Tuesday 17 November 2015

“Sem cristãos os lugares santos tornam-se apenas pedras e prédios”

Transcrição integral da entrevista feita a Nicolas, um cristão da Terra Santa que se encontra em Portugal para vender artesanato produzido pelos cristãos de Belém. A entrevista foi feita o ano passado, mas na altura não publiquei a transcrição no blog. Os artigos estão à venda na Igreja dos Mártires, no Chiado e é uma maneira concreta de ajudar os cristãos na Terra Santa, que tanto precisam.


Estás em Portugal, mas originalmente és da Terra Santa, não é?
Sim, da Terra Santa, da cidade de Belém.

Cidade essa que ganha uma importância muito especial nesta altura do ano...
Sim.

És cristão?
Sou cristão, católico.

Os cristãos em Belém têm noção do significado do sítio onde vivem?
Sim. Sinceramente, temos um grande valor. Porque vivemos num lugar muito importante, muito religioso, que se pode considerar um dos lugares mais sagrados do mundo, onde nasceu o nosso salvador Jesus Cristo, e temos um grande amor, grande fé, desse lugar, o único lugar que temos, na cidade de Belém.

Belém é governada pela Autoridade Palestiniana?
Sim.

Houve uma altura em que os cristãos eram maioria em Belém...
Sim. Éramos quase 60% de cristãos no território da Palestina, hoje em dia somos perto de 1%.

Com as guerras e acontecimentos no país ao longo dos anos muitos cristãos emigraram e foi afectando a população.

E em Belém em Particular?
São cerca de 50 mil habitantes, os cristãos são cerca de 25%.

Com a causa palestiniana cada vez mais focada em movimentos islamitas, os cristãos ainda se identificam com ela?
Continuamos sempre a fazer parte da situação do território, mas sinceramente, como minoria que somos já não temos muita voz nem muitas opções. Temos que ficar calmos e ter fé que um dia os problemas passam.

A maioria dos cristãos que saem vão para onde?
Em 1910, 1915, começaram a ir para a América Latina, por causa da perseguição dos turcos. Mas hoje em dia, onde tiverem acesso fácil, saem para a Europa, América, América Latina, porque vão à procura de uma vida melhor, segurança, paz, tranquilidade. Formar uma família sem conflitos nem problemas.

No teu caso, sais da Palestina para vir temporariamente à Europa. Mas depois voltas?
Muitas pessoas ofereceram-me estadia aqui, mas sinceramente a minha família depende do meu trabalho e gostaria de ficar, mas prefiro voltar para a minha terra, porque somos a pedra e o sal desta terra e sem cristãos os lugares santos, com tempo, tornam-se apenas pedras e prédios.

Prefiro ficar na minha terra, porque sou um da minoria cristã que fica na Terra Santa e a Terra Santa sem cristãos é um problema grande.

Tens irmãos?
Sim, somos dois rapazes e uma rapariga.

E o teu irmão vem ajudar-te nestes tempos em Portugal?
Sim, porque ele não tem emprego na Terra Santa, na parte da Palestina. Belém é como Fátima, vivem do Turismo, dos peregrinos, mas muita gente que escuta e vê na televisão acha que é perigoso, que não vale a pena ir, que tem bombas e essas coisas, e como o nosso petróleo é o fabrico de artesanato de madre-pérola e madeira de oliveira, por causa destes problemas muitos cristãos tiveram de fechar as suas oficinas e sair do país. Então nós, como vários cristãos que têm contactos noutras partes do mundo, tentamos trazer artesanato dessas oficinas para mover os seus produtos e assim eles ficam nas suas oficinas, com a esperança de ainda poder sobreviver.

Vocês aqui vendem artesanato, mas não produzem...
Não, só trazemos directamente das oficinas de Belém.

A tua irmã também está lá em Belém?
Ela está em Espanha, a estudar. Em Julho termina. Arranjou um diploma através da Universidade Católica, porque também não tem trabalho na nossa terra, mas assim que terminar vai voltar à cidade de Belém.

