Wednesday 23 May 2018

Uma Viagem à Montanha Sagrada

John Farina
O Estado Monástico Autónomo da Montanha Sagrada é um dos locais mais peculiares do mundo. É uma civilização de monges, por monges, para monges. A península escarpada na costa leste da Macedónia sempre foi remota e selvagem. O Monte Athos situa-se no meio, a uma altura de 2000 metros. Para um lado e para o outro há montes muito íngremes, tornando a viagem muito difícil. Não se pode chegar aos mosteiros por terra, todos devem viajar por mar.

Aninhados ao longo da costa encontram-se os grandes mosteiros, aldeias de monges com muitas capelas, igrejas e residências, suficientemente grandes para que cada monge tenha a sua cela e, nos edifícios maiores, para albergar os milhares de peregrinos que todos os anos vêm em busca de iluminação. No seu auge, os mosteiros maiores tinham até 500 monges e os maiores, como o Grande Lavra e o Pantokratoros até criaram pequenas dependências, chamadas sketes, um nome que deriva do local no Egipto onde os Padres do Deserto deram início ao monasticismo no século III.

Eu cheguei ao Monte Athos com um grupo de académicos ortodoxos da Grécia e da Roménia, com quem já tinha estado em Véria (a “Berea” de São Paulo) numa conferência sobre São Gregório Palamas (1296-1356), um dos mais famosos teólogos associados à forma de oração seguida pelos monges de Athos. Palamas passou os seus anos de formação no mosteiro de Kallipetras, a viver em grutas ao longo do Rio Haliacom, na Macedónia central, não muito longe de Véria. Kallipetras nunca foi um mosteiro grande, mas Gregório foi o seu abade durante muitos anos.

Hoje apenas três monges vivem lá, todos com menos de 40 anos. Um é médico, outro é técnico de informática e todos falam não do jeito de Palamas enquanto administrador (mais tarde tornou-se bispo de Thessaloniki) mas da sua vida de oração. Dois dias por semana ele deixava o mosteiro e ia para um gruta na falésia. Reza a lenda que Gregório passava o fim-de-semana inteiro na câmara mais profunda. Os monges desciam-lhe pão e água através de um pequeno buraco. Mesmo ao meio-dia essa câmara é totalmente escura e silenciosa: Privação sensorial total durante 48 horas seguidas.

A gruta de Palamas
Porquê? Gregório acreditava que estava a praticar a oração do coração. Estava a levar à letra os conselhos do salmista David: “Aquietai-vos, e sabei que eu sou Deus” (Salmo 46,10). Deus fala-nos na quietude, ou hesychia em grego, dizia Gregório. A escuridão não conduziu a cegueira. Pelo contrário, era uma “escuridão resplandecente”. A luz que brilhava era como aquela que os apóstolos Pedro, Tiago e João viram no Monte Tabor quando Cristo se transfigurou.

Essa luz não é apenas uma metáfora para a iluminação espiritual, mas sim uma participação real na natureza divina. Deus partilha connosco as suas energias por causa do seu amor extático, através do qual somos transformados, assumindo uma natureza semelhante à de Cristo. Em Cristo, como disse Atanásio, Deus é feito homem, para que nós nos tornemos Deus.

Contudo, este partilhar da natureza divina não é uma forma de panteísmo, nem uma forma de autoexaltação em que reivindicamos, como na tentação de Eva por Satanás, o estatuto de deuses. É uma partilha em comum, a koinoneia, uma participação em conjunto no amor.

Deus mantém a sua transcendência. A sua essência não é partilhada, permanecendo desconhecida e desconhecível. A divina escuridão leva-nos para além do nosso conhecimento para uma iluminação, mas não é possível eclipsar totalmente o desconhecimento. Deus é tanto essência como energia, conhecido e desconhecido, presente e transcendente, acção e fundamento do ser.

Esta é a experiência dos santos. É por isso que são representados com auréolas, luz tabórica, que viram e que emana através deles. Mas as suas experiências não se reservam aos santos.

No Cristianismo ocidental não se pensa que as experiências místicas sejam limitadas a santos especiais. Não se devem procurar e não nos salvam. A pessoa comum ficaria confusa, por isso não devemos concentrar-nos muito nelas. No Oriente, contudo, é diferente, especialmente para aqueles que, como Palamas, insistem que a experiência da participação na natureza divina, a teósis, está aberta a todos e deve ser procurada por todos.

Hoje o hesicasmo é praticado na Rússia, na Roménia e na Sérvia, mas em lado nenhum persiste com tanta força como na Montanha Sagrada. Todos os monges de Athos se dedicam a ela.

Os mosteiros do Monte Athos surgiram durante o Império Bizantino. Os monges vivem naquela península continuamente desde o ano 800. A tradição diz que durante uma viagem, com São João Evangelista, Nossa Senhora visitou Athos e declarou-o o paraíso santo, com o qual o seu filho estava agradado.

Por respeito a ela, os monges decidiram há 1000 anos que nenhuma mulher devia ser permitida na Montanha Sagrada. Ao longo dos anos um conjunto de aventureiras, entre as quais a antiga Miss Europa Aliki Diplarakou, entraram disfarçadas de homens. Diplarakou fê-lo na década de 30, mas só contou a história vinte anos mais tarde.

