Wednesday 21 October 2020

A “Intolerável” Amy Barrett

Stephen P. White
Estamos a assistir esta semana a um estranho ritual nos Estados Unidos. Os senadores estão, um por um, a transformar pontos de discussão em “sound bites” e clips de vídeo que mais tarde serão inseridos em anúncios de campanha e vídeos de angariação de fundos. A razão para este rito enfadonho é o processo de aprovação de uma candidata ao lugar vago no Supremo Tribunal: a juíza Amy Coney Barrett. Estas audições de confirmação tornaram-se hoje em dia uma farsa.

A juíza, por sua vez, tem demonstrado graça e paciência, bem como episódios de brilhantia jurídica durante os procedimentos. Se for confirmada, a juíza Barrett será a sexta católica no Supremo Tribunal. A fé católica de Barrett – e a sua pertença ao grupo carismático ecuménico “People of Praise” – tem sido tema de muita discussão desde que ela foi nomeada e confirmada como juíza federal em 2017

Durante essa audição a senadora Diane Feinstein afirmou que “o dogma vive bem alto” em Amy Coney Barrett, que é mãe de sete filhos. Barrett tem sido sujeita a uma torrente de abuso e gozo na internet e em grande parte da imprensa.

A Constituição proíbe que alguém seja sujeito a uma prova religiosa para se candidatar a um cargo. Mas a “intensidade” das crenças continua a ser importante para alguns. Os católicos são bem-vindos, dizem, desde que as suas palavras e acções não proclamem certos dogmas demasiado alto.

A fé característica de Barrett – e a preocupação que causa entre os defensores de certas piedades seculares – é refrescante, mas também sublinha a indistinção de tantos católicos que ocupam cargos políticos.

A verdade desconfortável é que “ser católico” nos Estados Unidos já não indica uma abordagem política distinta. Mais preocupante até, do ponto de vista católico, é o facto de que “ser católico” na América já não é indicativo de um conjunto característico de práticas religiosas. Aliás, o “mero” facto de alguém ser católico, hoje, diz-nos quase nada sobre o conteúdo das suas crenças religiosas.

James Joyce escreveu que “católico significa ‘cá vem toda a gente’” e isso é uma boa lembrança de que a nossa tribo sempre foi conhecida pela sua variedade, cheia de santos e de pecadores. Ainda assim, o estado da crença católica nos Estados Unidos, e por isso o estado da vivência católica na praça pública, parece estar particularmente degradada hoje em dia. É por isso que “católico” é usado tantas vezes em conjunto com outro termo: católico liberal, católico conservador, católico de João Paulo II, católico do Papa Francisco, católico na tradição jesuíta, etc., É necessário usar os outros termos para que a palavra tenha algum significado característico.

Mas isso deve fazer-nos pensar, sobretudo quando os aplicamos a nós próprios sem pensar no assunto. Recordem-se de como Paulo ralhou com os coríntios por pensarem de forma mundana: “Quando alguém diz, ‘eu sou de Paulo’ e outro ‘eu sou de Apolo’, não são apenas humanos?”


É interessante perguntar como é que chegámos a isto. Pode-se apontar para outras ideologias, de esquerda ou de direita, que aos poucos foram despindo as características próprias da vida católica neste país. (Se pensarmos, como muitos pensam, que quatro anos a justificar o mau comportamento deste Presidente corrompeu a consciência de alguns católicos, imaginem os efeitos de justificar o apoio ao aborto ao longo de 40 anos).

Pode-se apontar para os anos depois do Concílio Vaticano II, quando a disciplina sacramental colapsou por entre a confusão social e cultural. Pode-se culpar os bispos, que abdicaram da sua responsabilidade de ensinar e governar, deixando os seus rebanhos afastar-se impunemente. Pode haver um grão de verdade em cada uma destas explicações.

Mas temos de estar dispostos a reconhecer que os católicos nos Estados Unidos perderam a sua identidade característica não por causa de algo que nos aconteceu, mas porque optámos.

A Elizabeth Bruenig, que é católica também, escreveu recentemente sobre as consequências involuntárias de gerações de católicos a tentar fazer-se em casa numa América protestante que, durante muito tempo, os olhava com desconfiança. Em suma, perdemos a nossa identidade católica porque nos queríamos encaixar. “Talvez os católicos tenham merecido o direito à indistinção, o privilégio de se poderem integrar perfeitamente na paisagem social e política dos Estados Unidos, a liberdade de não terem quaisquer obrigações morais. E que liberdade tão incaracterística, vasta e estéril que é”.

Como em qualquer outro lado, os católicos americanos são moldados pelas suas circunstâncias. Para os católicos na América isto significa uma cultura que em tempos era dominada pelo protestantismo e dedicada, em larga medida a um credo político (liberalismo) em relação à qual a Igreja tem tido há muito uma relação de desconfiança. O bravado e o individualismo americano podem ter servido os primeiros imigrantes e alimentado o espírito pioneiro. Mas estas mesmas características americanas revelaram-se particularmente corrosivas para os cidadãos de uma superpotência tão rica e tecnológica como a nossa se tornou, especialmente nos anos depois da II Guerra Mundial.

E o efeito na fé católica também tem sido corrosiva. Chamem-lhe inculturação, chamem-lhe sincretismo ou chamem-lhe, como o Papa Francisco, o triunfo do “paradigma tecnocrático” que nos levou a crer que a ordem na sociedade humana depende do exercício tecnocrático do poder, quando na verdade se trata do fim próprio da existência humana, tanto natural como sobrenatural.

Se ser católico não for um sinal de contradição para as ortodoxias mundanas do nosso tempo, então certamente estamos a fazer algo de errado. Se olhamos para a Igreja como uma ONG compassiva, como já avisou o Papa Francisco, então não é Cristo que estamos a proclamar, mas uma “mundanidade demoníaca”. Se a nossa fé católica for indistinguível do espírito do tempo, então somos como sal que perdeu o seu sabor.

E isso traz-nos de volta ao teatro que são as audições de confirmação no senado. As audições não têm a ver com justiça nem com as qualificações do nomeado, são sobre poder. Poder sobre a vida, poder sobre a família, sobre a sociedade, sobre a natureza e sobre a Igreja. Os seus opositores crêem que a juíza Barrett – pelas prioridades que escolhe e, sim, pelos dogmas que proclama – é um obstáculo intolerável ao seu exercício desse poder.

Tomara que mais de nós católicos fossem assim tão intoleráveis. O nosso país ficava a ganhar.

 

Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no Centro de Ética e de Política Pública em Washington.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Quinta-feira, 15 de Outubro de 2020)

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