Wednesday, 27 October 2021

Conhecimento que Cega

Pe. Paul Scalia

O “Peitoral de São Patrício” contém uma oração curiosa a invocar o poder de Deus “contra todo o conhecimento que cega a alma do homem”. Às vezes é traduzido como o conhecimento que “corrompe”, que “agrilhoa” ou que “profana”. Seja qual for o termo, o ponto permanece e é contrário ao modo de pensamento da nossa cultura. Nós vivemos de acordo com a noção simplista de que “Conhecimento é poder”. Não conseguimos imaginar um conhecimento mau.

Mas São Patrício sabia melhor. Ele sabia que temos de ser defendidos contra aquele “conhecimento” que não só não nos ajuda, como ameaça. É um conhecimento que promete visão, mas resulta em cegueira.

Pelo menos o cego Bartimeu, cuja história ouvimos no Evangelho do passado domingo, sabia que era cego. Foi esse conhecimento que o levou a clamar: “Jesus, Filho de David, tem piedade de mim”. A cegueira dele era saudável, na medida em que o levou a procurar uma cura. Mas a cegueira causada pelo nosso próprio conhecimento é outra coisa. Cega enquanto afirma dar-nos visão e por isso deixa-nos cegos para a nossa cegueira.

Pensemos por exemplo na mentalidade contraceptiva. Com a aceitação generalizada do uso de contracepção pensávamos que tínhamos obtido um conhecimento e uma sabedoria melhores que as dos nossos antecessores. De facto, a mentalidade contraceptiva cegou-nos para aquilo que os nossos antepassados bem sabiam: as verdades sobre o homem, a mulher, a sexualidade e o casamento.

Se a procriação pode ser eliminada da relação sexual, porque é que esta deve ser reservada ao casamento? Para que é que precisamos do casamento? Aliás, por que razão deve este acto ser restringido a um homem e uma mulher? E uma vez que a contracepção rejeita aquilo que é distintivo do homem e da mulher (a sua capacidade para procriar), porque havemos de pensar que ser homem ou mulher significa algo, ou é sequer uma realidade? Assim vemos que nos tornámos cegos a verdades que outrora eram bem conhecidas.

A mentalidade contraceptiva está ligada a outro conhecimento que cega, a ideia moderna de que a liberdade significa a capacidade de fazer o que me apetece. Segundo esse entendimento, a liberdade requer a rejeição de todos os limites. Claro que quando removemos os limites às coisas elas perdem o sentido. As coisas apenas têm sentido na medida em que são limitadas. O ilimitado não é liberdade, e falta de sentido. Quando insistimos nesta liberdade cegamo-nos ao nosso próprio sentido e assim abrimos a porta à dissolução que agora vemos.

Depois temos o conhecimento cegante do “cientismo”. No seu devido lugar, a ciência é um instrumento útil. Mas o cientismo, por outro lado, é autoritário. O cartaz anuncia: “A Ciência é Real”. Mas o que isso significa na realidade é que mais nenhuma forma de conhecimento será aceite como real. É tanto uma afirmação como é uma ameaça. O cientismo fornece a narrativa de que o homem estava na escuridão e ignorância até que a revolução científica o salvou. Desde esse momento salvífico, somos todos mais sábios. Dominámos o mundo (não obstante as pandemias). Claro que tudo o que o cientismo faz é truncar o próprio conhecimento. Os nossos antepassados reflectiam sobre o físico e o espiritual, o temporal e o eterno. O cientismo confina-nos ao físico e temporal. O único verdadeiro conhecimento (A Ciência é real!) é aquilo que podemos medir e quantificar. Longe de iluminar, isso cegou-nos para todo um campo de visão. A narrativa dualista (velho mau/novo bom) criou um preconceito nas nossas mentes, tornando-nos hostis a qualquer conhecimento ou verdade que tenha havido antes.

O pior é que o “conhecimento” do cientismo nos cega quanto à verdade de nós mesmos. Enquanto corpos com alma somos mais do que o cientismo pode estudar. Ele reduz o nosso propósito e sentido apenas a este mundo. Tornamo-nos assim apenas mais um objecto físico a estudar, manipular e aperfeiçoar. Deixámos de conseguir compreender-nos a nós mesmos.


O cego Bartimeu mostra-nos como se pode sair da cegueira. Primeiro, e mais importante, ele mostra que a fé conduz à visão. “A tua fé te salvou”, diz-lhe o Senhor. A sua fé permite-lhe ver. Ao contrário do mito moderno, a fé permite-nos conhecer. Nas palavras de João Paulo II, “a fé purifica a razão e abre horizontes que, por si só, a razão nunca poderia considerar”.

Bartimeu mostra também que a visão requer uma certa pobreza. Quando ele ouviu que o Senhor o estava a chamar “largou a sua capa e, de um salto, pôs-se de pé e foi ter com Jesus”. A capa representava a totalidade das suas posses. Mantinha-o quente quando estava frio e talvez servisse de almofada quando se sentava para pedir. Mas a capa não era mais importante que a visão. Ele está disposto a largá-la para poder correr, livremente, em direção à cura.

A liberdade da cegueira requer pobreza, a disposição para perder a nossa riqueza e o suposto controlo. No Sul, no Século XIX, os benefícios financeiros da escravatura cegaram os homens para o grave mal dessa instituição. Da mesma forma nós temos criado vidas autónomas e confortáveis em torno do cientismo, uma noção falsa da liberdade e a mentalidade contraceptiva.

A capa que usamos é pesada, não é fácil descartarmo-nos dela. Mas só vamos conseguir recuperar a nossa visão quando estivermos dispostos a purgar-nos de tudo o que o nosso “conhecimento” nos deu. Resumindo, o nosso problema não está ao nível do intelecto, mas da vontade. Temos de estar dispostos a mudar radicalmente as nossas vidas para poder ver claramente.

Precisamos de ver. Precisamos de ser curados da nossa cegueira. Seguindo o exemplo Bartimeu, descartemo-nos da nossa falsa autonomia e riqueza, e corramos em direção ao Senhor, com aquela simples oração nos lábios, “Senhor, que eu veja.”


O Pe. Paul Scalia (filho do falecido juiz Antonin Scalia, do Supremo Tribunal americano) é sacerdote na diocese de Arlington e é o delegado do bispo para o clero. É autor de That Nothing May Be Lost: Reflections on Catholic Doctrine and Devotion e coordenador de Sermons in Times of Crisis: Twelve Homilies to Stir Your Soul.

(Publicado pela primeira vez no domingo, 24 de Outubro de 2021 em The Catholic Thing

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