Para lá chegar apanha-se o ferry que parte diariamente de Ouranoupolis para o porto de Dafni, no Estado Autónomo. Desembarcamos e passamos por filas de peregrinos para apanhar um autocarro para a capital, Karyes. É um local minúsculo, com estradas de terra, uma mão cheia de cafés – como as povoações da Guerra das Estrelas, mas sem os maus. Há um edifício municipal, algumas igrejas e, claro, mosteiros. Depois apanhamos outro autocarro que, como o primeiro, viaja lentamente sobre estradas de terra impossivelmente íngremes. Atravessamos um posto fronteiriço, com um guarda leigo, empregado pelo Estado Autónomo, que retira um adolescente da Ucrânia que sem visto nem passaporte. Quando finalmente se abre o portão, entramos nas terras do Mosteiro de Vatopedi.

Vatopedi
Na década de 80, a vasta estrutura, com 150 quilómetros quadrados de edifícios, era habitada apenas por sete monges idosos, que viviam ao estilo idiorritmico. Então chegou um novo grupo, chefiado por um monge cipriota chamado José, que tinha vindo até Athos em 1946, tornando-se discípulo do famoso asceta José o Hesicasto, que morreu em 1959. Daí até 1987 o José mais novo reuniu um grupo de discípulos idealistas. Em 1987 viram uma oportunidade de reavivar Vatopedi e mudaram toda a comunidade para lá. Estes tipos tinham ideias diferentes dos monges mais velhos. A primeira coisa que fizeram foi mudar todo o mosteiro para o sistema cenobítico. Isto tornou-os menos independentes, mas mais capazes de trabalhar em conjunto para alcançar objectivos práticos.

Um desses objectivos era o restauro dos edifícios. O arquitecto Phaido Hagianthonious chegou a Vatopedi em 1983, contratado pelo governo grego. Casado, tinha de deixar a família para trás aos dias de semana para restaurar os edifícios decrépitos que tinham mais de 600 anos. Os monges mais velhos não percebiam porque é que ele estava a gastar tanto tempo a preocupar-se com o carácter histórico das estruturas, eles só queriam que os telhados deixassem de ter buracos, independentemente de serem reparados com técnicas e materiais autênticos.

O orçamento era baixo e a equipa praticamente inexistente. Um dia, no início do seu projecto, estava no segundo andar da igreja central, a reparar um telhado, quando, ao abrir o tecto, caíram centenas de manuscritos medievais que os monges lá tinham escondido dos muitos piratas e invasores que, ao longo dos anos, pilharam Vatopedi e outros mosteiros, todos localizados junto ao mar, isolados, com nada mais que as muralhas para os defender.

Para ele foi um momento marcante para a carreira. Percebeu que não estaria apenas a tapar buracos mas a escavar um local arqueológico importante e a restaurar tesouros sem preço. E a descoberta foi acompanhada de uma feliz coincidência: a União Europeia começou a canalizar dinheiro para preservações históricas. A UNESCO decretou Athos património mundial e os jovens monges alinharam em tudo. Phaido reformou-se após 32 anos, durante os quais foram investidos quase 40 milhões de euros para restaurar o campus. Hoje até brilha.

O conjunto de igrejas, residências, refeitório e muros situa-se por cima de uma falésia à beira-mar, rodeado de jardins, onde os monges cultivam muita da comida que consomem. Do mar chega-lhes peixe, dos campos legumes e fruta. Não comem carne. Cerca de metade do ano abstêm-se de comer peixe e óleo. As sua refeições são simples, servidas em mesas de mármore milenares, onde comem e bebem em silêncio enquanto um monge lê textos espirituais de um ambão elevado. Bebem água e vinho. A comida pode ser simples mas é nutritiva e não falta. Os índices de cancro e de doença cardíaca são baixos e a maior parte vive até aos oitentas e muitos.

Vatopedi
Em Vatopedi há cerca de 120 monges. Há barbas grisalhas com sessentas, e mais, mas são relativamente poucos. Homens entre os vintes e os quarentas são às dezenas. Vigorosos e intensos, sempre com as longas vestes negras do mosteiro e sempre com barba. Aqui as barbas são tão selvagens como a paisagem. O monasticismo ortodoxo centra-se no deserto.

Os seus heróis não são estadistas, nem académicos na universidade de Paris, ou líderes nos centros políticos de Roma ou de Constantinopla, mas homens selvagens como Palamas, que viviam em grutas. A Igreja no seu todo reverencia estes monges de uma forma que faz falta no Ocidente.

Mas falarei mais sobre isso numa futura ocasião.



John Farina foi investigador na Faith and Reason Institute e foi editor-chefe da Paulist Press Classics of Western Spirituality, e da série Sources of American Spirituality, para além das séries Crossroad Herder e Herder Spiritual Legacy. Atualmente é professor associado de estudos religiosos na George Mason University.

(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no sábado, 19 de Maio de 2018)

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