Este caso é atual, e saltou para a comunicação social por
causa da decisão de um tribunal
que aceita a possibilidade de o menor decidir, caso se faça prova da sua
maturidade. Porém, o dilema ético/moral/legal das testemunhas de Jeová (TJ) e das
transfusões de sangue é já antigo e tem sido muito discutido.
A mim, o caso interessa-me sobretudo da perspetiva da liberdade
religiosa e é nesse sentido que faço alguns comentários.
A idade do rapaz – Uma das questões centrais neste
caso é a idade do doente. Ninguém duvida que um adulto tem direito a recusar tratamento,
ainda que seja tratamento para lhe salvar a vida e mesmo que seja por questões
de fé. Mas como agir quando se trata de um menor de idade? Nesses casos normalmente
a Justiça intervém para retirar temporariamente a guarda da criança aos pais,
permitindo aos médicos intervir. Fica assim o assunto resolvido. Aqui, porém, o
tribunal entendeu que o rapaz talvez possa decidir por si, tendo apenas 16
anos, caso demonstre ter maturidade para isso.
Os críticos apontam a discrepância de uma pessoa com 16
anos não ser considerado maduro para poder conduzir, votar, nem beber álcool,
mas poder eventualmente decidir em questões de vida ou de morte. É um ponto
válido. Mas também é válido referir que a mesma sociedade permite ao jovem de
16 anos ter relações sexuais consensuais, abortar e até “mudar de sexo”, sem o
consentimento dos pais. Não se resolve a situação com esta troca de argumentos.
A linha que se traça entre a maioridade e a menoridade é sempre subjectiva, e esteja
ela onde estiver vai sempre gerar casos complexos.
Pessoalmente, tendo a concordar com a decisão do tribunal,
embora não saiba precisamente como é que essa maturidade pode ser aferida.
A liberdade do rapaz – Esta é uma questão
verdadeiramente interessante e muito difícil. A decisão de recusa de um
tratamento médico tem de ser livre e esclarecida. Alguns participantes no
programa – e importa realçar que apesar de convidados e de inicialmente terem aceitado,
os TJ acabaram por não se fazer representar – puseram em causa um rapaz nesta
situação poder decidir livremente.
Aqui não é tanto a maturidade, mas a pressão social que
existe por parte da religião a que pertence. Foi muito interessante o
testemunho da enfermeira Carmen Garcia, que viveu de perto o caso de uma
rapariga de 21 anos, TJ, que acabou por morrer. Ela explica que enquanto “Sara”
esteve internada esteve sempre acompanhada por um ancião dos TJ que nunca saiu
do seu lado e que, aos olhos do pessoal no hospital, estava a exercer uma
tremenda pressão sobre ela para não aceitar as transfusões. Mais, diz a enfermeira,
o doente nessas condições está ainda sujeito à pressão de saber que caso aceite
a transfusão será proscrito pela comunidade onde, dada a natureza dos TJ, tendem
a estar todos os membros da sua família, amigos, etc.,
Este é certamente um ponto importante a ter em conta.
Outra questão é a de saber até que ponto é que a criança
é livre, uma vez que está a decidir com base em preceitos de uma religião que não
escolheu, como chegou a ser proposto no programa. Mas esse argumento, para mim,
já não colhe. Para isso ninguém é verdadeiramente livre, pois todos somos sujeitos
a influências de meios, relações e, sim, sistemas de fé, que não escolhemos.
A liberdade religiosa do rapaz – Esta é uma
questão fundamental e foi aqui que achei a argumentação dos participantes do programa
mais fracos. É normal, em certa medida, uma vez que não estamos perante
especialistas e por isso até entendo que não tenham uma reflexão profunda feita
sobre o assunto.
Dito isto, houve uma frase que me chocou, proferido pela
Dulce Rocha, actual presidente do Instituto de Apoio à Criança, que a este
propósito disse: “Quando se diz o direito à liberdade religiosa é o direito de
associação, de professar a sua religião. Não vamos chegar a esse ponto... É o
direito de se expressar, do nível religioso, não me parece que seja o direito
de decidir sobre a vida e a morte.”
Da liberdade religiosa deles depende a minha |
Mas não, a liberdade religiosa não é de todo apenas uma questão de direito de associação e de expressão da nossa fé. A liberdade religiosa existe porque a religião, como a consciência, tem uma importância tão grande para o homem que muitos estão dispostos a morrer antes de violar os preceitos religiosos em que acreditam.
A Dulce Rocha não é obrigada a partilhar dessa visão da
religião na vida das pessoas, mas não tem o direito de diluir completamente o
conceito de liberdade religiosa.
E porque é que isto é importante? Porque da liberdade
religiosa deste rapaz TJ depende a minha e a de todos os outros. Por exemplo, segundo
esta visão de Dulce Rocha, a integridade física está acima da liberdade
religiosa? Podem, então, os judeus e os muçulmanos circuncidar os seus filhos?
É que precisamente com este tipo de argumento já se tentou proibir a
circuncisão por motivos religiosos em vários países europeus.
E precisamente porque a liberdade religiosa é um direito humano,
e não exclusivo do sistema jurídico português, podemos perguntar como devemos aplicar
a visão de Dulce Rocha a uma realidade como o Afeganistão? Se um rapaz de 16
anos no Afeganistão professa o Cristianismo e as autoridades dizem que ele tem
de optar entre renunciar à sua fé ou ser executado, devemos concluir que o
Estado deve intervir para o obrigar a converter-se para lhe salvar a vida?
Ou se uma rapariga menor de idade engravida e os médicos
concluem que a gravidez põe em risco a sua vida, deve ser obrigada a abortar,
mesmo contra a sua vontade livremente expressada, para se salvar a sua vida?
É sempre mais fácil decidir quando o que está em causa
são os “maluquinhos” dos TJ, que até, pasme-se, rejeitam as transfusões. Mas
convém ter bem presente que nós, católicos, somos aos olhos de muitos os “maluquinhos”
que acreditam que o pão e o vinho se transformam verdadeiramente em Corpo e Sangue
de Cristo durante a Missa e que insistimos que um feto de 10 semanas, de 20
dias ou de 3 horas é vida humana plenamente digna e merecedora de proteção
jurídica.
A liberdade religiosa ou é também para os “maluquinhos”
ou não existe para ninguém. Pode-se eventualmente argumentar com a necessidade
de a confissão religiosa em causa ter representatividade, continuidade
histórica, etc., para não termos de levar com toda e qualquer seita que aparece
do dia para a noite, mas por esses critérios os TJ têm de ser aceites como uma
religião estabelecida.
Quero, por fim, deixar claro que este desabafo sobre este último ponto levantado pela Dulce Rocha não é uma embirração pessoal. Ela faz outros pontos muito interessantes e válidos durante o programa que, repito, deve ser ouvido na íntegra e é muito útil para um debate esclarecido.
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