Wednesday, 26 November 2014

Os Limites da Era Secular


Randall Smith
O filósofo católico Rémi Brague, vencedor do prestigiado Prémio Ratzinger, esteve na minha universidade a semana passada. O francês é daqueles oradores que adora fazer comentários interessantes à margem do tema, uma característica que aprecio bastante. Num destes comentários mencionou que os “seculares” são aqueles cujas vidas se definem por um horizonte de 100 anos. “A palavra 'secular' não quer dizer mais que isso”, afirmou.

Nunca tinha pensado na palavra “secular” ou o seu antecessor saeculum desta forma, uma vez que a sua raiz cent- (de centum, que significa cem), não aparece. Por isso fui investigar.

Então descobri o seguinte. Na antiguidade romana um saeculum era considerado um tempo mais ou menos equivalente à vida de uma pessoa, ou os anos necessários para renovar completamente a população humana. De quanto tempo estamos a falar?

As opiniões divergem, mas durante a era de César Augusto os romanos estabeleceram que um saeculum eram 110 anos. As gerações seguintes ficaram-se por 100 certos e, em resultado disso, nas línguas românicas, as palavras derivadas de saeculum passaram a significar “um século”, como é o caso de siglo, em espanhol, secolo em italiano e siècle, em francês. Por isso o Prof. Brague tinha toda a razão quando dizia que a palavra “secular” tem a ver com “cem anos”, embora a relação seja mais clara em francês do que em inglês.

Consideremos então, a diferença entre uma visão “secular” do mundo, por oposição a uma visão ancorada na “eternidade” (in saecula saeculorum). Se vivesse na Europa de Leste em 1940, por exemplo, podia perfeitamente ouvir alguém dizer: “O Cristianismo está acabado: o comunismo é o futuro”. Ou então digamos que vivia na Roma de César Augusto, poderia perfeitamente ouvir dizer que “O futuro está com o Império Romano e não com um qualquer carpinteiro judeu crucificado”.

Sejamos justos, ambos os comentários fariam todo o sentido da perspectiva de uma pessoa a extrapolar com base na sua própria vida. Mas a extrapolação, como os cientistas bem sabem, pode ser uma coisa arriscada.

As pessoas tendem a dizer: “Não queres ficar do lado errado da história”. Ao que eu respondo: “Se tivesse vivido numa altura em que “ficar do lado errado da história significava recusar filiar-me no Partido Comunista na Polónia, então sim, eu preferia ficar do lado errado. E daqui a 200 anos quero que fique bem claro que eu escolhi um caminho diferente daquele que foi traçado pelas forças, supostamente irresistíveis, da 'história', que relativizaram ou suprimiram a dignidade humana em nome da marcha do 'progresso'”.

De uma perspectiva utilitarista dos próximos duzentos anos, compreende-se a afirmação: “Pensa nos bons resultados que podemos obter através da morte deste embrião.” Compreende-se como uma afirmação dessas possa ser tentadora no caso de nos dizerem que poderia conduzir a uma cura para o Alzheimers, por exemplo, ainda durante a nossa vida.

Mas, de uma perspectiva da eternidade, do ponto de vista de Deus, por assim dizer, uma vida inocente tem um valor infinito. Essa alma é eterna ao contrário de tudo aquilo que neste momento nos parece ser de valor – enriquecer, criar grandes negócios, fazer a próxima grande descoberta no ramo da ciência e tecnologia – estas coisas, como o Império Romano e como o grande movimento marxista, passarão com o tempo. 
 
Rémi Brague
Um dos benefícios de olhar para a história contemporânea de uma perspectiva da eternidade (ou, para sermos francos, de uma perspectiva histórica que ultrapasse as últimas centenas de anos) é o facto de se perceber mais claramente o quão efémera a história “secular” pode ser. “Também isto passará”. O Império Romano e os césares passaram. Os czares da Europa também. E a União Soviética. Alguns acreditam que, qualquer dia, o aborto, a eutanásia e a destruição de embriões para experiências em células estaminais, serão encaradas como hoje encaramos as leis de separação racial e a escravatura: aberrações trágicas da história.

E porém, embora a história possa de facto ser efémera, olhá-la do ponto de vista cristão fornece uma perspectiva da qual a podemos valorizar, mesmo com todas as suas limitações. Não vamos estabelecer o reino de Deus na terra, mas cada acto, cada escolha, tem uma importância infinita na eternidade.

As eras “seculares” tendem a dedicar-se a utopias que são inalcançáveis e que frequentemente dão aso a actos trágicos de desumanidade, animados pela esperança de realizar sonhos impossíveis. Quando estas esperanças se revelam ilusórias, o que sempre acontece, são substituídas por um sentido trágico de cinismo e niilismo. Se tudo o que procuramos alcançar vai desaparecer dentro de uma centena de anos, porquê o esforço?

O mundo moderno “secular” baloiça assim para a frente e para trás, de forma esquizofrénica, entre as esperanças ingénuas por projectos utópicos ilusórios e os medos niilisticos de que simplesmente não vale a pena viver. Para contrariar este “secularismo”, precisamos de uma narrativa que explique porque é que a vida humana, limitada como é, é boa – que viver vale a pena, mesmo que a vida seja limitada e terrivelmente imperfeita. Deus, ao enviar o seu filho unigénito, mostra-nos como o mundo é bom, como a vida é boa, mesmo no seu estado decaído.

O problema do “secularismo” não é o facto de ser demasiado “mundano”. O Cristianismo preocupa-se profundamente com o mundo: diz-nos que Deus sacrificou o seu único filho pelo mundo. O problema com o “secularismo” é que a sua visão do mundo é demasiado limitada, demasiado “bidimensional”. Num mundo bidimensional só conseguimos ver o que está à nossa frente e o que está atrás. Seria fácil concluir a partir desse ângulo que toda a página está recheada de rabiscos caóticos. É preciso subir um pouco para poder olhar de cima e ver que afinal se trata de um belíssimo desenho. Ou então é preciso ter fé no Artista.

Em Cristo o temporal e o eterno encontram-se e é nesse casamento que se encontra a salvação do mundo e a única verdadeira esperança da história.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez na Quarta-feira, 19 de Novembro 2014 em The Catholic Thing)

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