O primeiro grande incidente de carácter religioso em que
Sinéad O’Connor se envolveu foi em 1992 quando rasgou uma fotografia do Papa
João Paulo II durante uma actuação em directo na televisão.
A cantora estava a cantar a música “War” de Bob Marley, no
Saturday Night Live e o combinado era que durante a música seguraria numa
fotografia de uma criança soldado. Contudo, quando chegou a esse momento mostrou
uma fotografia de João Paulo II e rasgou-a em pedaços, enquanto dizia “luta
contra o verdadeiro inimigo”.
O’Connor defendeu o seu gesto como uma crítica aos abusos
sexuais de crianças no seio da Igreja Católica. Independentemente do que se
possa pensar sobre o acto em si, a verdade é que estava alguns anos à frente do
seu tempo, pois como se veio a ver o escândalo dos abusos e do seu encobrimento
existiam de facto em vários países, incluindo na sua nativa Irlanda, mas ainda
não se falava muito do assunto.
O incidente foi recebido com silêncio sepulcral em
estúdio, mas levou a fortes críticas nas semanas seguintes, de tal forma que num
concerto de tributo a Bob Marley nem conseguiu acabar de cantar, tais foram os
apupos da multidão. Foi ainda criticada por Madonna por ter ofendido a Igreja
Católica e pelo apresentador do SNL, Joe Pesci, que mostrou a mesma fotografia
recomposta e colada por ele e disse que se não fosse o apresentador teria dado à
cantora uma chapada.
Foi por isso com alguma estranheza que muitos assistiram
à transformação de O’Connor de contestatária do Papa em sacerdotisa de uma
Igreja cismática supostamente tradicionalista.
A Igreja em causa era a Igreja Latina Tridentina, conhecida
oficialmente como Igreja Ortodoxa Católica e Apostólica da Irlanda (IOCAI),
liderada pelo bispo Michael Cox. Cox tinha sido ordenado por Ciarán Broadbery,
que por sua vez tinha sido ordenado por Clemente Dominguez, líder da Igreja
Católica Palmariana, que por sua vez tinha sido ordenado pelo bispo vietnamita Ngô
Đình Thục. De todos estes, Thục era o único que alguma vez tinha sido um bispo
católico válido, mas acabou, sem surpresas, por ser excomungado, juntamente com
todos os outros bispos que ordenou ilicitamente. A IOCAI apresentava-se como
sendo ultraconservadora e celebrava o rito tridentino, mas isso não impediu o
seu bispo de convidar Sinéad O’Connor para ser ordenada depois de ela lhe fazer
um donativo de 50 mil libras irlandesas. Em abono da verdade, diga-se que o
donativo foi retirado depois de ela ter sido acusada de simonia pela Igreja
Católica da Irlanda, mas a “ordenação” avançou e Sinéad adoptou o nome “Madre Marie
Bernardette”.
Numa entrevista em que falou longamente sobre o assunto explicou que se
considerava uma sacerdotisa católica legítima e válida e que poderia levar
anos, mas Roma acabaria por aceitá-la como tal. Disse também que nunca mais
iria usar outra roupa para além das suas vestes sacerdotais e que iria leiloar
toda a sua roupa e maquilhagem, para juntar dinheiro para fundar uma casa em Lourdes
onde os “travellers” – uma comunidade ao estilo cigano que vive nas Ilhas
Britânicas – poderem ir passar férias. Por fim, disse que estava a pensar
seriamente em fazer um voto de celibato, mas que o seu namorado lhe tinha
pedido para pensar no assunto durante uns 25 anos. Não faço ideia se o leilão
da roupa chegou a acontecer, nem se a casa em Lourdes foi construída, muito
menos se o voto de celibato se concretizou, mas tenho sérias dúvidas. O mais espantoso
é que toda esta conversa decorreu – pelo menos da parte de Sinéad – com a maior
seriedade e convicção.
Não sei ao certo quando é que Sinéad deixou de se
considerar sacerdotisa e de exercer como tal, mas sabe-se que em 2018 a sua
vida religiosa levou outra volta inesperada quando ela anunciou que se tinha
convertido ao Islão, adoptando o nome Shuhada' Sadaqat. Shuhada significa “mártires”,
ou mais literalmente “aqueles que dão testemunho” e Sadaqat significa dar
esmola.
Não se goza com os mortos, nem é esse o objectivo deste
texto. Antes, pretendo demonstrar não só a fascinante – se conturbada – vivência
religiosa da cantora irlandesa, mas também como estas procuras por
espiritualidades alternativas tão facilmente acabam por conduzir a uma espiral
de loucura e irracionalidade.
Num dos seus muitos comentários sobre religião, Sinéad O’Connor
disse: “Penso que Deus salva todos, quer queiram ser salvos ou não. Por isso,
quando morremos, iremos todos para casa. Acho que Deus não julga ninguém. Ama a
todos por igual”.
Esta frase não podia ser menos ortodoxa, mas pelo meio tem uma verdade. Sim, Deus ama todos por igual. E a verdade é que só Deus sabe o que se passava na mente e na alma claramente perturbadas de Sinéad O’Connor. Esperemos que o seu encontro com Ele tenha sido de facto um regresso a casa e o começo de uma nova vida de paz.
Olá Filipe!
ReplyDeleteNão consigo perceber a vontade de associar a missa tradicional e os tradicionalistas ao sedevacantismo e a "espiritualidades duvidosas" como referes (julgo que não estarás a falar do Islão).
Esta senhora tinha problemas claros de saúde mental e eventualmente espiritual, e ao longo da sua vida associou-se a seitas e pessoas que certamente também terão a sua saúde psíquica perturbada. O que tem isto a ver com a "missa tridentina" como chamas? O facto de essas pessoas se autoproclamarem "tridentinas"? Os bispos alemães também se dizem católicos e todos sabemos que estão com um pé no cisma. A igreja palmariana nem rito tradicional celebra (inventaram um só deles). Tanto quanto percebi a "ordenação" desta senhora deu-se num quarto de hotel e teve também momentos de reggae.
Deixa-me esclarecer-te, e a quem mais tenha dúvidas, que isto não tem nada a ver com o Missa tal qual como foi celebrada durante séculos, assistida por tantos santos.
Nada tem a ver com a Missa tradicional, nada tem a ver com os tradicionalistas.
Os sedevacantistas não são tradicionalistas.
Deixo este comentário porque me parece que este texto vai justamente em sentido contrário ao resultado da reflexão que fizeste há pouco tempo sobre as declarações de D. Américo.
Eu sei que é engraçado ter alguém para alfinetar, mas o alvo é sempre o mesmo e já cansa.
Olá Catarina,
ReplyDeleteDesculpa lá, mas isto tem de funcionar nos dois sentidos. A vitimização também tem de ter limites.
Onde é que eu faço uma associação entre os tradicionalistas - como tu os entendes - e os sedevacantistas? As únicas vezes em que falo de tridentino é para dizer o nome da "Igreja" e para dizer que celebravam o rito tridentino (é ela que o diz na entrevista linkada). E a única vez que escrevi a palavra "tradicionalista" foi antecedida de "supostamente", precisamente para evitar que se confundisse com os tradicionalistas que existem dentro da Igreja Católica.
Se vês este texto como uma alfinetada nos tradicionalistas actuais isso já é mania de perseguição.
Não considero isto com interesse. Apenas mostra que a senhora estava doente.
ReplyDeleteQue a sua alma descanse em Paz
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