Os desenvolvimentos dos últimos anos têm tornado a vida mais difícil para quem vive destas actividades em Belém, não é?
Sim. Está muito difícil. É difícil falar de como está a situação. E na Síria e no Iraque ainda está pior, mas por exemplo Portugal teve guerra, problemas políticos, agora económicos, mas tem liberdade, paz e prosperidade. Nós na Terra Santa sempre tivemos problemas políticos, religiosos e económicos, há dois mil anos. Não sabemos o que é paz, nem prosperidade nem liberdade. Mas continuamos nesta terra. Viver na Terra Santa é ser um herói.

A principal dificuldade nos últimos anos tem sido o muro...
Sim, são quase 720 quilómetros...

Que divide territórios e impede a chegada de outras pessoas a Belém, não é?
Sim.

Como é que viveram a ida do Papa à Terra Santa?
No tempo do Papa Bento XVI, quando ele foi à Terra Santa em 2009, estive lá, e ele trouxe muita gente e uma mensagem. Mas com o Papa Francisco veio ainda mais gente e mostrou ao mundo que precisamos de paz, que não tem de haver muralhas, mas pontes e surpreendeu-nos ao parar diante do muro e rezar diante do muro. Com a sua mensagem deu-nos uma grande paz e ânimo para ficar nesta terra.

Os israelitas defendem-se, dizem que desde que construíram o muro que de facto diminuíram os ataques...
É preciso ver para crer...Eles dizem que baixou muito. Mas com a muralha há pessoas que têm terrenos do outro lado e já não podem cultivar, não podem construir. Dificulta muito o acesso. Como cristãos temos direito a ir ao outro lado duas vezes por ano, no Natal e na Semana Santa, a certas horas e em certas partes. É mais fácil para um turista conhecer a nossa terra do que para nós mesmos.

Estava a dizer que há muitos turistas que têm medo porque pensam que há instabilidade e bombas em toda a parte. Para quem pensa eventualmente ir visitar, o que tem a dizer?
Diria que não há essas coisas. Claro que acontecem, mas é longe. Nos lugares de turismo, de peregrinação, nunca aconteceram esses conflitos. Estive com grupos em Junho e Julho e não se passou nada. É seguro e recomenda-se. Recomendo muito, é uma viagem da vida, é onde nasceu a nossa religião e não é como parece nas notícias.

Como é que é o Natal em Belém? Claro que vão muitos turistas, mas para vocês, que tradições têm?
Há dois anos colocaram uma árvore de Natal na praça da Manjedoura, onde transmitem a Missa do Galo e deram um pouco mais de vida e de sabor à cidade de Belém, com mais decoração, mais luzes, uma vez que este lugar é a capital do Natal. Nós como cristãos temos a tradição de estar em família. Jantamos juntos e depois ir à missa, mas com poucos cristãos a tradição, a decoração, essas coisas, estão a perder-se um pouco cada ano.

Certamente têm vizinhos e amigos muçulmanos, eles respeitam os vossos festejos?
Respeitam muito, sim. Assim como nós respeitamos o Eid-al-Adha ou o Ramadão, duas festas muito importantes, cada um respeita o dos outros.

Há quantos anos vem a Portugal vender estes produtos?
Há quase cinco anos, de Novembro a Dezembro.

Vale a pena?
Vale. Eu diria que vale a pena porque conhecemos melhor os países, vendemos os produtos das oficinas de Belém e gosto muito do país. Também não tenho outra opção.

Consegue dinheiro pelo menos para pagar as viagens?
Sim. Como trazemos as coisas directamente das oficinas e não da loja, o preço é acessível e são coisas de artesanato e religiosas e coisas de que os portugueses muito gostam, como presépios, cruzes, terços.

Há quanto tempo é que a sua família é cristã?
Essa é uma pergunta que nos fazem muitas vezes, porque trabalho como guia em Belém e muitas pessoas pensam que não há cristãos, pensam que só há judeus e muçulmanos, mas a minha família, toda a vida foi cristã. Não é como noutros países onde se pode trocar de religião, lá isso não acontece, por tradição e por cultura. Toda a vida fomos católicos, desde a altura de Jesus.

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