Wednesday, 27 March 2019

“Cantare, Amantis Est”

James V. Schall S.J.
A frase de Santo Agostinho “Cantare, amantis est”, foi usada como título de um dos pequenos clássicos do autor Joseph Pieper, que são tão ricos. O título em português também é muito belo – “Só quem ama canta”*. Recordo-me de ler algures que os passarinhos cantam mais do que seria necessário para viverem no dia-a-dia e se reproduzirem. A realidade está cheia de uma abundância de coisas aparentemente desnecessárias, sem as quais passaríamos perfeitamente. Mas temo-las, todavia, e embelezam a nossa existência. Foi-nos dado mais do que precisamos. A realidade não é parcimoniosa. Isso interroga-nos, e deixa-nos felizes.

Porque é que cantamos e dançamos? Chegamos a um ponto em que tanto a prosa como o estar sentados nos parecem insuficientes. Porque é que a noiva dança com o seu marido e com o seu pai no casamento? Dizemos que os anjos estão organizados por coros. Louvam e glorificam a Deus. Mas será que Ele precisa da sua música para ser glorificado? Precisa de nós para o glorificarmos? Deus encontra-se para além da categoria de “necessidade”. Ele já existe na glória.

Deus não precisa de nós para completar qualquer tipo de ausência na sua vida trinitária. A “vida” de Deus não seria menos sujeita a dúvidas se Ele não precisasse de explicar porque é que trouxe seres humanos finitos e obviamente falíveis para o seu mundo? A maior acusação que costuma ser feita a Deus é: “Se Ele não queria que pecássemos, então porque é que se deu ao trabalho de nos criar?”

A existência do pecado numa criação boa significa que Deus tinha outra coisa em vista. Ele não queria que pecássemos, certamente; mas também não queria não nos criar, apesar de saber que pecaríamos. Por isso nos criou. Homem e mulher Ele nos criou. Calculou que pecássemos. Arcou Ele próprio com as consequências, no seu Filho.

A resposta a esta questão perene e paradoxal do pecado deve estar no “Cantare, amantis est”, de Agostinho. A última palavra do Deus/homem não foi lidar com os nossos pecados, embora essas tenham sido as suas últimas palavras na Cruz.

No Livro da Sabedoria lemos: “Tu amas tudo quanto existe e não detestas nada do que fizeste” (Sabedoria 11, 24). Este amor por tudo o que existe também incluiria, naturalmente, o amor por aqueles que acabaram por O rejeitar, o que é sempre uma possibilidade. Deus não pode “obrigar” alguém a amá-lo contra a sua vontade. De que serviria?

A Dança de Míriam
Numa passagem de Teoria dos Princípios Teológicos (1987), que faz lembrar tanto Martin Buber como Joseph Pieper, Ratzinger escreve: “A chave do eu está no tu; a chave do tu através do eu. Chegamos assim à pergunta mais importante. Será verdade, então, quando alguém me diz: ‘É bom que tu existas?’”. Só pode ser verdade se a minha existência e a sua existência forem elas mesmas fruto da vontade de uma Existência que é em si mesma boa, que seja incapaz de não existir. Caso contrário, as nossas existências e os nossos amores são apenas passageiros.

No Salmo 13 lemos: “Cantarei ao Senhor, porquanto me tem feito muito bem”. A linguagem do amor afirma que “É bom que tu existas”. A linguagem da amizade acrescenta que “é bom que existamos conhecendo-nos”. A linguagem da verdade afirma: “É verdade que tu existes”. A linguagem da criação afirma que “Tu e eu existimos ambos, ainda que a nossa existência não seja necessária”. A linguagem dentro da Trindade fala de “vida eterna”.

No livro de Judite somos convidados a “entoar um cântico ao nosso Deus com tamborins, cantar ao Senhor com címbalos. Entoai-lhe salmos e louvores, exaltai e invocai o seu nome. Cantarei a Deus um cântico novo: Senhor, sois grande e glorioso, de admirável poder, invencível” (Judite 16) e no Salmo 47 “o Senhor subiu ao som de trombeta. Cantai louvores a Deus, cantai louvores; cantai louvores ao nosso Rei, cantai louvores.”

Há muitas referências musicais nas escrituras mas, para além do cantar dos anjos do alto, na Natividade, vemos muito poucas no Novo Testamento. Quando Cristo visita a sinagoga em Nazaré, Ele “lê” Isaías. Não entoa nem canta. Não me recordo de ver referências a instrumentos nas bodas de Caná.

“O ser humano começa de novo em cada homem”, escreveu Ratzinger em 1979: “O sucesso da geração anterior não pode ser simplesmente transferido para a vindoura. Cada geração pode e deve tirar proveito do que foi alcançado antes. Mas cada geração deve também sofrer, suportar e ganhar para si mesma o estado de ser humano”.

Cada vida humana começa na escuridão do Verbo. “No final, apenas quem ama o canta”.


*Não consegui encontrar referência a uma versão portuguesa, mas traduzi assim porque o mais próximo que encontrei, em espanhol, é “Solo quien ama canta”.


James V. Schall, S.J., foi professor na Universidade de Georgetown durante mais de 35 anos e é um dos autores católicos mais prolíficos da América. O seus mais recentes livros são The Mind That Is CatholicThe Modern AgePolitical Philosophy and Revelation: A Catholic Reading, e Reasonable Pleasures

(Publicado pela primeira vez na terça-feira, 26 de Março de 2019 em The Catholic Thing)

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