Isto sim, corpos verdadeiros, em toda a sua beleza |
Recentemente uma amiga perguntou-me se podia levar o meu
filho mais velho, que está aprender agora sobre os diferentes sistemas do corpo
humano, à exposição Real Bodies, na Cordoaria Nacional.
Agradeci, disse que sabia que tinha a melhor das
intenções, mas que não queria que o meu filho fosse a essa exposição e que eu
não seria visto lá morto, quanto mais vivo.
Não tenho nada contra o corpo humano, pelo contrário, a
minha objecção vem de ter muito a favor do corpo humano e de sentir que a
exposição não o trata com a dignidade que merece e que tem, mesmo depois de
morto.
O grande problema desta exposição é precisamente aquilo
que ela apresenta como sendo o seu principal trunfo: Os corpos são verdadeiros.
E no meu entender o corpo é algo que não deve ser objecto de exposição
cultural, precisamente porque o corpo não deve ser objecto de comércio.
Porque é disso que se trata. Quem vai à cordoaria paga um
valor para obter algum tipo de satisfação a partir da exploração de um corpo
que não é o seu. Podem chamar-lhe o que quiserem. Eu chamo-lhe prostituição
cultural.
O problema da prostituição não é apenas a procura do
prazer sexual de uma forma desregrada, se fosse estaria ao mesmo nível que a
masturbação. O problema da prostituição é a redução de uma pessoa, de uma filha
ou de um filho muito amado por Deus, a um objecto. É a diminuição de um ser
humano a algo transaccionável. É isso que o “Real Bodies” faz.
A nossa dignidade é inerente à nossa condição humana e
não termina com a nossa morte. Não nos é lícito pintar bigodes nos cadáveres
dos nossos amigos nem embalsamar os seus membros para colocar por cima da
lareira. O Cristianismo herdou do Judaísmo, e tem sublinhado sempre, que os
restos mortais não são apenas lixo, ou a casca que deixamos para trás quando a
alma vai para o Céu. Todos os domingos os cristãos afirmam a sua crença na
Ressurreição dos Corpos no fim dos tempos porque este corpo que possuímos, que
nos limita mas que é fonte inesgotável de alegria e do prazer que vem de
vivermos em comunidade, da mais alargada à mais íntima, é igual àquela em que
Cristo achou por bem encarnar.
Respondem-me os cépticos que as pessoas que estão no Real
Bodies doaram os seus corpos para o efeito. E depois? Muitas prostitutas são
escravas do tráfego humano, mas outras estão lá porque querem. Isso não torna a
prostituição menos degradante e condenável. Pelo contrário, o facto de haver
pessoas que sentem que a única forma de dar algum sentido à sua morte é serem
plastificados, ou seja lá como se chama a técnica, e expostos para serem
observados por turistas e curiosos para o resto da vida, é verdadeiramente
triste e preocupante.
E o aspecto científico? Concordo que é perfeitamente
lícito o estudo de cadáveres para fins científicos, seja de pesquisa, seja de
aprendizagem. Mas não brinquem comigo, não é isso que se passa na cordoaria. De
resto acho que é natural que mesmo um cadáver que seja doado para estudo
científico seja depois dignamente sepultado.
Cada vez mais me convenço que um dos grandes problemas do
mundo é a dessacralização do corpo humano, com uma sociedade que nos diz que o
que interessa não é o corpo que temos, mas o que gostaríamos de ter; que os
corpos dos nossos filhos são, nem que seja só até às 10 semanas, nada mais que
“aglomerados de células”; cada vez mais ouvimos pessoas a dizer que querem ser
cremadas para que os seus restos mortais não fiquem “a ocupar espaço”; a
prostituição é legalizada, como se o problema naquela prática fosse apenas a
falta de higiene; as nossas ideias de homem e de mulher são agora baseados em
modelos totalmente artificiais promovidos pela comunicação social e a
pornografia se tornou omnipresente.
Não somos almas numa carapaça descartável. Somos corpo e
alma. Quando tudo à nossa volta nos diz que a nossa dimensão física de nada
vale, sobretudo se não for fisicamente perfeita, isso desvaloriza a nossa humanidade.
Exposições como o Real Bodies não são o principal
problema, são sintomas do principal problema e se alguns sintomas temos de
aguentar, há outros que só contraímos se quisermos.
Eu preferia morrer do que ver um filho meu plastificado,
montado e exposto para diversão das multidões. Cada uma das pessoas na
exposição Real Bodies é filho de alguém, tão digno como eu e como os meus
filhos. Não tomarei parte no festival da sua degradação.
Filipe d'Avillez
Filipe d'Avillez
Filipe,
ReplyDeleteTencionava ir à exposição com os meus netos. Apesar do título da mesma, não percebi, porventura pelas mesmas razões que o levaram a escrever este artigo,que se trata de corpos verdadeiros. Ainda estou com dificuldade em acreditar que uma tal exposição esteja a ter lugar. Venho dar-lhe os parabéns pela força e clarividência das suas palavras. Com todo o respeito e interesse que tenho pela Actualidade Religiosa, que sigo diariamente, acho que este seu texto deveria ser divulgado também noutros media. Um beijo, Ana Ulrich
Muito bem!
ReplyDeleteAbraço
Rodrigo