Transcrição integral da entrevista feita ao padre Ricardo
Neves em Dezembro de 2009 e que foi incluída na série “Vidas Consagradas” feita
para o Ano Sacerdotal. O padre Ricardo, de quem tive o privilégio de ser próximo e amigo, morreu no passado dia 6 de Agosto.
Pode contar-nos um
pouco da sua história?
Tenho 37 anos e sou filho único, os meus pais são do
Alentejo, casaram e viveram em Lisboa, e depois em Rio de Mouro. Fiz o trajecto
normal de estudos e de catequese. Porque a minha mãe era praticante mas o meu
pai não, e tinham um acordo que o meu pai começava a ir à Igreja quando eu
começasse a ir à catequese.
Vida normalíssima em casa, e na Igreja, em termos de vida
cristã normal e muito gira a partir de certa altura. Na minha adolescência a
participação na vida da comunidade era muito intensa, muito participada, com
muito crescimento quer pessoal quer comunitário, que na altura foi o que me
interpelou, na altura também através da figura do pároco, o célebre padre
Alberto Neto, famoso em Lisboa por causa do caso da Capela do Rato, e que tinha
sido coadjutor em Belém.
Foi um homem que me interpelou imenso pelo tipo de pastor
que era, e porque me foi desinquietando, foi fazendo umas “perguntas indecentes”,
perguntando se já tinha pensado nisto e naquilo.
E começou a crescer dentro de mim… Ao mesmo tempo que havia
uma enorme alegria em ser cristão e fazer parte da vida da Igreja, comecei a
interrogar-me o que é que os outros teriam a ver com isso, especialmente porque
na minha experiência de liceu e de escola havia muita gente que conhecia que
não era cristã e que podia beneficiar muito se conhecesse e experimentasse o
que eu conhecia.
Isso começou a tornar clara a interrogação de ser sacerdote
e de consagrar a minha vida a esse serviço.
Depois entrou um período de reflexão, até que fui dizer a
Deus que se decidisse, para eu saber o que fazer. Pedi-lhe: “Manda-me um sinal,
porque se me disseres o que queres eu faço”. E foi ali um conjunto de
acontecimentos muito giro. Nessa altura morreu o meu pároco, foi um
acontecimento trágico, morreu assassinado, e eu tinha recebido um convite para
ir para o pré-seminário, e fui falar com o padre que o estava a substituir e
perguntei como devia fazer para preencher o nome do pároco. E o padre Armindo
agarrou nos papéis e disse: “Eu acho que devias era entrar no seminário, não
achas que é tempo de entrar no seminário?” E para mim isso foi a resposta ao que
eu tinha pedido de joelhos. E para mim foi muito claro. Disse-me para pensar
nisso e eu fui para casa a pensar que não ia ter que pensar mais, que já lhe
podia dizer.
E então entrei para o seminário aos 15 anos e fiz o trajecto
normal, estive dois anos aqui [em Caparide], mais quatro em Almada e outros quatro
nos Olivais.
Sendo filho único, a vocação
foi bem aceite?
Lembro-me que nesse dia cheguei a casa e os meus pais
estavam no jardim, o meu pai estava em cima de um escadote a apanhar ameixas, e
a minha mãe estava com o balde na mão. Eu abri o portão, cumprimentei-os e
disse: “Olhe, eu vou para o Seminário”, e o meu pai, que estava no alto da
ameixeira nem olhou para mim, disse à minha mãe: “O Rapaz está parvo, acho
melhor ires para casa”.
As semanas que se seguiram foram de debate muito intenso.
Não para contrariar, mas porque queriam saber se era de facto consistente o que
eu queria. Depois deixaram-me vir.
Foi particularmente complicado para a minha mãe, porque
coincidiu com uma fase em que o meu pai passou a estar mais ausente por causa
do trabalho e para a minha mãe houve uma solidão que foi difícil de gerir. À medida que me viam a crescer feliz e realizado, isso foi sendo mais harmonioso
para eles.
Depois de ordenado, foi
logo trabalhar para o seminário?
Imediatamente.
