Wednesday, 6 October 2021

Sementes Plantadas no Afeganistão

Ines A. Marzaku

Numa altura em que mesmo os líderes militares da desastrosa retirada do Afeganistão admitem o seu fracasso, e de tantas outras coisas terem corrido mal naquele país em perpétuo estado de sítio, é bom recordar que, à sua maneira discreta, a Igreja tem estado a trabalhar e manteve naquele país uma presença significativa. Várias agências católicas têm estado a ajudar os afegãos ao longo dos últimos anos, mas há uma em particular que merece a nossa atenção.

Foi desta forma que o padre barnabita Giovenni Scalese, superior da missio sui iuris no Afeganistão, anunciou o seu regresso a Itália depois da retirada das forças internacionais.

Cheguei esta tarde ao aeroporto de Fiumicino com cinco freiras e catorze crianças deficientes, de quem elas cuidavam em Cabul. Agradecemos ao Senhor o sucesso da operação. Agradeço a todos vocês que ao longo destes dias lhe dirigiram orações incessantes por nós e que, claramente, foram atendidas. Continuem a rezar pelo Afeganistão e pelo seu povo!

O padre Scalese estava acompanhado de quatro Missionárias das Caridade, a ordem de Madre Teresa, que estavam no Afeganistão desde 2006, e de uma freira paquistanês, Bhatti Shahnaz, da Congregação de Saint Jeanne-Antide Thouret. A irmã Shahnaz geria um acolhimento para crianças com deficiências mentais que foi fundado pela associação Pro Bambini de Cabul. Infelizmente essas crianças não puderam escapar. O regresso do padre Scalese a Itália marcou o fim da missão de 88 anos dos barnabitas no Afeganistão.

Que resultados teve esta missão? Alguma coisa foi “concretizada”?

Os únicos missionários católicos no país foram forçados a fugir e as perspetivas de que possam regressar são poucas. Mas a Igreja tem enfrentado sempre desafios aparentemente impossíveis desde que apareceu em pleno Império Romano, porém Deus lá vai conseguindo os seus caminhos.

Vale a pena, por isso, olhar para história e ter esperança no futuro. Em 1921 a Itália tornou-se o primeiro país ocidental a reconhecer e a estabelecer relações diplomáticas com o Afeganistão. Os dois estados concordaram abrir embaixadas nos seus respetivos países e os afegãos aceitaram que a embaixada italiana tivesse um capelão católico. O Rei do Afeganistão naquela altura, Amanullah, via com bons olhos a necessidade de dar assistência espiritual aos estrangeiros a residir no país.

Um ano mais tarde fez o pedido ao Governo italiano. Talvez tenha sido a primeira vez que um Rei de um país muçulmano tenha solicitado um capelão católico para atender aos estrangeiros cristãos residentes. Havia apenas duas condições, não poderia haver qualquer proselitismo da população muçulmana e a capela deveria ser construída dentro da embaixada italiana, uma vez que legalmente não se podia construir uma igreja em solo islâmico.

O Governo italiano pediu ajuda ao Papa Pio XI, que afirmou: “Precisamos de um barnabita”. Optou assim pelos Clérigos Regulares de São Paulo, conhecidos como barnabitas, e que incluem padres, religiosas e leigos, sobretudo casais.

A ordem, fundada em 1530 inspira-se em São Paulo. O padre Egidio Caspani foi selecionado para dar início à missão. Outro barnabita, o padre Ernesto Cagnacci, viria a juntar-se-lhe como funcionário da embaixada italiana. A primeira missa católica foi celebrada lá no dia 1 de janeiro de 1933, marcando o início oficial da missão.

O padre Giovanni Scalese, em Cabul


Em 2002 o Papa João Paulo II elevou a missão cristã de Cabul para o estatuto de Missio sui iuris – uma missão independente que fica sob a jurisdição direta da Igreja. Consequentemente a missão e a Igreja passaram a ser presenças oficiais cristãs naquele país muçulmano. A Igreja, como é evidente, não tinha uma comunidade local, nem clero afegão, mas com o passar do tempo a missão e os padres tornaram-se parte da reconstrução do Afeganistão. O padre barnabita Giuseppe Moretti ajudou a fundar, em 2005, a Escola de Paz Tangi-Kalay, que recebe financiamento público e donativos privados.

A missão barnabita no Afeganistão operava com base no modelo da Missão de Paulo em Malta, narrada em Actos, 28, 1-10. Era uma missão de presença, partilha e gratidão. A presença e o serviço de Paulo para com os ilhéus eram cristológicos: Cristo veio para servir e não para ser servido e Paulo estava a imitar o mestre. O testemunho barnabita no Afeganistão era um testemunho de Deus: eram padres católicos que se tinham tornado párocos por excelência de todo Cabul, e antes da recente retirada gozavam já de uma presença de quase um século entre o povo afegão.

Não é o primeiro caso de testemunhos santos de cristãos entre muçulmanos e os resultados poderão um dia surpreender-nos. O beato Charles de Foucauld, por exemplo com a sua mística imitação de Cristo entre os muçulmanos do Norte de África, assemelha-se aos barnabitas no Afeganistão. A vida e a morte de Foucauld foram um testemunho religioso profético. Da mesma forma, os barnabitas e outros missionários cristãos viveram vidas no Afeganistão que foram uma combinação de profecia, presença e diálogo. Estes missionários optaram por viver a vida escondida de Jesus entre os muçulmanos afegãos.

De uma perspetiva meramente humana estes esforços podem parecer coisa pouca. Mas em vez de julgar com o olhar do mundo, seria bom prestar atenção às palavras de São John Henry Newman, que dizia que os verdadeiros profetas e místicos cristãos são aqueles que “vivem de uma forma desprezada pelos restantes, escolhida por Jesus de Nazaré, para formar uma resistência ao poder e a sabedoria do mundo… Aceitam de bom grado tudo o que lhes sucede e tiram o melhor proveito de tudo.”

Os barnabitas não foram para o Afeganistão para converter e evangelizar os muçulmanos locais, pregando abertamente o Evangelho. As condições não o permitiam. Mas de acordo com fontes fiáveis, existe agora um pequeno grupo de afegãos que se converteu do Islão e pratica o Cristianismo em segredo. Tal como noutros países muçulmanos, esses convertidos podem estar escondidos agora, mas talvez o futuro nos surpreenda.

Podemos falar da missão barnabita aos afegãos como uma “missão cumprida?” Não, ou pelo menos não no sentido normal dessas palavras. Mas há esperança para o futuro da missão no Afeganistão? O Afeganistão está atualmente em caos. O testemunho que os barnabitas deixaram no Afeganistão são sementes que poderão levar a um florescimento surpreendente, quando Deus assim quiser, entre as futuras gerações de afegãos.


Ines A. Murzaku é professora de Religião na Universidade de Seton Hall. Tem artigos publicados em vários artigos e livros. O mais recente é Monasticism in Eastern Europe and the Former Soviet Republics. Colaborou com vários órgãos de informação, incluindo a Radio Tirana (Albânia) durante a Guerra Fria; a Rádio Vaticano e a EWTN em Roma durante as revoltas na Europa de Leste dos anos 90, a Voice of America e a Relevant Radio, nos EUA.

(Publicado pela primeira vez no Sábado, 2 de Outubro de 2021 em The Catholic Thing)

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