Wednesday, 23 September 2015

O Casamento num Mundo de Ilusões

David Warren
Nota prévia: Hesitei antes de publicar este artigo, por uma série de razões. Em primeiro lugar porque o David Warren tem um estilo de escrita bastante difícil, ainda para mais quando é traduzido. Os seus textos e os seus raciocínios não são os mais fáceis de acompanhar.

Em segundo lugar, porque não concordo inteiramente com ele neste artigo em particular. Nunca tive a pretensão de apenas publicar artigos do The Catholic Thing com os quais estou 100% de acordo. Às vezes escolho os textos porque dizem respeito a temas actuais e contribuem para um debate inteligente sobre os mesmos.

Ao contrário do que o David dá a entender, eu não acho que a agilização dos processos de nulidade seja um erro ou que seja tudo mau. Mas estou de acordo com o seu principal argumento neste artigo. Isto é, que o casamento é uma instituição natural, em todos os sentidos da palavra, e que por isso a compreensão das suas exigências e dos seus objectivos está ao alcance até dos mais simples. Não tenho dificuldade em aceitar que há muitos casamentos nulos, por diversas razões, mas tenho a maior dificuldade em aceitar que os casamentos nulos sejam uma enorme proporção, ou até maioritários, porque a nossa geração é incapaz de compreender algo que estava perfeitamente ao alcance dos nossos antepassados mais recônditos e o está ainda dos nossos irmãos actuais nos pontos mais distantes do planeta.

Dito isto, deixo-vos com o artigo de hoje do The Catholic Thing.

Filipe d'Avillez

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Talvez devêssemos distinguir entre as coisas que as pessoas não compreendem e as coisas que as pessoas não querem compreender.

Permitam-me desafiar a ideia actualmente generalizada de que a natureza do casamento, os ensinamentos de Cristo sobre o casamento e os requisitos da Igreja Católica a este respeito não estão para além da capacidade de compreensão de metade da população. Eu tenho menos confiança do que a maioria das pessoas na “inteligência média”, mas neste caso acho que consigo ver o fundo.

Vou tornar esta história mais pessoal, a meu próprio custo. O meu próprio casamento (e foi apenas um) desintegrou-se há muitos anos. Não seria justo da minha parte explicar porquê num fórum público, mas bastará dizer que seria preciso estar sob o efeito de alucinogénios para acreditar que a minha ex-mulher carrega com todas as culpas.

Duas vezes estive quase a pedir uma “anulação”. Ambas as vezes reconsiderei.

Essa união resultou no nascimento de dois belos rapazes, actualmente crescidos. O mais novo tem Trissomia XXI. O seu nascimento em si forneceu prova suficiente de que existia um casamento, mesmo que tenha sido realizado numa igreja anglicana. Ambos os seus pais estavam apostados, por uma questão de princípio, a ficar com ele, mesmo que que tivesse oito pernas e cinco olhos.

Que provas?

Em primeiro lugar revelou uma compreensão do casamento, mesmo sob stress. Não se abandonam os filhos – sendo que aqui o termo “abandono” é suficientemente alargado para incluir matá-los. A taxa de aborto pode continuar a ser alta, mas a proporção de pessoas que pensa que o aborto é uma coisa boa mantém-se baixa. Vemos manobras intelectuais para o tentar justificar e o horror da imprensa sensacionalista quando um bebé é encontrado abandonado. As pessoas olham para o seu bebé e sabem que não se deve matá-lo ou deitá-lo fora.

A própria ideia de órfãos enche-nos de compaixão, porque antes mesmo de nos termos “objectivado” já criámos empatia com a criança. Até compreendemos a forma obsessiva como o órfão já adulto procura a sua mãe ou o seu pai biológico. Sabemos que estão também à procura de eles mesmos.

Em segundo lugar esta criança, que não é propriamente o Einstein, tinha uma compreensão plena do que é o casamento antes de ter sete anos. Notava-se nas palavras enternecedoras “somos família”, ou no recreio para onde eu o levava e onde – para minha grande vergonha – ele ia ter com estranhos e, apontando para mim, declarava: “Aquele é o meu pai!”

