Stephen P. White |
Nota prévia: Acompanhei o caso do Alfie com a atenção que me foi possível, que ainda foi bastante. Neste artigo o autor critica a posição do inglês Austen Ivereigh. Penso que o faz de forma injustificada. Como o Ivereigh, também eu lamento que tenha havido muita manipulação por parte de alguns defensores da família do Alfie. Mas publico o artigo à mesma porque considero que esses são detalhes secundários e que o resto do texto, nomeadamente o alerta sobre o perigo de o Estado se intrometer em demasia nas vidas privadas dos cidadãos, dando origem a conflitos como este, e outros.
Já se esperava que o pequeno Alfie Evans morresse num
hospital, com os seus pais ao lado. Não era previsível que as batalhas
judiciais, os tweets papais ou as vigílias e multidões de apoiantes da criança
britânica mudassem isso. Os milagres acontecem, mas não é por acaso que lhes
chamamos milagres. Não era provável que os médicos em Itália (ou qualquer outro
local) pudessem ter feito mais pelo Alfie do que os médicos em Liverpool.
Possível, talvez, mas não provável.
Quando os médicos de Alfie tinham esgotado a sua perícia,
quando mais nada havia a fazer, o corpo de Alfie iria falhar e ele iria morrer.
A vida é sagrada, mas a morte não é o pior que nos pode acontecer. Toca-nos a
todos.
Porém, o que começou por ser uma disputa entre os pais de
uma criança e os seus médicos, tornou-se uma disputa legal sobre quem tem o
direito de falar em nome dos interesses de Alfie. Os médicos e os juízes tinham
a certeza de que sabiam o que era o melhor para ele. Talvez os médicos tivessem
razão, e nada mais houvesse a fazer pelo doente que não conseguiram sequer
diagnosticar. E o juiz bem pode ter tido razão em dizer que a lei concede aos
médicos prerrogativas que, na verdade, pertencem aos pais. Se existe algum elo
que proclama a verdade do direito e da autoridade natural, é aquele que existe
entre pais e filhos.
Não deixa de ser um interessante exercício mental
contrastar as reações ao caso do Alfie com outro caso controverso sobre os
limites dos direitos paternais e das autoridades civis: o famoso caso Mortara,
no Século XIX. Um menino judeu, que tinha sido batizado por uma criada
bem-intencionada, foi retirada aos pais, em conformidade com as leis do
Vaticano. Hoje parte-se do princípio que foi injusto usurpar os direitos
naturais dos pais de Edgardo Mortara. Mas muitas pessoas que o dizem defendem
também que o Reino Unido fez bem em usurpar os direitos naturais dos pais para
poder garantir que Alfie Evans morresse num hospital.
Nada disso interessa muito agora. Os médicos e os juízes conheciam
os interesses do rapaz, eram imparciais. Não eram como os pais de Alfie, que
não são médicos. Nem juízes. Nem têm formação universitária. Os pais em geral
são porreiros, à sua maneira, mas são amadores. A lei procura a opinião de
peritos, e eles bem sabiam o que o menino precisava. Não valia a pena fazer
mais tentativas de diagnóstico. O Alfie não devia, sob qualquer condição, ser
removido do hospital que recusava tratá-lo e apenas queria fornecer cuidados
paliativos. Se os pais o tentassem remover, deviam ser detidos.
Os médicos e os juízes de sua majestade nunca chegaram a
perceber o que é que se passava com o Alfie. Mas estavam bastante certos de que
ele não seria capaz de respirar sozinho. Removeram o ventilador, mas respirou
sozinho. Cinco dias. Isso abalou as certezas dos mandarins? Não. Os médicos acharam
possível que o Alfie pudesse ter uma convulsão se fosse levado para Liverpool.
Preocupavam-se que ele pudesse não sobreviver à viagem. Seria melhor deixar o
rapaz morrer em Liverpool.
Tudo com os seus melhores interesses em mente, claro.
Embora os apelos cada vez mais desesperados dos pais de
Alfie, e o clamor dos seus apoiantes à volta do mundo – incluindo do Papa
Francisco, que até disponibilizou um helicóptero para levar Alfie até Roma – os
perturbassem, os mandarins recusaram ceder. O facto de serem especialistas em
medicina e em direito deu-lhes o poder de determinar o que seria melhor para o
Alfie e, como que para provar isso mesmo, o Alfie Evans morreu num hospital em
Liverpool para evitar o risco de poder morrer num hospital em Roma.
Margaret Thatcher disse certa vez que “não existe
sociedade. Existem homens e mulheres e existem famílias”. Uma visão bastante
anémica da vida social, mas olhando para o caso de Alfie Evans, perguntamos se
não terá mesmo exagerado. Talvez só existam mesmo indivíduos e os seus
interesses – e o Estado, a empregar peritos para instruir os primeiros quanto
aos segundos.
Mas os católicos sabem bem que não é assim. Ou pelo menos
deviam saber. O Papa Francisco apercebeu-se do que estava em causa –
encontrando-se com Tom, o pai de Alfie, e fez vários tweets manifestando o seu
apoio. As declarações dos bispos de Inglaterra e do País de Gales foram
essencialmente do género pastoral mas sem tomar partidos, ou seja, flácidas e
superficiais. Alguns católicos – entre os quais o autor britânico e biógrafo
papal Austen Ivereigh, por exemplo – indignaram-se, insistindo que os protestos
contra esta abrogação dos direitos paternais constituíam prova de certo
contágio libertário com origem na Igreja americana.
O Papa Leão XIII escreve no Rerum Novarum que “querer, pois, que o poder civil invada arbitrariamente o
santuário da família, é um erro grave e funesto”. Note-se que o Papa Leão não
era nem americano nem libertário.
Quando os ministros da lei, alegando agir no interesse de
um indivíduo, o isolam dos laços familiares, que são a própria fundação da
sociedade humana e que a lei existe precisamente para proteger em primeiro
lugar, exercem violência sobre o indivíduo, a família e a sociedade. Novamente,
quem o diz é o Papa Leão: “E se os indivíduos e as famílias, entrando na
sociedade, nela achassem, em vez de apoio, um obstáculo, em vez de protecção,
uma diminuição dos seus direitos, dentro em pouco a sociedade seria mais para
se evitar do que para se procurar.”
Alfie Evans foi tratado não como uma pessoa em pleno,
filho de um pai e de uma mãe, mas como um indivíduo despido de laços, cuja
dignidade consiste nos seus “interesses” e que foi sujeito à ministração das
forças impessoais do Estado. O Estado tornou-se assim uma coisa a evitar.
Filho adoptivo do Pai pelo baptismo, o Alfie está agora
seguro da violência exercida contra ele. A violência cometida contra a sua
família, os seus pais e a sua nação talvez sejam um pecado ainda maior.
Stephen P. White é investigador em Estudos Católicos no
Centro de Ética e de Política Pública em Washington.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no domingo, 2 de Maio de 2018)
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