Quando é que se
tornou vice-reitor?
Há sete anos, em 2002.
Qual é o percurso
normal de um seminarista, desde que entra até passar ao seminário maior, e qual
é o seu papel ao longo desse percurso?
A Santa Sé indica que a formação tem de ter pelo menos seis
anos de estudos. No Patriarcado de Lisboa esse percurso está feito em sete,
três aqui, no seminário vocacional, e quatro no seminário dos Olivais que
chamamos o seminário pastoral. Portanto três anos de discernimento e
aprofundamento vocacional e quatro anos de formação pastoral e de preparação
mais imediata para a ordenação.
Aqui o nosso grande objectivo é proporcionar um percurso que
permita àquele candidato, e a nós Igreja, nomeadamente a equipa formadora que
está aqui em nome do Bispo, fazer um discernimento sobre o chamamento de Deus
para aquela pessoa e a capacidade que tem para responder, e chegar a uma
conclusão sobre isso. Portanto todo o processo dos três anos está orientado
para isso, em diferentes dinâmicas: A dinâmica do crescimento espiritual; A
dinâmica do crescimento intelectual e da formação intelectual; E a dinâmica do
crescimento humano e afectivo, que vão concorrendo mutuamente até se chegar a uma
síntese que permita ver.
Claro que o ponto de confronto são aqueles elementos que a
Igreja acha necessários para o ministério ordenado, há um conjunto de exigências,
de ritmos de vida e de conteúdos, que vão sendo oferecidos, e que são aqueles
que se pretendem para quem quer ser padre, que vão servindo por um lado de
motor de crescimento e por outro de margem de confronto, para ver se há
integração e adequação ou não.
Enquanto vice-reitor,
qual é a sua função?
O vice-reitor tem a coordenação-geral pedagógica da casa,
quer o que diz respeito ao percurso global, quer o que diz respeito ao
acompanhamento individual. E depois tenho também a parte administrativa.
Quantos padres
trabalham aqui?
Somos três padres na equipa formadora. Há o director
espiritual, que os acompanha individualmente e quem os confessa, e depois nós
os outros dois padres, eu o Vice-reitor e o padre Nuno Amador, que é o
prefeito, que acompanhamos a parte externa e não fazemos a direcção espiritual,
dividimos os três anos entre nós. Neste momento eu acompanho o primeiro ano, o
chamado propedêutico, e os finalistas. No que diz respeito ao propedêutico
acompanho-os tanto nas actividades de grupo como também no percurso individual,
e aí faço parelha com o director espiritual, e acompanho os finalistas, até
porque como é um ano de decisão é preciso um acompanhamento mais apurado para
chegar a uma conclusão final.
Parte do seu trabalho
é ajudar os seminaristas a discernir se têm mesmo vocação para o sacerdócio ou
não, é fácil detectar isso?
Isso é o mais difícil! Fácil não é. Não se trata de fácil ou
difícil. O processo é um de amadurecimento da pessoa. Não está aqui em jogo
simplesmente a aquisição de competências, um técnico religioso, ou um técnico
sacramental. Pretende-se ver se esta pessoa cresce numa unidade pessoal que se
identifica com aquele projecto. Isso é difícil, porque por um lado e muito
dinâmico, por outro lado os timings são muito diversificados, e porque uma boa
parte disto está dependente da liberdade de Deus, que é um mistério muito
grande.
O segredo é acompanhar e intervir, em cada processo, e temos
pessoas para quem o amadurecimento acontece mais depressa e para quem há uma
clareza sobre a continuidade do percurso mais cedo, e outras para quem acontece
mais tarde. Contudo, a formalidade da decisão no que diz respeito à adesão à
vocação sacerdotal e a passagem para os Olivais, só acontece no terceiro ano,
só aí é que pedimos formalmente uma decisão pública assumida e comprometida, e
nós também tomamos essa decisão.
É verdade que há percursos que são muito turbulentos e que
andam para trás e para a frente, e há outros que são mais lineares, mais
tranquilos.
Há uma taxa bastante
grande de desistências no sacerdócio, como vê isso?
