Monday 10 July 2023

Decifrando a elevação de D. Américo a Cardeal

[Uma versão mais extensa e detalhada deste artigo foi publicada entretanto no Expresso]

Os jornalistas adoram dizer que já sabiam que as coisas iam acontecer, fortalecendo assim as suas credenciais de especialistas em certas matérias. Pois, da minha parte, posso dizer que fui apanhado totalmente na curva pela escolha de D. Américo Aguiar para cardeal.

Contudo, consumada a decisão do Papa, podemos tentar analisar e contextualizar.

Lisboa ou Roma?

Ao ouvir o anúncio, muitas pessoas assumiram que com este gesto o Papa está já a dar um sinal de quem vai suceder a D. Manuel Clemente como Patriarca de Lisboa. Aliás, faria mais que sentido. D. Américo é o “delfim” de D. Manuel. O actual Patriarca fez questão de o trazer do Porto, onde já tinham trabalhado juntos e onde D. Américo se tornou o seu braço direito; conseguiu que ele fosse nomeado bispo auxiliar de Lisboa e durante muito tempo pareceu um dado assente que D. Américo seria o sucessor designado.

Contudo, e com base nas informações que tenho até ao momento, esse cenário de D. Américo ser o próximo Patriarca de Lisboa está posto de parte. Tanto quanto sei, o seu nome nem consta da actual terna – a lista de três hipóteses elaborada pelo Dicastério para os Bispos, com o precioso auxílio da nunciatura – que vai ser apresentada ao Papa para ele escolher. Não que isso tenha impedido o Papa, no passado, de fazer as suas próprias escolhas… Contudo, neste caso, parece-me claro que D. Américo não será o próximo Patriarca.

Sendo assim, também é muito pouco provável que Francisco tenha criado D. Américo cardeal para o enviar para outra diocese em Portugal. (O Porto faria algum sentido, sendo a sua diocese de origem, e nos piores momentos da crise dos abusos em Portugal ainda me ocorreu que D. Manuel Linda fosse retirado de lá, mas, entretanto, recebeu novos auxiliares, pelo que deve estar para continuar por lá.) De resto, não vejo o Papa a enviar D. Américo para Setúbal, ou para a Guarda, nem a permanecer em Lisboa como auxiliar depois da saída de D. Manuel, pelo que presumo que a sua próxima paragem seja Roma. A confirmar-se o sucesso da JMJ, faria sentido ele ficar mais permanentemente ligado à organização destes eventos, ou outros do género. Tenho ouvido dizer que Francisco quer imprimir às JMJ um estilo diferente, mais ecuménico, e D. Américo pode ser o homem que pretende para executar isso.

Mas mesmo a decisão de arranjar um cargo para ele em Roma não explica a nomeação cardinalícia, pois uma das marcas do pontificado de Francisco é precisamente que já não existem postos que obrigam à nomeação cardinalícia. Daí que se há uma coisa de que podemos ter a certeza é de que esta decisão do Papa Francisco é um sinal de estima pessoal e um voto de confiança em D. Américo.

Subida meteórica

No meio disto tudo, convém não esquecer que D. Américo ainda não tem 50 anos e que, ainda por cima, a sua foi uma vocação tardia, tendo sido ordenado padre “apenas” aos 27 anos. Ou seja, em 22 anos ele passou de padre recém-ordenado a Cardeal, e tem agora 30 anos como cardeal eleitor, podendo por isso escolher os próximos Papas. Isto não significa que D. Américo seja “papabile”, parece-me muito prematuro falar de tais hipóteses, mas a confirmar-se a sua ida para Roma, e conhecendo o jeito para política, é de esperar que ele venha a desempenhar um papel importante em futuros conclaves, que serão quase certamente mais que um.  

Uma fartura de Cardeais portugueses

O aumento do número de cardeais portugueses durante o pontificado do Papa Francisco é incrível, sobretudo se tivermos em conta que neste pontificado Francisco tem feito questão de escolher cardeais das zonas mais variadas, em detrimento dos países do “velho mundo” católico.

A partir do momento em que D. Américo for elevado ao cardinalato teremos quatro eleitores, durante pelo menos os próximos quatro anos, mas esse número até pode aumentar. Caso D. Américo vá para Roma, o próximo Patriarca de Lisboa deve, segundo a bula “Inter praecipuas apostolici ministerii”, de Clemente XII, de 1737, ser elevado ao cardinalato logo no primeiro consistório a seguir à sua nomeação. É verdade que o Papa está acima das próprias bulas, e no caso de D. Manuel Clemente a elevação foi feita não no primeiro, mas no segundo consistório, já depois de D. José Policarpo ter morrido.

Aqui entram em conflito diferentes tradições e regras. Por um lado, a tal bula, e por outro o costume de não nomear cardeal um arcebispo (neste caso Patriarca) enquanto o seu antecessor ainda for eleitor. Mas a bula tem mais peso do que os costumes, embora nem uma nem os outros obriguem o Papa a nada.

Por enquanto, podemos contar pelo menos com quatro cardeais eleitores, e dois não eleitores. Ora, vejamos isto à luz da actual realidade de países comparáveis com Portugal:

  • A Irlanda, por exemplo, não tem um novo cardeal desde 2007.
  • A Austrália, há 20 anos.
  • Espanha tem, neste momento 12 cardeais, o dobro de Portugal, e vai ter mais dois, nomeados com D. Américo. Eleitores, tem seis e vai passar para oito, também o dobro. Mas Espanha tem quase cinco vezes mais população que Portugal, portanto em proporção pode-se dizer que Portugal tem mais cardeais do que Espanha.
  • A Áustria e a Bélgica têm uma população comparável com a de Portugal e tem apenas um cardeal cada, que é eleitor.
  • O Brasil tem oito cardeais, seis dos quais eleitores, e tem uma população 21 vezes maior que Portugal.
  • Portugal passa a ter mais dois cardeais que o Canadá, e o mesmo número de eleitores, tendo o Canadá quatro vezes mais pessoas que Portugal.

Enfim, percebem a ideia.

Se juntarmos a isto o facto de Portugal estar prestes a receber a segunda visita do Papa Francisco, quando países como Espanha não receberam nenhum, percebemos que Portugal tem tido um tratamento contracorrente neste pontificado, o que é muito interessante.

2 comments:

  1. O que é que eu tenho dito cá em casa? Que deve estar a preparar-se um lugar para ele em Roma. Para organizar eventos. E não sabia desta ideia do Papa em relação às novas JMJ! Enfim... só espero que isto não seja apenas wishful thinking!

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  2. Feliz com a notícia do cardinalato de D. Américo. "O futuro a Deus pertence" (adágio popular)

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