Michael Pakaluk |
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Se visitar a cidade de St. Andrews, na Escócia, a um
domingo, verá que o famoso campo de golfe está encerrado nesse dia para o
desporto, estando disponível para quem quiser passear. Esta tradição é um
legado de John Knox para o mundo. O austero reformador estava errado quando
decidiu proibir jogos ao domingo. Mas por outro lado parece eminentemente justo
que até o golfe deva testemunhar que existe algo maior. Seja como for, o campo
transforma-se em parque público uma vez por semana.
Certo domingo eu estava lá a andar, com alguma rapidez, e
a aproximar-me de um grupo algumas centenas de metros à minha frente. Chocado,
reparei que um dos homens do grupo estava a despejar os restos do seu almoço na
relva. Metia a mão dentro de um saco e, a intervalos regulares, lançava o que
pareciam ser migalhas para o chão. Pelo menos era o que parecia àquela
distância. Fiquei irritado e andei ainda mais depressa para poder dizer ao
homem para não estragar, através desta inconsciência, o bem comum que é este
belíssimo terreno.
Quando me aproximei, porém, vi que o que ele tirava do
saco não eram migalhas mas restos humanos (“cinzas”). A minha fúria
transformou-se em pena. Quando os ultrapassei cumprimentámo-nos e o homem explicou
que o seu pai era um apaixonado por golfe e por isso ele e os seus irmãos
tinham viajado dos Estados Unidos para St. Andrews, para cumprir o desejo do
seu pai de ter as cinzas espalhadas naquela relva. Naturalmente não pude senão
dizer algo de simpático e encorajador.
Dei por mim naquela posição tão comum de saber objetivamente
que o meu próximo estava a fazer algo profundamente errado, mas de ter apenas a
oportunidade, numa troca superficial de palavras, de abordar as suas intenções
subjectivas.
E não haja dúvidas que aquilo que ele estava a fazer era,
objectivamente, muito errado. Em primeiro lugar, a minha primeira impressão não
tinha sido errada: o homem estava, de facto, a fazer o género de coisa que se
faz com os restos do almoço. Mas estava a fazê-lo com os restos mortais do seu
querido pai! Em segundo lugar, esses restos estavam a ser lançados ao chão,
expostos e, tanto quanto sabia, até eu os tinha pisado!
Nas palavras da antiga Enciclopédia Católica, no seu
artigo sobre “Cremação”: “[A Igreja] crê que é indigno que o corpo humano,
outrora templo vivo de Deus, instrumento de virtude celeste, tantas vezes
santificado pelos sacramentos, seja sujeito a um tratamento contra o qual a
piedade filial e o amor conjugal e fraternal, ou até a mera amizade, se
revoltam como desumano.”
Em terceiro lugar, os actos deste homem testemunhavam uma
falsidade. Não sei em que é que ele acreditava pessoalmente. Mas os nossos
actos têm frequentemente um significado, e testemunham, algo diferente daquilo
em que acreditamos. O espalhar das cinzas testemunha, inevitavelmente, o
panteísmo, o naturalismo ou o niilismo. Neste caso, era uma espécie de
panteísmo – a falsa crença de que o próprio campo de golfe é sagrado e que,
através do espalhar das cinzas, o falecido pai se pode unir de alguma forma a
este ídolo.
No que toca a estes pontos acho que o Catecismo, tal como
noutros, está correcto, mas pode levar ao engano por omissão. “A Igreja permite
a cremação”, lê-se, “a não ser que esta ponha em causa a fé na ressurreição”.
Podemos admitir logo que a ressurreição dos mortos não se
põe em causa pelo “modo do sepulcro” (como se costumava chamar). Os judeus
nunca cremavam os seus mortos. Os romanos estavam abertos tanto à cremação como
ao enterro. Neste contexto, os primeiros cristãos seguiam uniformemente e
definitivamente a prática judaica. Mas também insistam que não o faziam por
necessidade – “como se Deus não pudesse ressuscitar os mortos tão facilmente a
partir de uma mão cheia de cinzas como do pó da terra”.
É verdade que a cremação não é excluída. Mas ao mesmo
tempo, como se lê no Código de Direito Canónico, “A Igreja recomenda vivamente
que se conserve o piedoso costume de sepultar os corpos dos defuntos” (1176,
§3). Ou, como se lê no site da Conferência Episcopal dos Estados Unidos,
citando um documento do Vaticano: “Embora a cremação já seja permitida pela
Igreja, não goza do mesmo valor que a sepultura dos corpos” (n. 413). E mesmo
quando os restos são cremados, o corpo deve estar presente no funeral e os
restos devem ser preservados de forma digna e colocados num local santo, tal
como um cemitério.
É conveniente reflectir sobre estes assuntos no tempo
Pascal. Na verdade, o nome da instrução sobre cremação emitida pela Congregação
para a Doutrina da Fé a 15 de Agosto de 2016, aprovada pelo Papa Francisco, é Ressuscitar
com Cristo. A linguagem que usa é muito forte. “Seguindo a antiga tradição
cristã, a Igreja recomenda insistentemente que os corpos dos defuntos sejam
sepultados no cemitério ou num lugar sagrado.”
E continua: “Enterrando os corpos dos fiéis defuntos, a
Igreja confirma a fé na ressurreição da carne, e deseja colocar em relevo a
grande dignidade do corpo humano como parte integrante da pessoa da qual o
corpo condivide a história. Não pode, por isso, permitir comportamentos e
ritos que envolvam concepções erróneas sobre a morte: seja o aniquilamento
definitivo da pessoa; seja o momento da sua fusão com a Mãe natureza ou com o
universo; seja como uma etapa no processo da reincarnação; seja ainda, como a libertação
definitiva da ‘prisão’ do corpo.”
“Nada me dá mais prazer do que ir até ao cemitério rezar
o meu terço”, dizia o padre Damião de Molokai. E a instrução supracitada elogia
as devoções centradas nos cemitérios, terminando com uma nota de sobriedade. “No
caso de o defunto ter claramente manifestado o desejo da cremação e a dispersão
das cinzas na natureza por razões contrárias à fé cristã” – elevando a questão
do plano subjectivo para o objectivo – “devem ser negadas as exéquias, segundo
o direito.”
Michael Pakaluk, é um académico associado a Academia
Pontifícia de São Tomás Aquino e professor da Busch School of Business and
Economics, da Catholic University of America. Vive em Hyattsville, com a sua
mulher Catherine e os seus oito filhos.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na terça-feira, 15 de
Maio de 2018)
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