Randall Smith |
Em Cracóvia vemos a glória de que são capazes a natureza
e o génio do homem. Em Auschwitz vemos o horror de que essa natureza e esse
génio o tornam capazes. Ambas são lições importantes e é um grave erro afirmar
um sem o outro.
Sobre Auschwitz tenho muito pouco a dizer – e nada em
particular sobre os presos, sobre cujo sofrimento não tenho nem a sabedoria nem
os dons para escrever. Os horrores desta magnitude requerem um certo silêncio
da parte daqueles que observam a partir de uma distância segura. Só quem lá
esteve é que pode falar com autoridade. Eu não tenho essa presunção.
Mas espero que me sejam permitidas duas observações, não
sobre o sofrimento dos prisioneiros, mas sobre os guardas. Aliás, uma das coisas
que falta no que é de resto uma apresentação excelente sobre Auschwitz é
qualquer informação sobre os guardas. Esta falha está a ser corrigida, dizem-me,
para uma exposição futura.
Por agora existe um livro interessante recomendado pelo
nosso guia – A Vida
Privada dos SS de Auschwitz – que inclui relatos escritos por criados
polacos que trabalharam nas casas de família dos guardas nazis.
Antes da guerra havia uma pequena vila rural no local
onde se ergueu o campo. Foi limpo dos seus cidadãos polacos e rebatizado “Auschwitz”
pelos alemães. As casas foram atribuídas aos oficiais alemães que depois de
saírem dos seus empregos – que envolviam a sistemática desumanização e extermínio
de centenas de milhares de homens, mulheres e crianças inocentes – iam para
casa à noite para passar tempo em família com as mulheres e os filhos.
Lendo os relatos das “Vidas Privadas” compreendemos que
longe de serem os psicopatas que tantas vezes imaginamos, na realidade a
maioria destes homens iam para casa e faziam o mesmo que a maior parte dos
homens de família. Conversavam com as mulheres, brincavam com os filhos,
passeavam o cão e ocupavam-se a fazer compras, a tratar das contas e a lidar
com a ama e com a cozinheira.
Não pude deixar de perguntar o que se poderia passar pela
cabeça e pela alma de alguém que ia à missa ou à igreja todos os domingos, lia
fielmente a Bíblia e depois saía de casa na manhã seguinte para fazer as coisas
que os guardas faziam em Auschwitz. O potencial humano para cegueira moral é de
cortar a respiração e devia servir de aviso constante.
Auschwitz mostra que podemos confundir o pior mal com o
bem de “cumprir o nosso dever”. Quando deixamos de ver a realidade como Deus a
vê e passamos a olhar apenas pela lente burocrática ou ideológica, ela fica
completamente deturpada. Deixamos de ver o que está mesmo à nossa frente – uma pessoa,
feita à imagem de Deus – e passamos a ver apenas o que achamos que essa pessoa
representa.
Aprendi duas lições em Auschwitz das quais até então não
me tinha apercebido.
Primeiro, tornou-se claro que à medida que se tornava
claro aos alemães que estavam a perder a guerra, as matanças nos campos não
abrandaram, aceleraram. Mais e mais recursos foram desviados do esforço de
guerra para matar o maior número de judeus possível – como se a única
consideração fosse: “Será que conseguimos acabar o trabalho antes de sermos
obrigados a render-nos?”
Segundo, quando os russos estavam a avançar sobre o campo
os alemães rebentaram com os crematórios e queimaram dois armazéns que
continham montanhas de sapatos, óculos, malas, artigos de cozinha e mantas de
oração que tinham retirado aos judeus quando saíam dos comboios.
Poucas coisas nos fazem compreender a dimensão da chacina
em Auschwitz-Birkenau do que a visão daquela montanha de sapatos e de malas –
as malas todas marcadas com o nome e data de nascimento do dono, como se fossem
fazer uma viagem ou para um campo de férias (tinha-lhes sido dito que iam ser
relocalizados). Alguns dos sapatos eram apenas de bebé.
Por vezes, quando os meus alunos tentam defender o seu
relativismo moral, dizem coisas como “os nazis deviam ter as suas razões” (e
tinham. Más.) Ou perguntam, “Mas e se aquilo lhes parecia estar certo?” (Bom,
então estavam errados, certo?)
Mas eis a questão sobre o facto de os alemães terem
queimado aqueles armazéns ou dinamitado os crematórios. Significa que os
próprios alemães sabiam muito bem que aquilo que estavam a fazer estava errado.
Se estivessem orgulhosos das suas acções, esperaríamos que cantassem os seus
feitos ao mundo – como que dizendo, na face de qualquer oposição: “Vocês eram
contra isto. Eram demasiado tímidos para fazer o que precisava de ser feito.
Mas nós não”.
Mas pelo contrário, tentaram escondê-lo. É por isso que
as matanças ocorreram em locais vazios na Polónia e não nas principais cidades
da Alemanha. É por isso que os esconderam por detrás de eufemismos verbais.
Os oficiais alemães viviam com as suas famílias como se
estivesse tudo bem: Era apenas mais um dia no escritório. Mas no fundo, no
fundo, sabiam.
Devemos procurar compreender que tipo de distorção do
coração e da alma do homem pode tornar possível uma psicose destas.
Cuidado com as pessoas que dizem “estamos empenhados numa
tarefa nobre” mas depois escondem o que estão a fazer do escrutínio, ou por
detrás de eufemismos verbais. O que será que estão a esconder, talvez de si
mesmos?
A nossa primeira obrigação enquanto seres humanos livres
é ver a realidade de forma clara, dizer a verdade de forma simples e agir de
acordo com a verdade plena da dignidade humana. A cegueira moral dos guardas de
Auschwitz deve mostrar-nos do que somos capazes quando fazemos o contrário.
Randall Smith é professor de teologia na Universidade de
St. Thomas, Houston.
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