Randall Smith |
Todos temos as
nossas embirrações. Uma das minhas é quando ouço alguém a descrever o Vaticano
II como um concílio “pastoral e não dogmático”. Apetece-me responder: “Então
nunca chegou a ler os documentos, calculo”.
Os números falam
por si. Dos 15 documentos oficiais do Concílio Vaticano II, três são “Constituições”.
Duas destas são “Constituições dogmáticas”, uma sobre a Igreja (Lumen Gentium) e outra sobre a Revelação
Divina (Dei Verbum). Depois há três “declarações”:
Uma sobre educação religiosa, (Gravissimum
Educationis), uma sobre a relação da Igreja com as religiões não-cristãs (Nostra Aetate) e uma sobre liberdade
religiosa (Dignitatis Humanae).
Acrescem oito “decretos” sobre: (1) a actividade missionária da Igreja, (2) o
ministério e a vida Religiosa, (6) o múnus pastoral dos bispos, (7) o
ecumenismo e (8), as Igrejas Católicas de Rito Oriental.
É de salientar
que apenas dois destes quinze documentos contêm a palavra “pastoral” nos
títulos: A Constituição Pastoral Sobre a Igreja no Mundo Moderno (Gaudium et Spes) e o Decreto Sobre o
Múnus Pastoral dos Bispos na Igreja (Christus
Dominus). E tanto um como o outro são inteiramente “doutrinais”.
Atenção, não
quero ser mal entendido. Não estou a dizer que o Concílio não foi pastoral em muitos sentidos importantes.
Pelo contrário, o problema é a dicotomia que algumas pessoas gostam de criar –
coisa que não se encontra no concílio – entre “pastoral” por um lado e “dogmático”
por outro, como se fossem duas formas diferentes de ser “religioso”. Esta
dicotomia não só viola a “hermenêutica da continuidade” com a tradição
multi-secular, em que Bento XVI tanto insistiu, mas coloca o Concílio numa
ruptura com a “hermenêutica da continuidade” consigo mesmo.
Num ensaio, o
historiador intellectual A.H. Armstrong exorta os seus leitores a “apreciar a
dimensão original e inauditamente estranha do fenómeno da Igreja Cristã
primitiva, quando vista da perspectiva da observância e da piedade das
religiões tradicionais helénicas... A religião helénica enfatizava o culto, não
o credo. O que era realmente importante era o cumprimento correcto de
sacrifícios e ritos secretos de acordo com o que se considerava ser a tradição
imemorial”.
Na maioria das
religiões do mundo antigo, os “ensinamentos doutrinais e as instruções morais”
simplesmente não diziam respeito ao clero.
“O contraste com a
Igreja Cristã é evidente”, diz Armstrong. “Aqui o culto desenvolveu-se de forma
bastante casual e apenas atingiu um alto grau de elaboração bastante mais tarde”.
Embora os sacramentos e o culto público “tenham sido sempre centrais na vida
cristã”, todavia, “aquilo que se ensina dentro e fora da Igreja, sobre a
adoração e o Deus a quem esta se dirige e a forma como os fiéis devem viver,
sempre interessou aos cristãos de uma forma que não tem paralelo no antigo
mundo helénico.”
Outra diferença fulcral,
diz Armstrong, é esta: “Toda a pregação e ensinamento de religião ou moral que
era praticada na antiguidade era levada a cabo por filósofos, que tinham tanto
a ver com a celebração do culto como quaisquer outros e nunca representaram nada
que se parecesse com o estatuto nem a autoridade dos pregadores numa comunidade
eclesial”.
Aquilo que a Igreja alcançou – especialmente no que diz respeito ao ministério do bispo e dos seus irmãos padres – foi uma integração fantástica destas duas funções: o papel do filósofo, por um lado, de pregar e ensinar a verdade e, por outro lado, o papel do sacerdote no templo, que exerciam os ritos sagrados.
Há muitos
católicos, tanto de um lado com do outro da divisão tradicional entre “conservadores
e liberais”, que preferiam que os nossos padres fossem do género pré-cristão,
para quem “o que era realmente importante era o cumprimento correcto de
sacrifícios e ritos secretos de acordo com o que se considerava ser a tradição
imemorial”. A diferença é que os “conservadores” tendem a acreditar que estão a
demonstrar fidelidade para com uma tradição medieval
(mas que geralmente é sobretudo renascentista e do barroco tardio) enquanto os “liberais”
julgam que estão a ir à raiz das práticas patrísticas
iniciais (mas que, na realidade, tendem a ser reconstruções imaginativas,
produzida por liturgistas de meados do século XX, que têm sido reveladas em
larga medida como falsas por estudos mais recentes).
Seja como for, em
ambos os lados da barricada há muitos que preferiam deixar todas as discussões
filosóficas e intelectuais sobre “o Deus a quem o culto se dirige e a forma
como os seus verdadeiros fiéis devem viver” (do género protagonizado pelo Papa
João Paulo II e Bento XVI), de fora da igreja – a única diferença entre os dois
está em saber o que é que o liberal ou o conservador preferiam ouvir em vez de doutrina. Para alguns o melhor são exortações piedosas, para
outros, recomendações vagas sobre “ajudar os pobres”.
Queremos mesmo que o nosso padre nos fale e
ensine sobre a Trindade, a Incarnação, a Ressurreição do Corpo, Salvação,
Justificação, Santificação e os nossos deveres morais para com o nosso próximo?
Queremos mesmo instrução profunda que
nos leve a crescer na compreensão da
fé? Queremos verdadeiramente que o
padre nos desafie moralmente, tanto em termos da nossa vida interior e pessoal como
em termos das nossas obrigações e responsabilidades para com os outros membros
da sociedade?
Deixemo-nos de ilusões: Se vivesse na Igreja primitiva e o seu bispo fosse Ambrósio, ou Agostinho, ou Basílio de Cesareia, seria isso mesmo que ouviria – às pazadas.
O Vaticano II foi
um grande Concílio pastoral
precisamente porque foi um grande concílio dogmático.
Pensar que se pode dar cuidados pastorais
correctos sem uma formação doutrinal
sólida é como pensar que se consegue fazer uma cirurgia ao coração sem os
conhecimentos adquiridos no curso de medicina.
Randall Smith é
professor na Universidade de St. Thomas, Houston, onde recentemente foi nomeado
para a Cátedra Scanlon em Teologia.
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