraçar o caminho da Cruz?
Muitos católicos
partem do princípio que podem continuar a ser católicos devotos e manter o
estatuto cultural e a riqueza de que gozam outros americanos. Mas será que é
assim? Será? A Quaresma convida-nos a perguntar-nos a nós mesmos o que é que
estamos dispostos a sacrificar para viver o chamamento do Evangelho. Um bom
emprego? Uma casa num bom bairro? O carro e a roupa que condizem com a classe
social com a qual gosto de me identificar? O meu estatuto social entre os meus
vizinhos?
Pede-se aos
católicos que “abdiquem” de coisas durante a Quaresma – alguma carne, talvez
doces ou aquela colher de natas no café. São boas observâncias pessoais. Mas
temos ainda outras obrigações públicas. “Dar esmola” é uma expressão dessa
obrigação, mas há outras.
Ouçamos o que diz o
profeta Isaías:
Como se fossem
uma nação
que faz o que é
direito
e que não
abandonou
os mandamentos
do seu Deus.
Pedem-me
decisões justas
e parecem
desejosos
de que Deus se
aproxime deles.
“Por que
jejuamos”, dizem,
“e não o viste?
Por que nos
humilhamos,
e não
reparaste?”
Esta é a queixa de
Israel. Será a nossa? Eis a resposta do Senhor.
fazem o que é do
vosso agrado
e exploram os
seus empregados.
O vosso jejum
termina em discussão e rixa
e em brigas de
socos brutais.
Vocês não podem
jejuar como fazem hoje
e esperar que a
vossa voz seja ouvida no alto.
Será esse o
jejum que escolhi,
que apenas um
dia o homem se humilhe,
incline a cabeça
como o junco
e se deite sobre
pano de saco e cinzas?
É isso que vocês
chamam jejum,
um dia aceitável
ao Senhor?
O jejum que
desejo não é este:
soltar as
correntes da injustiça,
desatar as
cordas do jugo,
pôr em liberdade
os oprimidos
e romper todo
jugo?
Não é partilhar
sua comida
com o faminto,
abrigar o pobre
desamparado,
vestir o nu que
encontram,
e não recusar
ajuda ao próximo?
Aí sim, a vossa
luz irromperá
como a alvorada,
e prontamente
surgirá a vossa cura.
Então do que
estamos dispostos a abdicar nesta Quaresma? Que esmola estamos preparados para
dar?
Estamos dispostos a
abdicar do nosso individualismo atomizado que nos impede de pensar que devemos
algo mais aos outros do que a civilidade mais básica?
Estamos dispostos a
abdicar da “liberdade de todos os constrangimentos” que nos permite fazer tudo
aquilo que queremos, independentemente das necessidades dos outros, livres de
obrigações para com eles?
Estamos dispostos a
abdicar do nosso partidarismo hipercrítico? Da nossa revolta e da nossa
amargura para com toda a gente que não vê as coisas como nós vemos e não pensa
da mesma forma que nós?
Estamos dispostos a
abdicar dos prazeres de indignação presunçosa sobre as falhas dos outros e
preocupar-nos mais com a trave no nosso olho em vez do cisco no olho do outro?
Estamos dispostos a
desistir de trabalhar em primeiro lugar por nós mesmos e pelos nossos
objetivos, e de trabalhar ao invés com e pelos outros, atendendo às suas
necessidades, esperanças e desejos, tanto quanto os nossos?
Estamos dispostos a
deixar-nos das desculpas engenhosas que fazemos para nós mesmos para nos
permitirmos violar sejam quais forem as normas que decidimos que não queremos,
enquanto mantemos em vigor aquelas que obrigam aos outros?
Que artifícios
próprios estamos dispostos a deixar para trás para abraçar as virtudes da
caridade e da dádiva altruísta de nós mesmos aos outros?
Faço estas
perguntas porque tudo indica que estamos prestes a entrar num longo período
no deserto. Quanto tempo, não sei. Mas já ouço muito queixume. Demasiado dele
vem de mim. Por isso talvez valha a pena lembrarmo-nos, agora que começamos
esta caminhada para o deserto, que não existe outro caminho do que aquele da Cruz.
E que a liberdade da Terra Prometida não é para aqueles que sonham com as
panelas de carne no Egipto, nem os dons do Reino Deus são para aqueles que
gostam do sentimento de poder que acompanha a indignação presunçosa.
Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na quarta-feira, 24 de Fevereiro de
2021)
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