Wednesday 12 August 2015

O Martírio, Ontem e Hoje

Randall Smith
“Se as autoridades estivessem à procura de cristãos para matar, haveria provas suficientes para te condenar?” Ou, posto de outra forma: “A tua fé cristã é do género que vale a pena perseguir?”

Às vezes ouvimos dizer que os “mártires cristãos” não eram executados por causa da sua fé, mas por outras razões, e surge então a questão de saber se devem ou não ser considerados mártires pela fé. Assim, e pegando num exemplo contemporâneo, se Edith Stein foi executada por ser judia, e não por ser cristã, devemos dizer que ela é uma mártir cristã? De igual modo, se os primeiros cristãos foram executados não por causa das suas convicções religiosas – sobre as quais, ouvimos frequentemente dizer, os romanos eram “indiferentes” –, mas por constituírem uma suposta ameaça ao Império Romano, então devemos dizer que são mártires cristãos, ou apenas descrevê-los como cidadãos romanos problemáticos?

É verdade que os romanos não estavam particularmente interessados em saber que deus, ou deuses, uma pessoa adorava, ao contrário do Império Helenista que os precederam. Um desses imperadores helenistas, Antíoco IV Epifânio, (c. 215 AC – 164 AC) tornou-se famoso, por exemplo, por obrigar os judeus na Judeia a comer carne de porco e a adorar uma estátua de Zeus que tinha mandado colocar no Templo de Jerusalém. O resultado foi uma revolta liderada por Judas Macabeu e os seus filhos – a Revolta dos Macabeus. Com os romanos, pelo contrário, podia-se fazer o que bem se entendesse no que diz respeito a crenças e adoração privadas.

Mas não é verdade que os romanos fossem completamente indiferentes às crenças religiosas. Por muitas razões, ligadas à expansão romana para o oriente e a centralização do poder romano num único imperador, a regra em muitas administrações romanas no final do segundo século era a “adoração do imperador”. E qualquer religião, tal como a dos judeus e dos cristãos, que não permitisse aos seus fiéis reconhecer o imperador como Deus e como máxima autoridade em todos os assuntos, era um problema, aos olhos de Roma.

Uma “fé” que permanecesse no interior da Igreja ou do templo e que não maçasse os líderes políticos de qualquer forma não era um problema. Mas se alguém tentasse ensinar verdades que incomodassem os planos dos governantes ou procurasse convencer as pessoas a recusar esses planos por objecção e consciência, essa pessoa dificilmente escaparia a perseguição por muito tempo. As Igrejas ou os templos que estavam envolvidos em “adoração” da mesma forma que os templos pagãos em Roma – isto é, que praticassem rituais e sacrifícios elaborados, mas não tivessem grandes ensinamentos em termos de doutrina ou moral – tinham muito pouco a temer das autoridades romanas.

Da mesma forma hoje, como tantas vezes foi o caso ao longo da história, desde que se procure apenas “liberdade de culto”, pouco há a temer da maioria dos governos. Podemo-nos envolver nos rituais que quisermos desde que no interior dos templos ou das igrejas. É quando essas crenças começam a chegar à praça pública, como uma fonte que jorra e transborda, que os chefões se começam a preocupar. Desde que a sua “religião” se preocupe apenas com o outro mundo, a maior parte das pessoas não quer saber se adora Zeus, Javé ou o deus dos peluches.

Os media actuais que criticam os ensinamentos morais da Igreja Católica e exortam o Governo a manter firme o “muro que separa a Igreja e o Estado” não têm qualquer problema em publicar horóscopos diários – apesar de a crença na astrologia ser claramente religiosa – simplesmente porque sabem aquilo que todos nós calculamos: Nomeadamente, que as pessoas que lêem horóscopos e mesmo as que os levam a sério, não representam qualquer ameaça para o governo. Os horóscopos não têm qualquer conteúdo moral e é por isso que não podem constituir qualquer ameaça para ninguém em posições de poder. É por isso que raramente vemos pessoas a serem perseguidas por se envolverem em astrologia. É considerado seguro, uma tolice inofensiva.

Martin Luther King - Perseguido pelas suas crenças?
Mas uma religião que diz que todas as leis e acções executivas do Governo devem ser julgadas segundo uma autoridade maior; que quaisquer leis que falhem este teste devem ser resistidas; e que a “boa cidadania” deve ser julgada precisamente pela resistência que se opõe ao governo neste sentido, essa sim é perigosa. Religiões destas raramente escapam à perseguição muito tempo.

Por isso, como se vê, os debates sobre o “martírio” na Igreja primitiva e sobre a “liberdade religiosa” nos nossos tempos, têm bastante em comum. Se por “mártir” falamos apenas de alguém executado por prestar culto de determinada forma, então muitos dos primeiros cristãos não eram mártires. Se, contudo, entendermos que o termo abrange as pessoas executadas por se recusarem a reconhecer nos governadores romanos, ou no imperador, a autoridade máxima sobre assuntos humanos, então houve muitos.

As autoridades do sul dos EUA não perseguiram Martin Luther King porque, por ser baptista, ele se recusava a baptizar crianças. No que diz respeito à prática religiosa, ele era livre de fazer o que entendesse. Puseram-no na prisão porque a sua mensagem de liberdade estava a chegar às ruas, na forma de protestos contra as leis racistas do Sul.

É curioso que nos nossos dias tantos daqueles que gostariam de se associar ao legado das lutas pelos direitos cívicos revelem vontade de fechar essa mesma porta entre a Igreja e a Praça Pública. Estas pessoas são como o pai de Santa Perpétua, que a aconselhou, enquanto aguardava ser executada, a rejeitar Cristo publicamente, apenas pelas palavras, e que ninguém queria saber o que ela fazia em privado. A cultura dela, como a nossa, conhecia apenas um tipo de tolerância. Mas o seu espírito era como o de Cristo, que conhecia uma liberdade mais verdadeira que aquela que pode ser dada ou retirada pelos chefes das nações.


Randall Smith é professor de teologia na Universidade de St. Thomas, Houston.

(Publicado pela primeira vez na quarta-feira, 29 de Julho de 2015 em The Catholic Thing)

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