Francis J. Beckwith |
A questão
não é saber se a escravatura é moralmente errada, concordamos quanto a isso. O
que pergunto é qual é a característica da escravatura que justifica o nosso juízo
de que é moralmente errada. É como a diferença entre perguntar se a Pietà de
Miguel Ângelo é bela, e perguntar porque é que é bela. A segunda questão
presume que a resposta à primeira é “sim”, pelo que a segunda pretende
justificar o porquê desse “sim”.
A resposta
que recebo de quase todos os meus alunos é de que “os escravos não
consentiram”. Mas, como rapidamente se apercebem, essa resposta não é capaz de
satisfazer as suas mais profundas intuições sobre o mal da escravatura.
Normalmente pergunto: E se os historiadores descobrissem um grupo de
ex-escravos, nos anos seguintes à Guerra Civil, saudosos da vida que levavam na
plantação? Como é que reagiríamos perante uma revelação dessas?
Aceitaríamos
que uma situação destas pudesse desembocar num caso de escravatura moralmente
aceitável, em que os ex-escravos consentiam em regressar ao seu estado
anterior, para se tornarem novamente, à luz da lei, nada mais que a propriedade
de outro?
Se a sua
resposta for afirmativa, então acredita que a escravatura é só condicionalmente
errada, que não há nada de intrinsecamente
errado na prática. Por isso, mesmo que continue a condenar a prática, o
fundamento sobre o qual essa condenação assenta – a noção de consentimento –
implica que não há nada na essência da natureza do Ser Humano que nos impeça de
sermos propriedade de alguém.
Por isso,
Segundo esta análise, o mal da escravatura depende não de quem são as vítimas,
mas antes, do que as vítimas querem. Sugere que a ausência de vontade, e não a
presença de dignidade, é que está por detrás da nossa condenação da
escravatura.
Porém,
hoje muitos sugerem que no que toca a algumas das grandes questões morais do
nosso tempo, a autonomia individual (ou “consentimento”) é o único princípio de
que precisamos para assegurar todos os bens que até agora têm sido vistos sob o
prisma de conceitos mais antigos, como a dignidade humana.
Por
exemplo, o psicólogo de Harvard, Steven Pinker, escreve num ensaio recente no
New Yorker, sob o título provocador de “A
Estupidez da Dignidade”:
O problema é que “dignidade” é uma noção mole
e subjectiva, incapaz de suportar as exigências morais que lhe são atribuídas.
Ruth Macklin argumenta que a bioética tem-se aguentado lindamente só com o
princípio da autonomia pessoal – a ideia de que, uma vez que todos os humanos
têm a mesma capacidade mínima de sofrer, prosperar, raciocinar e escolher,
nenhum humano tem o direito de impingir sobre a vida, corpo ou liberdade de
outro. É por isso que o consentimento serve de base sólida para a investigação
ética e impede claramente o tipo de abuso que levou ao nascimento da bioética,
tal como as pseudo-experiências sádicas de Mengele na Alemanha Nazi (...).
Quando se reconhece o princípio da autonomia, argumentou Macklin, a “dignidade”
não acrescenta nada.
Embora
haja muito a responder a Pinker, tal como fiz num artigo de 2010, publicado na
revista “Ethics
& Medicine”, bastará aqui utilizar o mesmo tipo de raciocínio que
emprego com os meus alunos quando lhes pergunto sobre a escravatura.
Errado? Claro. Mas porquê? |
E se, por
exemplo, descobríssemos os diários de cidadãos alemães que se submeteram
voluntariamente às experiências nazis a troco de somas avultadas de dinheiro
para os seus familiares? O consentimento destas vítimas voluntárias tornaria
aceitáveis as pseudo-experiências de Mengele?
Se a
resposta for não, então só pode ser porque estas actividades são intrinsecamente
más, e que a sua natureza não depende, por princípio, no consentimento de quem
nelas participa, seja como vítima ou agressor. Logo, ao contrário do que afirma
Pinker, a noção de dignidade não só acrescenta algo, como o mero consentimento
subtrai tudo.
Claro que
não estou a sugerir que o consentimento é irrelevante para a ética. É
essencial, por exemplo, para averiguar a licitude de um casamento e o conceito
de coacção injusta é uma realidade. Antes, o que eu argumento é que a vida
moral não pode ser reduzida ao mero consentimento, como muitos dos nossos
contemporâneos, como Pinker, defendem.
Como já
vimos, quando aplicamos esta redução a atrocidades reais, a nossa atenção desvia-se
daquilo que parecia verdade à primeira vista – a dignidade intrínseca da pessoa
humana – para a alternativa que a mente moderna pensa que pode impor sem mais
nem menos: a vontade condicional do indivíduo.
A
implicação desta posição é clara: não existe qualquer bem para o qual o homem
está ordenado e ao qual a nossa vontade deve conformar-se. O bem é meramente
aquilo que preferimos e para o qual direccionamos a nossa vontade. Mas, nesse
caso, não possuímos dignidade intrínseca, uma vez que essa seria sempre um bem,
independentemente da nossa vontade, à qual as nossas preferências se deviam
sujeitar.
De facto, a
noção de mero consentimento implica o fim da dignidade humana.
(Publicado pela primeira vez na Sexta-feira, 23
de Maio de 2014 em The
Catholic Thing)
Francis
J. Beckwith é professor de Filosofia e Estudos Estado-Igreja na
Universidade de Baylor. É
autor de Politics
for Christians: Statecraft as Soulcraft, e (juntamente com Robert P. George
e Susan McWilliams), A Second Look at
First Things: A Case for Conservative Politics, a festschrift in honor of
Hadley Arkes.
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