E quando estava perto dos 12 anos e os seus pais estavam claramente em fase de separação – nos momentos antes de eu perder o meu lar – ele suplicava: “Mas pai, casou com a mãe”. Estas são palavras que levarei comigo para a sepultura. Porque ele compreendia perfeitamente o conceito.

Talvez a própria simplicidade do rapaz tenha contribuído para a sua claridade nesta matéria.

Tanto quanto podemos ver, os camponeses medievais não tinham qualquer problema em compreender o casamento. Os verdadeiros pobres de Ásia e de África compreendem, como eu próprio já testemunhei. É preciso uma boa dose de sofisticação intelectual pós-moderna para ser incapaz de compreender o que é uma família, enquanto instituição permanente e fértil, fundada sobre uma mulher e um homem.

Uma “instituição” diferente em género de uma companhia limitada e que antecede (cronológica e logicamente) qualquer lei de contratos. Antecede de tal forma que me parece ser autoevidente, autoexplicativa e compreensível desde Adão e Eva. Atravessa todas as culturas e até nos costumes primitivos da poligamia mantém os temas de procriação e herança.

Já antes escrevi que há dois tipos de sofismas – e há boas razões pelas quais o segundo tipo raramente é examinado. Fingimos saber o que não sabemos; mas tais pretensões são fáceis de expor e nós próprios sabemos que estamos a mentir ou que nos estamos a armar. Mais destrutivo é quando fingimos não saber aquilo que sabemos.

A maioria tenderá a concordar que vivemos numa “era de ansiedade” e a ansiedade é suficiente para querermos saber qual é a causa subjacente. Na minha opinião trata-se da recusa em reconhecer coisas relativamente evidentes. Estamos a tentar viver “como se” certas verdades não fossem verdade, mesmo como se certas palavras não significassem o que sempre significaram.

Será mesmo tão difícil de compreender?
Este tipo de negação requer muita energia. Cansa as pessoas muito mais do que estarem sentadas todo o dia num cubículo com um teclado e um ecrã. Chegam ao fim do dia não fisicamente cansadas, mas emocionalmente de rastos. São anos de trabalho para esquecer porquê.

A vida familiar é demasiado dura para nós, nas condições actuais. É demasiado real. Estramos rodeados de opções irreais, desde os romances de escritório aos jogos de computador e todas as outras formas de evasão. Tal como aqueles órfãos, mas ao contrário, fugimos de toda a gente na tentativa de fugir de nós mesmos. O encontro com a realidade é demasiado difícil.

Quando clérigos, bem-intencionados mas imprudentes, dizem que metade dos casamentos são inválidos – seja na diocese de Buenos Aires ou na minha de Toronto – eu sei o que querem dizer com isso. Mas se é metade, então é mais que metade e nesse caso mais vale abolir os casamentos todos e recusarmo-nos a começar de novo.

Porque não agilizar o processo ainda mais, com o envio em massa de Declarações de Nulidade para toda a gente no correio? Depois, se formos honestos, recusamo-nos a recasar quem quer que seja, pois estamos a lidar com uma raça tão perversa que afirma nem saber o que é o casamento.

Refiro-me, claro está, à humanidade, a “raça fantástica” como Jonathan Swift os apelidou. Ele não usava o termo no sentido moderno de “maravilhosa” ou “fora de série”, mas no sentido mais antigo de “louca”, completamente maluquinha.

À Igreja cabe a tarefa de resistir a estes fantasmas, estas “falsa consciência” de que os homens precisam de pouca desculpa para cair no “pecado” que guia as nossas acções quando descarrilamos. Cabe à Igreja não se acomodar às ilusões.


David Warren é o ex-director da revista Idler e é cronista no Ottowa Citizen. Tem uma larga experiência no próximo e extreme oriente. O seu blog pessoal chama-se Essays in Idelness.

(Publicado pela primeira vez na Sexta-feira, 19 de Setembro de 2015 em The Catholic Thing)

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