Anthony Esolen |
Herodes ouviu falar do Menino Jesus e ele e todos os seus
conselheiros ficaram preocupados. Pediu aos reis magos que encontrassem o rapaz
e que lhe trouxessem a informação, para que ele pudesse ir louvá-lo. A
homenagem que Herodes queria prestar era matá-lo. Quando os magos, avisados em
sonhos, se desviaram de Jerusalém no seu caminho de volta para o Oriente,
Herodes fez aquilo que fazia melhor: eliminou a oposição – ou pelo menos tentou.
Os meninos das proximidades de Belém não passavam de
coisas para Herodes, obstáculos aos seus planos dinásticos. Se há uma árvore no
caminho da estrada que queres construir, corta-se e tira-se as raízes. Para ti
ela não tem vida. É apenas uma negação da tua vontade.
Todas as representações deste massacre que tenho visto são
de uma acção dramática e terrível. Soldados brutos e exageradamente musculados
dão à espada, às vezes matando as mães e os filhos em conjunto. Mas nunca vi
uma pintura que corresponda melhor à nossa situação actual.
Imagino a cena da seguinte maneira. O quarto pouco
iluminado e quieto. Nem o pai nem a mãe estão presentes. Talvez estejam nos
campos, a trabalhar. A luz de uma janela ilumina o rosto de um homem, um
soldado. Está com a testa franzida. Tem uma espada ao seu lado. Diante de si,
numa cama, dorme um rapazinho.
Peço-vos que imaginem esse bebé. Gabriel Marcel diz que a
visão de qualquer pessoa a dormir coloca-nos na presença de um mistério: A
sensação de uma presença que não pode ser reduzida a proposições ou a
utilidade. Isto é especialmente verdade em relação a crianças: “Do ponto de
vista da actividade física… a criança que dorme está completamente desprotegida
e parece estar inteiramente à nossa mercê; desse ponto de vista é possível
fazermos o que quisermos dela. Mas do ponto de vista do mistério, podemos dizer
que é precisamente por estar totalmente desprotegida, totalmente à nossa mercê,
que é também invulnerável e sagrada.” (em “The Mystery of Being: Presence as a
Mystery”).
Vemos os caracóis soltos na sua testa. Vemos os seus
olhos fechados – o que é que observam? Vemos os seus lábios cerrados, o ritmo lento
da respiração.
As pessoas que se mantêm seguramente no armazém das
coisas não sentem esta presença. Não sentimos um mistério no transmissor 2451,
nem na prateleira 32B. Quando substituímos um nome por um número a maior parte
do nosso trabalho destruidor está feito. Se apenas vemos instrumentos, não
teremos escrúpulos em usá-los como quisermos. A característica importante de
uma peça numa máquina é o facto de não ter individualidade. Pode ser
substituída por outra qualquer. É suposto ser substituída por outra qualquer.
Mas se o soldado pausar o tempo suficiente para
contemplar o rapaz a dormir, terá de se endurecer contra o sentido natural e
humano de santidade e mistério. Para tratar o rapaz como uma coisa, deve
primeiro tornar-se uma coisa, uma ferramenta de Herodes, uma peça na maquinaria
herodiana.
Para tratar a criança que dorme como uma irritação de que
se deve livrar, deve reconhecer a ausência de valor de todas as coisas
pequenas; a semente na terra, o pintainho no seu ninho, a batida do coração, o
soldado num exército, a Judeia no Império Romano, esse pequeno império à escala
da história do mundo, o mundo enquanto grão de areia no universo. Deve negar o
valor da própria criação.
Imaginem outra criança a dormir. Está a chuchar no dedo.
Está enrolado, os joelhos encaixados debaixo do queixo. O rabo inocentemente à
mostra. A imagem está desfocada, porque ele está seguro no seio quente da sua
mãe. A enfermeira na clínica vê, mas ao mesmo tempo não vê, o menino.
Imaginem outra cena. O rapaz é vivaço e meio tresloucado.
Tem o cabelo colado à testa. Esteve a nadar no lago. Emerge, a escorrer água e
a rir. O “amigo”, mais velho, observa, calculando e planeando.
Outra cena. Os rapazes e as raparigas estão nos seus
lugares, na sala de aulas. Estão a pensar em todo o género de coisas. Um deles
está a pensar no jogo que vai ter logo à noite. Uma das raparigas pensa em
visitar a prima, a caminho de casa. Duas delas falam sobre as aulas de
equitação. Outro limita-se a sonhar acordado, enquanto olha pela janela.
A professora está diante deles. Tem a testa franzida, o
olhar carregado. Tem nas mãos um livro. Quando os rapazes e as raparigas saírem
da escola, nessa tarde, já saberão o que é – preencha o espaço.
“Passa-se alguma coisa filho?” O rapaz tem-se comportado
de modo estranho toda a tarde. Ele olha-a com um olhar estranho, depois vira a
cara. “Não, nada”.
Marcel diz: “Não pode haver a menor dúvida de que a mais
forte e irrefutável marca de pura barbárie que podemos imaginar seria a recusa
em reconhecer esta misteriosa invulnerabilidade”.
Herodes e Herodíade aparecem-nos sob muitas formas. São
hedonistas, para quem as crianças são obstáculos irritantes na busca de prazer.
São utilitários, ferramentas que avaliam a utilidade de outras ferramentas. São
estatistas, cuja ambição não é governar homens, mas gerir formigas. São médicos
e enfermeiras que se recusam a ver a criança. São todos os assassinos da
inocência. São os soldados à entrada da casa.
Doce Jesus, salva-nos de nós mesmos.
Anthony Esolen é tradutor, autor e professor no Providence
College. Os seus mais
recentes livros são: Reflections on the Christian Life:
How Our Story Is God’s Story e Ten
Ways to Destroy the Imagination of Your Child.
(Publicado pela primeira vez na Terça-feira,30 de Dezembro
de 2014 em The
Catholic Thing)
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