T. Franche dite Laframboise |
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Recentemente uma colega desafiou-me para ir ver os restos mortais de um padre santo, o que, para um católico, devia ser uma coisa normal. A tradição solene de venerar as relíquias dos santos tem antigas e profundas raízes. Mas o convite que me chegou por email assumia a forma de uma pessoa a explicar cuidadosamente ao mundo que os católicos não são de todo estranhos, enquanto procurava saber se certas relíquias em tournée estavam a distância de serem visitadas.
Compreendi a ironia.
Ela sabia que, há vários anos, eu me tinha candidatado a
uma bolsa de investigação para tentar perceber porque é que as pessoas
continuavam a ir ver os “Incorruptíveis” em Roma. Era por devoção ou por
curiosidade macabra? Foi preciso dar muito mais explicações do que eu
imaginara, porque a comissão simplesmente não fazia ideia que tais coisas “ainda
existiam”.
A veneração de restos mortais de santos é vista por
muitos como um resquício bizarro, impossível de justificar por pessoas
modernas. A tradição pode ter milénios, mas os tempos e as crenças mudaram. Num
mundo em que a ciência, segundo nos dizem, tem explicações para tudo, os corpos
já não carregam nem mistério nem importância. São modificados e vendidos como
bens, mutáveis e alteráveis, algo a transcender e a substituir.
Mas os corpos são importantes, tanto em vida como na
morte. A antiga Igreja reconheceu isto desde logo. O que fazemos afeta o mundo
material e transforma o corpo, para bem ou para mal. Deixar o poder de Deus
fluir através de uma pessoa carrega com santidade a própria matéria de que é
feita.
A Igreja estimava os restos mortais dos santos porque
conhecia esta verdade. As Escrituras mostram-nos como os tecidos que tinham
tocado na pele de Paulo eram usados para expulsar demónios e curar doenças
(Actos 19,12) e como as pessoas acreditavam que a própria sombra de Pedro os
poderia curar (Actos 5,15). Mostram até como os ossos de Eliseu reavivaram um
morto que tinha sido sepultado ao seu lado (2 Reis 13,21).
Mas há mais a ter em conta aqui. Os corpos também têm
importância comunitária. Isto tem menos a ver com milagres e mais a ver com a
manutenção de identidade e relações. Quando os fiéis recuperaram os ossos de
Policarpo, “mais preciosos que joias”, e os depositaram num local condigno, foi
já com a ideia de se juntarem anualmente para celebrar o seu martírio e se
prepararem para enfrentar a mesma prova. Policarpo mantinha-se assim vivo e
capaz, mesmo na morte.
Não restou grande coisa de Inácio de Antioquia depois de
ter sido despedaçado por feras, mas a Igreja juntou o que pôde e alegrou-se por
poder levar de volta a Antioquia um verdadeiro tesouro, recebido pela graça de
Deus. Voltou para o seio do seu povo, um membro ainda vivo da sua comunidade.
A Escritura mostra-nos ainda que José, antes de morrer,
obrigou os filhos de Israel a jurar que quando saíssem do Egipto levariam com
eles os seus ossos (Gen. 50,25). Assim fizeram, sepultando-os junto aos seus
antepassados, sim, mas no meio deles.
São Jacques Marquette |
O corpo é, de facto, importante, e o que fazemos com ele –
na vida ou na morte – interessa. Apesar de se dizer que certas religiões são “Povos
do Livro”, isto não é verdade. Não fomos fundados sob um livro; temos um livro.
Na verdade somos fundados sobre um Corpo. Somos membros dele. Salvos por Ele. Vivemos nele. Não deve admirar,
portanto, que a Igreja preserve os restos dos seus santos e construa Igrejas
sobre os seus ossos, pois eles permanecem membros vivos do Corpo de Cristo.
Mas esta crença pode-se perder e, com ela, a identidade e
a comunhão que formamos como Corpo. As pessoas raramente fazem peregrinações.
As paróquias não sabem que relíquias possuem, se é que as possuem. Até a crença
na Presença Real na Eucaristia está em declínio. Estas coisas estão ligadas. Os
corpos deixaram de interessar.
Dou-vos um exemplo recente: O meu pai tinha uma forte
devoção ao Père Jacques Marquette, o grande missionário francês do Século XVII.
Era uma coisa dele, e antes de morrer queria ter visitado a sua campa, no
Michigan, mas adoeceu e isso tornou-se impossível.
Mais tarde vieram parar-me às mãos cartas – velhas e
frágeis – do padre Edward Jacker, escritas em 1886, que narravam a descoberta
dos restos mortais de Marquette em Point Saint-Ignace, uns anos antes.
Marquette morreu e foi sepultado lá em 1675. Em 1677 os
índios Kiskakon estavam a caçar nas proximidades e quiseram visitar o seu pai
espiritual. Tal como os israelitas tinham feito com José, juntaram os seus
ossos e levaram-nos, solenemente, para serem sepultados na capela de
Saint-Ignace. O seu corpo era importante. Era importante para eles como
comunidade. O Pe. Jacker escolheu os fragmentos maiores para doar à
recém-criada Marquette College e sepultou o resto em Saint-Ignace.
A história fascinou-me e sempre que me encontrava com
jesuítas de Marquette perguntava-lhes onde estavam os seus restos mortais. Numa capela? Na comunidade privada? Ninguém
me sabia responder. A maioria respondia-me que a sua sepultura está no
Michigan. Perplexa, fui aos arquivos, procurando algum indício que me pudesse
ajudar. A senhora atrás do balcão disse-me que não seria necessário, os restos
mortais do santo estavam preservados no arquivo, por detrás de si. A comunidade
jesuíta tinha pedido que não fossem vistos. Estaríamos a falar da mesma
comunidade que não sabia sequer que lá estavam?
Permitam-me expressar, não uma crítica, mas uma prece. Que
nos recordemos das nossas relíquias sagradas. Jacques Marquette está vivo e pode interceder
por nós. É um padroeiro a quem devemos recorrer. Devemos honrar o seu corpo.
Agora que entramos na Quaresma, recordemos as razões pelas
quais valorizamos esses restos morais e os mantemos entre nós. Não corremos só
o perigo de perder o rasto aos seus corpos, mas de nos esquecermos da raiz da
nossa verdadeira identidade, enquanto Corpo de Cristo.
Dieu n’a pas voulu permettre qu’un deposit si
pretieux, demeurast au milieu des bois sans honneur et dans l’oubly. («Deus não quis permitir que
tão precioso depósito permanecesse no meio da floresta, esquecido e sem honra»)
[Vol. 59 Jesuit Relations and Allied Documents]
T. Franche dite Laframboise é escritora, oradora e
estudante de Sagrada Escritura, com licenciaturas de Marquette e de Notre Dame.
É especializada em
antropologia teológica e exegese patrística. Considera-se uma académica
em recuperação e está a trabalhar no seu mais recente livro, sobre a data da
Última Ceia no Evangelho de São João.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no
domingo, 3 de março de 2019)
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