Randall Smith |
Há alguns anos surgiu um filme chamado “A Corrente do Bem”
[Pay it Forward], cuja ideia principal era de que quando alguém nos faz bem, em
vez de retribuir devia-se fazer bem a outra pessoa. A realidade costuma ser
menos benigna. O que as pessoas costumam passar aos outros são os resultados de
um trabalho mal feito, um problema por resolver, uma disfunção que vai passando
de gabinete em gabinete até que cai no colo de alguém que não tem nem a
autoridade para o poder passar a mais ninguém.
Digamos que um jovem padre, acabado de se formar em
Direito Canónico, é colocado num tribunal diocesano, esperando idealisticamente
poder aplicar o conhecimento e as práticas que aprendeu, com base na tradição
da Igreja, aos desafios pastoralmente difíceis dos casos de nulidade. O que
descobre, porém, é que há anos que o tribunal não segue essas práticas,
adoptando uma atitude de despachar os processos, dos quais muito poucos são
rejeitados.
Estes funcionários sabem, com base em décadas de
experiência (uma vez que muitos estão no tribunal desde os anos 70) que se
recusarem um processo, ou se recusarem a nulidade, as partes envolvidas tendem
a abandonar a Igreja. Por isso, quando o nosso jovem padre chega, o tribunal
encontra-se a decretar algumas centenas de nulidades por ano, tendo rejeitado
apenas oito ou nove na última década.
O jovem padre idealista decide resistir a este laxismo
burocrático. Assim ele é que passa a ser o problema. A burocracia diocesana
gere as coisas de uma certa forma há anos; os padres que aconselham os casais
estão habituados a dizer-lhes que não haverá qualquer problema uma vez ultrapassada
a difícil fase do preenchimento dos papéis.
Ao resistir, o nosso jovem padre vai causar muito
mal-estar. Pessoas zangadas por terem visto os seus processos negados irão
abandonar a Igreja e os padres que os aconselharam ficarão furiosos. Se o
conflito se tornar público os comentadores “liberais” escreverão artigos
revoltados, lamentando a “falta de caridade e sensibilidade pastoral” do
tribunal, enquanto os “conservadores” criticarão o tribunal por ser tão laxista,
insistindo que a caridade maior é a aplicação rigorosa das leis da Igreja.
Eu, para dizer a verdade, não tenho nada a dizer sobre o
assunto.
Em vez disso, pergunto se não fará sentido sugerir que “o
problema” começou muito antes. Cada pedido de nulidade que chega ao tribunal
deve ser considerado uma falha na preparação para o matrimónio. Se a Igreja
pode legitimamente decretar a nulidade de tantos casamentos por ano, então tem
de enfrentar a triste realidade de que todos os anos milhares de casais
católicos não estão a ser bem preparados para o casamento. Tentar lidar com o
problema na fase do processo de nulidade é como tapar uma ferida de bala com um
penso. Não faz mais do que esconder o problema, em vez de lidar com a ferida profunda,
que devia ter sido evitada. Um “hospital de campanha” responsável deveria
perguntar porque é estão a aparecer tantas pessoas vítimas de balas, em vez de
procurar pensos mais sofisticados.
O pessoal das urgências era capaz de ficar irritado se um
médico se recusasse a fazer como todos os outros e simplesmente tapar a ferida
com um penso. Parece cruel deixar a ferida aberta. Mas devemos continuar a
tapar os problemas em vez de lidar com as suas causas? Os médicos das urgências
que já fizeram as pazes com aquilo que se lhes pede há anos provavelmente dirão
que não conseguem controlar o que se passa antes de os feridos darem entrada, e
isso é verdade, eles não criaram o problema, simplesmente caiu-lhes no colo. E
agora?
Hospital de Campanha na Áustria, Primeira Guerra Mundial |
Podíamos fazer um comentário semelhante sobre as escolas
católicas. As escolas não costumam estar na raiz dos problemas, mas são o local
onde todos os problemas tóxicos, que grassam na nossa cultura, vão parar.
Questões com drogas e álcool, pornografia e a adolescência híper-sexualizada;
consumismo; as pressões de ser bem-sucedido numa economia tecnocrática e
globalizada; e por detrás de todas estas, as dificuldades de lidar com as
exigências cada vez mais insaciáveis de multidões de indivíduos autónomos
alimentados pela ideologia do Estado liberal e que acreditam que têm o “direito”
de fazer o que querem, com pouca ou nenhuma consideração pelos desejos dos
outros e as obrigações para com a comunidade.
O resultado é que temos uma população, incluindo
americanos, que sentem que têm o “direito” a casar e a casar nesta igreja; o “direito”
a uma declaração de nulidade quando as coisas não correm bem; o “direito” a ter
a escola católica que querem (o que pode significar aulas de educação sexual,
ética ambiental ou missa em latim); e o “direito” de escolher a vida que
querem, quer isso signifique o “direito” a um aborto, o “direito” a casas de
banho transgénero ou o “direito” a acumular toda a riqueza possível para poder
comprar os bens de consumo que querem.
Por isso, e quando os padres insistem perante as suas
congregações que a principal virtude cristã é “ser simpático”, esses fiéis têm
alguma dificuldade em compreender porque é que uma instituição católica lhes
negaria o que consideram ser desejos legítimos, porque negar às pessoas aquilo
que querem não é “simpático”. Quando se alimenta uma cultura de liberalismo
autónomo e se prega o Evangelho de deísmo terapêutico moralista, está-se a dar
força às raízes das ervas daninhas da nossa cultura, muitas das quais acabarão
por crescer com força no jardim de alguém que não tem os recursos necessários
para se livrar delas.
Por isso podemos continuar a discutir amargamente e sem
fim sobre os tribunais e as escolas onde os problemas acabam por ir parar –
embora nesse ponto as dificuldades são já tão grandes e os recursos tão
escassos que teria sorte se até um penso lhe dessem. Ou então podemos levar a
sério o que está a acontecer na nossa cultura e o que não se está a passar na
nossa Igreja e começar a responsabilizar as pessoas envolvidas no sistema, a
começar por nós, para não empurrem mais os problemas com a barriga.
Talvez devêssemos fazer disso a nossa resolução de Ano
Novo.
Randall Smith é professor de teologia na Universidade de
St. Thomas, Houston.
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