Thursday, 24 July 2014

Um Concílio Pastoral e Dogmático

Randall Smith
Todos temos as nossas embirrações. Uma das minhas é quando ouço alguém a descrever o Vaticano II como um concílio “pastoral e não dogmático”. Apetece-me responder: “Então nunca chegou a ler os documentos, calculo”.

Os números falam por si. Dos 15 documentos oficiais do Concílio Vaticano II, três são “Constituições”. Duas destas são “Constituições dogmáticas”, uma sobre a Igreja (Lumen Gentium) e outra sobre a Revelação Divina (Dei Verbum). Depois há três “declarações”: Uma sobre educação religiosa, (Gravissimum Educationis), uma sobre a relação da Igreja com as religiões não-cristãs (Nostra Aetate) e uma sobre liberdade religiosa (Dignitatis Humanae). Acrescem oito “decretos” sobre: (1) a actividade missionária da Igreja, (2) o ministério e a vida Religiosa, (6) o múnus pastoral dos bispos, (7) o ecumenismo e (8), as Igrejas Católicas de Rito Oriental.

É de salientar que apenas dois destes quinze documentos contêm a palavra “pastoral” nos títulos: A Constituição Pastoral Sobre a Igreja no Mundo Moderno (Gaudium et Spes) e o Decreto Sobre o Múnus Pastoral dos Bispos na Igreja (Christus Dominus). E tanto um como o outro são inteiramente “doutrinais”.

Atenção, não quero ser mal entendido. Não estou a dizer que o Concílio não foi pastoral em muitos sentidos importantes. Pelo contrário, o problema é a dicotomia que algumas pessoas gostam de criar – coisa que não se encontra no concílio – entre “pastoral” por um lado e “dogmático” por outro, como se fossem duas formas diferentes de ser “religioso”. Esta dicotomia não só viola a “hermenêutica da continuidade” com a tradição multi-secular, em que Bento XVI tanto insistiu, mas coloca o Concílio numa ruptura com a “hermenêutica da continuidade” consigo mesmo.

Num ensaio, o historiador intellectual A.H. Armstrong exorta os seus leitores a “apreciar a dimensão original e inauditamente estranha do fenómeno da Igreja Cristã primitiva, quando vista da perspectiva da observância e da piedade das religiões tradicionais helénicas... A religião helénica enfatizava o culto, não o credo. O que era realmente importante era o cumprimento correcto de sacrifícios e ritos secretos de acordo com o que se considerava ser a tradição imemorial”.

Na maioria das religiões do mundo antigo, os “ensinamentos doutrinais e as instruções morais” simplesmente não diziam respeito ao clero.

“O contraste com a Igreja Cristã é evidente”, diz Armstrong. “Aqui o culto desenvolveu-se de forma bastante casual e apenas atingiu um alto grau de elaboração bastante mais tarde”. Embora os sacramentos e o culto público “tenham sido sempre centrais na vida cristã”, todavia, “aquilo que se ensina dentro e fora da Igreja, sobre a adoração e o Deus a quem esta se dirige e a forma como os fiéis devem viver, sempre interessou aos cristãos de uma forma que não tem paralelo no antigo mundo helénico.”

Outra diferença fulcral, diz Armstrong, é esta: “Toda a pregação e ensinamento de religião ou moral que era praticada na antiguidade era levada a cabo por filósofos, que tinham tanto a ver com a celebração do culto como quaisquer outros e nunca representaram nada que se parecesse com o estatuto nem a autoridade dos pregadores numa comunidade eclesial”.


Aquilo que a Igreja alcançou – especialmente no que diz respeito ao ministério do bispo e dos seus irmãos padres – foi uma integração fantástica destas duas funções: o papel do filósofo, por um lado, de pregar e ensinar a verdade e, por outro lado, o papel do sacerdote no templo, que exerciam os ritos sagrados.

Há muitos católicos, tanto de um lado com do outro da divisão tradicional entre “conservadores e liberais”, que preferiam que os nossos padres fossem do género pré-cristão, para quem “o que era realmente importante era o cumprimento correcto de sacrifícios e ritos secretos de acordo com o que se considerava ser a tradição imemorial”. A diferença é que os “conservadores” tendem a acreditar que estão a demonstrar fidelidade para com uma tradição medieval (mas que geralmente é sobretudo renascentista e do barroco tardio) enquanto os “liberais” julgam que estão a ir à raiz das práticas patrísticas iniciais (mas que, na realidade, tendem a ser reconstruções imaginativas, produzida por liturgistas de meados do século XX, que têm sido reveladas em larga medida como falsas por estudos mais recentes).

Seja como for, em ambos os lados da barricada há muitos que preferiam deixar todas as discussões filosóficas e intelectuais sobre “o Deus a quem o culto se dirige e a forma como os seus verdadeiros fiéis devem viver” (do género protagonizado pelo Papa João Paulo II e Bento XVI), de fora da igreja – a única diferença entre os dois está em saber o que é que o liberal ou o conservador preferiam ouvir em vez de doutrina. Para alguns o melhor são exortações piedosas, para outros, recomendações vagas sobre “ajudar os pobres”.

Queremos mesmo que o nosso padre nos fale e ensine sobre a Trindade, a Incarnação, a Ressurreição do Corpo, Salvação, Justificação, Santificação e os nossos deveres morais para com o nosso próximo? Queremos mesmo instrução profunda que nos leve a crescer na compreensão da fé? Queremos verdadeiramente que o padre nos desafie moralmente, tanto em termos da nossa vida interior e pessoal como em termos das nossas obrigações e responsabilidades para com os outros membros da sociedade?

Deixemo-nos de ilusões: Se vivesse na Igreja primitiva e o seu bispo fosse Ambrósio, ou Agostinho, ou Basílio de Cesareia, seria isso mesmo que ouviria – às pazadas.  

O Vaticano II foi um grande Concílio pastoral precisamente porque foi um grande concílio dogmático. Pensar que se pode dar cuidados pastorais correctos sem uma formação doutrinal sólida é como pensar que se consegue fazer uma cirurgia ao coração sem os conhecimentos adquiridos no curso de medicina.


Randall Smith é professor na Universidade de St. Thomas, Houston, onde recentemente foi nomeado para a Cátedra Scanlon em Teologia.

(Publicado pela primeira vez no Sábado, 19 de Julho de 2014 em 
The Catholic Thing)

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