Wednesday, 14 October 2020

O Propósito de Fratelli Tutti

Michael Pakaluk
Compreendo as queixas em relação à mais recente encíclica do Papa Francisco, Fratelli Tutti. Tenho muitos amigos que partilham delas. Dizem que é demasiado longa, que a escrita não é clara, que ataca uma caricatura do mercado livre, que não dá importância suficiente à amizade que normalmente se manifesta numa relação empresarial, que parece menorizar os horrores do aborto enquanto trata a pena de morte como se fosse um mal intrínseco e que parece defender mais regulação e um estado mais interventivo, sem reconhecer as ameaças morais e os riscos para a liberdade, e por aí fora.

Espero que este primeiro parágrafo confirme a minha boa fé e comprove que este artigo não é um exercício daquela já há muito abandonada prática de explicar o Papa.

Não obstante, creio que muitas destas queixas (menos a de ser demasiado longa!) se baseiam numa incompreensão do propósito da encíclica. Deixem-me então explicar o que considero ser este propósito.

Pensemos nas primeiras linhas do Lumen Gentium, o documento base do Concílio Vaticano II: “A luz dos povos é Cristo: por isso, este sagrado Concílio, reunido no Espírito Santo, deseja ardentemente iluminar com a Sua luz, que resplandece no rosto da Igreja, todos os homens, anunciando o Evangelho a toda a criatura. Mas porque a Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano, pretende ela, na sequência dos anteriores Concílios, pôr de manifesto com maior insistência, aos fiéis e a todo o mundo, a sua natureza e missão universal.” [Itálicos meus]

Pensando bem, essa última frase é muito estranha. A Igreja deve desempenhar o seu papel como sinal e instrumento de união com Deus e de união com todo o género humano, manifestando a todo o mundo a sua natureza? Porém, se voltarmos a ler o livro do então Cardeal Wojtyla sobre a implementação do Concílio na arquidiocese de Cracóvia, “Fontes de Renovação”, veremos que ele viu esta ideia como a chave de interpretação de todo o Concílio. Podemos argumentar até que serve como chave de interpretação de todo o seu pontificado.  

“A sua mensagem foi esta”, disse o Papa Bento, na homilia da beatificação, “o homem é o caminho da Igreja, e Cristo é o caminho do homem.”

Suponhamos então que Francisco entende, compreensivelmente, que esse desafio foi conseguido em larga medida pelas exposições de João Paulo II sobre o Concílio, ao longo de 27 anos. Depois faz sentido que se entenda que Francisco está, por assim dizer, a tomar o caminho mais direto e natural rumo à unidade do género humano, ou seja, pregar diretamente sobre o assunto! A sua autoridade neste campo deriva, claro, do facto de ser Vigário de Cristo. O mandato vem do Concílio. Está tudo na ordem correta.

Contudo, um crítico poderá contrapor que Francisco apenas lida com a primeira parte da premissa, do homem enquanto caminho da Igreja. Em “Fratelli tutti” Há pouco, ou nada, sobre a salvação em Cristo.

Entendo. Mas em resposta eu diria a essa pessoa que não prestou atenção suficiente à disputa que ocorreu sobre as palavras iniciais da encíclica, “a todos os meus irmãos”. O Papa Francisco insistiu que estas palavras se mantivessem, apesar das queixas de muitos amigos “progressistas” que as achavam patriarcais, opressivas e insuficientemente inclusivas. Porque não, pelo menos, “a todos os meus irmãos e irmãs”?

A razão é que Francisco queria que toda a encíclica ficasse ligada às Admoestações de São Francisco de Assis. As palavras iniciais ficaram tais como estão porque são uma citação da VI Admoestação.

Permitam-me que cite dessa admoestação: “Consideremos, irmãos todos, o bom pastor, que para salvar suas ovelhas sofreu a paixão da cruz.” Falta Cristo? Como assim?

Mais, ao citar as Admoestações desta forma, Francisco “incorpora por referência”, como diriam os advogados. Cliquem na ligação acima e observarem a riqueza da vida sacramental e o misticismo transmitidos pelas Admoestações como um todo. Suponho que o Papa Francisco poderia, em vez disto, ter saltado para cima e para baixo, gritando, “posso falar nestes termos porque estou a apoiar-me nos tesouros espirituais de São Francisco”.


Ou, poderia ter dito aos católicos que temos muito mais obrigações de viver os ensinamentos da encíclica do que outros: observem a espiritualidade de São Francisco. Mas não é propriamente difícil chegarmos até aí sozinhos, pois não?

Enquanto professor de Ética e Filosofia Social numa universidade católica, acho fascinante a forma como a encíclica recorre à expressão “amizade social” em vez da habitual “justiça social”. Não consegui encontrar uma única referência a “amizade social” no Catecismo, nem no Compêndio da Doutrina Social da Igreja. Temos aqui um desenvolvimento significativo da tradição do pensamento social.

A justiça não chega para a unidade social, por causa da sua ênfase na imparcialidade, que se torna, na nossa cultura, “autonomia” e “individualidade”, por causa da atenção dada a males passados e à forma como encoraja a revolta.

Ao contrário de “justiça social”, falar em amizade ajuda-nos a considerar que as culturas e as instituições são subsidiárias à sociedade política. O Papa Francisco aponta nessa direção com esta encíclica, com a sua forte preocupação com o “local” e as críticas incisivas aos abusos das redes sociais.

Mais, a mera “justiça social” deixa sem resposta a questão da motivação: como, para além de revolta, sentimentos de crise e pressão social (politicamente correcto) é que as pessoas podem ser motivadas a trabalhar para a “justiça social? Então, por todas estas razões, a justiça social é insuficiente.

Mas se o homem procurar amor e amizade, não encontrará Cristo?

 

Michael Pakaluk, é um académico associado a Academia Pontifícia de São Tomás Aquino e professor da Busch School of Business and Economics, da Catholic University of America. Vive em Hyattsville, com a sua mulher Catherine e os seus oito filhos.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 13 de Outubro de 2020)

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