O ministério de João Baptista foi um apelo ao
arrependimento, à renúncia ao pecado, como tinha sido profetizado por Isaías:
“Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas” (Mt. 3,3). Os Dez
Mandamentos fornecem uma base moral, com destaque para o primeiro: “Eu sou o
Senhor teu Deus. Não terão falsos deuses diante de mim”.
Os falsos deuses assumem várias formas e feitios. À
medida que a nossa cultura vai rejeitando a herança judaico-cristã, não podemos
dar por adquirido que não regressaremos aos falsos ídolos de pedra. Mas um
falso deus também pode ser uma obsessão tão intensa que nos impede de adorar
devidamente o Deus único. Essas obsessões são legião, mas pode ser útil
concentrarmo-nos apenas numa: a ira.
À medida que ficamos mais velhos acontece uma coisa
curiosa. As nossas vidas parecem comprimir-se e começamos a perder a noção do
tempo. Há coisas que parecem ter acontecido recentemente mas que na verdade se
passaram há vários anos. Curiosamente até as memórias distantes – tanto boas
como más – se tornam mais presentes. No aniversário do ataque a Pearl Harbour
os jornais mostraram veteranos já na casa dos 90 anos, com as caras a expressar
a dor da mágoa enquanto recordavam esse dia terrível em 1941.
Há uma piada velha sobre o Alzheimer irlandês: Esquecemos
tudo menos os ressentimentos. Mas infelizmente isto não se limita aos
irlandeses. A ira é fácil de compreender – a maioria de nós conhece-a muito
bem. Até a vemos nos bebés. Tire um brinquedo a um bebé e ele faz birra. À
medida que envelhecemos, tornamo-nos um pouco mais sofisticados na forma como
exprimimos a nossa ira, quando são os outros a brincar connosco.
Se não tivermos cuidado é perfeitamente possível que até
irritações miudinhas se transformem em ódios. Somos capazes de deixar um
incómodo momentâneo transformar-se na razão por detrás de um ressentimento.
Isto não significa que tenhamos o dever de ignorar a
revolta que costuma acompanhar a injustiça. Essa revolta tem o seu lugar. Por
exemplo, a Igreja reconhece o papel do Estado na administração da pena de
morte, precisamente para responder a esse desejo de justiça: “As penas capitais
infligidas pela autoridade civil, que é a legítima vingadora do crime… concedem
segurança à vida ao reprimir a revolta e a violência” (catecismo de Trento).
Mas mesmo a revolta legítima que surge como resposta à injustiça deve ser
controlada e devidamente ordenada.
Mais, não podemos contar que qualquer Governo seja
perfeito no cumprimento de todas as leis justas. Para além de manter todos os
potenciais criminosos em bicos de pés, com a ameaça do sistema judicial, não é
razoável esperar que todos os malfeitores sejam conduzidos à justiça. Mas
cultivar a ira enfurecida por causa de uma injustiça por resolver não dá
resposta a estes factos da vida humana. Cultivar a ira não é apenas autodestrutivo;
a obsessão torna-se um tipo de falso deus, o centro das nossas vidas.
Há anos um conhecido caçador de nazis observou que talvez
a maior tragédia do Holocausto tenha sido que ele substituiu o Êxodo como
centro da história judaica.
Como é que nós, pela graça de Deus, podemos remover o
falso deus da ira nesta época em que acolhemos a vinda do Senhor e nos
preparamos para começar um Novo Ano? Sabemos que não será fácil.
·
Reconhecer que a justa ira não é pecado. A ira
impele-nos à acção, a equilibrar os pratos da balança da justiça. “Irai-vos e
não pequeis” (Ef. 4,26).
·
A justa ira deve ser proporcional e sob controlo
da razão: “Não se ponha o sol sobre a vossa ira” (Ef. 4,26)
·
Conte até dez depois de cada provocação: “Todo o
homem seja pronto para ouvir, tardio para falar, tardio para se irar” (Tg 1,19)
(“Querida, porque é que não me respondes?”, “Estou a contar até dez querido!”)
·
Esteja preparado para perdoar, e perdoar
novamente. “Então Pedro, aproximando-se dele, disse: Senhor, até quantas vezes
pecará meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei? Até sete? Jesus lhe disse: Não
te digo que até sete; mas, até setenta vezes sete” (Mt. 18,21-22)
·
Suporte as falhas dos outros, recordando as suas
próprias fraquezas. “Perdoai-nos os nossos pecados, assim como nós perdoamos a
quem nos tem ofendido”.
·
Reconheça que as emoções fortes, como a ira, são
voláteis e não podem ser controladas sem a graça de Deus. Por isso, não
negligencie a oração, o sacramento da reconciliação e a recepção devota da
Sagrada Comunhão. “Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e rezai por
aqueles que vos perseguem” (Mt. 5,44).
·
Não ignore o valor redentor do sofrimento injusto:
“Regozijo-me agora no que padeço por vós, e na minha carne cumpro o resto das
aflições de Cristo, pelo seu corpo, que é a Igreja” (Col. 1,24).
·
Experimente um pouco de bondade cristã à antiga;
“Portanto, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe
de beber; porque, fazendo isto, amontoarás brasas de fogo sobre a sua cabeça.
Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem” (Rom. 12,20-21).
·
Por fim, especialmente para casos de injustiças
graves e crónicas, confie na justiça de Deus. Por mais que assim possa parecer,
ninguém escapa impune: “A mim pertence a vingança e a retribuição. No devido
tempo os pés deles escorregarão; o dia da sua desgraça está chegando e o seu
próprio destino se apressa sobre eles” (Deuteronômio 32,35). Ninguém escapa ao
trono de justiça de Deus, porque existe um céu e existe um inferno.
Podemos escolher entre ficar obcecados com injustiças e
arriscar as nossas almas, ou antecipar a Cristo com uma fé firme. Por isso,
tomemos a resolução firme de… parar. Parar de alimentar os nossos ressentimentos,
grandes ou pequenos, e preparar o caminho para o Senhor neste Ano Novo – e
todos os anos.
O padre Jerry J. Pokorsky é sacerdote na diocese de
Arlington e pároco da Igreja de Saint Michael the Archangel em Annandale,
Virgínia.
(Publicado pela primeira vez no domingo, 31 de Dezembro
de 2017 em The Catholic Thing)
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