Randall Smith |
“Se as autoridades estivessem à procura de cristãos para
matar, haveria provas suficientes para te condenar?” Ou, posto de outra forma: “A
tua fé cristã é do género que vale a pena perseguir?”
Às vezes ouvimos dizer que os “mártires cristãos” não
eram executados por causa da sua fé, mas por outras razões, e surge então a
questão de saber se devem ou não ser considerados mártires pela fé. Assim, e
pegando num exemplo contemporâneo, se Edith Stein foi executada por ser judia,
e não por ser cristã, devemos dizer que ela é uma mártir cristã? De igual modo,
se os primeiros cristãos foram executados não por causa das suas convicções
religiosas – sobre as quais, ouvimos frequentemente dizer, os romanos eram
“indiferentes” –, mas por constituírem uma suposta ameaça ao Império Romano,
então devemos dizer que são mártires cristãos, ou apenas descrevê-los como
cidadãos romanos problemáticos?
É verdade que os romanos não estavam particularmente
interessados em saber que deus, ou deuses, uma pessoa adorava, ao contrário do
Império Helenista que os precederam. Um desses imperadores helenistas, Antíoco
IV Epifânio, (c. 215 AC – 164 AC) tornou-se famoso, por exemplo, por obrigar os
judeus na Judeia a comer carne de porco e a adorar uma estátua de Zeus que
tinha mandado colocar no Templo de Jerusalém. O resultado foi uma revolta
liderada por Judas Macabeu e os seus filhos – a Revolta dos Macabeus. Com os
romanos, pelo contrário, podia-se fazer o que bem se entendesse no que diz
respeito a crenças e adoração privadas.
Mas não é verdade que os romanos fossem completamente
indiferentes às crenças religiosas. Por muitas razões, ligadas à expansão
romana para o oriente e a centralização do poder romano num único imperador, a
regra em muitas administrações romanas no final do segundo século era a
“adoração do imperador”. E qualquer religião, tal como a dos judeus e dos
cristãos, que não permitisse aos seus fiéis reconhecer o imperador como Deus e
como máxima autoridade em todos os assuntos, era um problema, aos olhos de
Roma.
Uma “fé” que permanecesse no interior da Igreja ou do
templo e que não maçasse os líderes políticos de qualquer forma não era um
problema. Mas se alguém tentasse ensinar verdades que incomodassem os planos
dos governantes ou procurasse convencer as pessoas a recusar esses planos por
objecção e consciência, essa pessoa dificilmente escaparia a perseguição por
muito tempo. As Igrejas ou os templos que estavam envolvidos em “adoração” da
mesma forma que os templos pagãos em Roma – isto é, que praticassem rituais e
sacrifícios elaborados, mas não tivessem grandes ensinamentos em termos de
doutrina ou moral – tinham muito pouco a temer das autoridades romanas.
Da mesma forma hoje, como tantas vezes foi o caso ao
longo da história, desde que se procure apenas “liberdade de culto”, pouco há a
temer da maioria dos governos. Podemo-nos envolver nos rituais que quisermos
desde que no interior dos templos ou das igrejas. É quando essas crenças
começam a chegar à praça pública, como uma fonte que jorra e transborda, que os
chefões se começam a preocupar. Desde que a sua “religião” se preocupe apenas
com o outro mundo, a maior parte das pessoas não quer saber se adora Zeus, Javé
ou o deus dos peluches.
Os media actuais que criticam os ensinamentos morais da
Igreja Católica e exortam o Governo a manter firme o “muro que separa a Igreja
e o Estado” não têm qualquer problema em publicar horóscopos diários – apesar
de a crença na astrologia ser claramente religiosa – simplesmente porque sabem
aquilo que todos nós calculamos: Nomeadamente, que as pessoas que lêem
horóscopos e mesmo as que os levam a sério, não representam qualquer ameaça
para o governo. Os horóscopos não têm qualquer conteúdo moral e é por isso que
não podem constituir qualquer ameaça para ninguém em posições de poder. É por
isso que raramente vemos pessoas a serem perseguidas por se envolverem em
astrologia. É considerado seguro, uma tolice inofensiva.
Martin Luther King - Perseguido pelas suas crenças? |
Por isso, como se vê, os debates sobre o “martírio” na
Igreja primitiva e sobre a “liberdade religiosa” nos nossos tempos, têm
bastante em comum. Se por “mártir” falamos apenas de alguém executado por
prestar culto de determinada forma, então muitos dos primeiros cristãos não
eram mártires. Se, contudo, entendermos que o termo abrange as pessoas
executadas por se recusarem a reconhecer nos governadores romanos, ou no
imperador, a autoridade máxima sobre assuntos humanos, então houve muitos.
As autoridades do sul dos EUA não perseguiram Martin
Luther King porque, por ser baptista, ele se recusava a baptizar crianças. No
que diz respeito à prática religiosa, ele era livre de fazer o que entendesse.
Puseram-no na prisão porque a sua mensagem de liberdade estava a chegar às
ruas, na forma de protestos contra as leis racistas do Sul.
É curioso que nos nossos dias tantos daqueles que
gostariam de se associar ao legado das lutas pelos direitos cívicos revelem vontade
de fechar essa mesma porta entre a Igreja e a Praça Pública. Estas pessoas são
como o pai de Santa Perpétua, que a aconselhou, enquanto aguardava ser executada,
a rejeitar Cristo publicamente, apenas pelas palavras, e que ninguém queria
saber o que ela fazia em privado. A cultura dela, como a nossa, conhecia apenas
um tipo de tolerância. Mas o seu espírito era como o de Cristo, que conhecia
uma liberdade mais verdadeira que aquela que pode ser dada ou retirada pelos
chefes das nações.
Randall Smith é professor de teologia na Universidade de
St. Thomas, Houston.
©
2015 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os
direitos de reprodução contacte: info@frinstitute.org
The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing.
No comments:
Post a Comment