As taxas de desistência são uma coisa… No seminário
vocacional há uma taxa maior do que no pastoral, porque de facto o seminário
vocacional é um seminário para discernir e decidir, por isso é mais normal
haver mais saídas. No Seminário dos Olivais é raríssimo, porque os que passam
para lá já têm uma decisão tomada. Só em casos excepcionais é que saem.
Aqui é natural haver saídas porque é para nós muito claro
que este é um processo aberto, um processo que está começado com indícios de
vocação sacerdotal e de adesão a isso, mas que precisa de ser aprofundado, e a
regra fundamental para ele ser aprofundado é uma grande liberdade de parte a
parte. E portanto, em alguns casos percebe-se que a vocação é o matrimónio, ou
uma vida religiosa, ou uma vida consagrada e por isso reencaminha-se para esses
fins.
Existe mesmo uma
crise de vocações, como tanto ouvimos dizer?
Os anos 60 / 70 foram anos, tecnicamente, de muita crise de
vocações, e isso correspondeu à redefinição dos seminários e do papel do
sacerdote na Igreja. Na segunda metade dos anos 70 os seminários aqui da
diocese passaram de 180 ou 150 alunos para 12 ou 15 alunos, no espaço de dez
anos.
Isso significou que houve um processo de perceber as
motivações profundas que havia nas pessoas que encetavam este caminho, e
aquelas cujas motivações não coincidiam com o que estava definido, era melhor
caminharem para outro sítio.
Progressivamente, desde os anos 70 até agora tem havido um
crescimento sustentado. Creio que o problema é que o número que temos agora não
é o necessário para repor as faltas que temos. Se compararmos com a grande
quebra dos anos 60/70, temos números bons. Não temos é a capacidade de refazer
o tecido dos presbíteros com os números que se pretendia para manter a
organização pastoral como ela está.
Os senhores bispos têm de pensar muito nisso, e isso também
põe em questão a maneira como se organiza o trabalho dos sacerdotes, porque há
um tipo de pastoral que se fazia há muito tempo, que precisava de muitos padres
e de um tipo de presença de padres que hoje já não pode ser assim, e ao mesmo
tempo não temos padres para compensar isso, e depois a realidade do número das
vocações também é muito variável de diocese para diocese. Há dioceses que têm
para a sua estrutura um óptimo número, e outras que têm menos. Isso tem a ver
com a vitalidade cristã das próprias comunidades. Quando essa vitalidade é
crescente e tem preocupações de intervir no mundo, naturalmente aparecem
vocações. Se há um conjunto de comunidades com um Cristianismo mais de
manutenção, mais absorto, o número de vocações também é menor.
E os seminaristas
estão a ser preparados para essa nova realidade, ou para uma realidade que já
não vai existir no tempo deles?
Nós temos a preocupação, principalmente nos Olivais, mas
aqui também, de por um lado dar-lhes a conhecer a realidade como ela é, que não
muda num estalar de dedos, e ao mesmo tempo de levá-los a reflectir sobre as
metas onde queremos chegar. Porque me parece que é preciso muito cuidado e
sabedoria para formar neste percurso de transição.
Porque não podemos formar gente que esteja tão iluminada com
as metas onde vai chegar que depois, quando for para as comunidades concretas
não se revê e não aguenta e dá cabo daquilo, e também não podemos formar para
gente que só faz o que ali está e não evolui com a comunidade para outro lado.
Por isso a nossa preocupação tem sido, por um lado ajudar a integrar na
realidade como ela está, e ao mesmo tempo iluminar para as metas onde queremos
chegar.
Depois, também numa diocese como é Lisboa, as dinâmicas
pastorais são muito diferentes. A pastoral dentro da cidade, propriamente dita,
na cintura de Lisboa e no Oeste, seja o mais próximo ou o mais distante, como
Alcobaça, Nazaré, etc. são realidades muito diferentes e que vão precisar de
posturas e de sensibilidades muito diferentes. Há comunidades que, a maneira
como se organizam, é muito rural, com esquemas muito tradicionais e que
funcionam naquela comunidade, por isso as posturas vão ser diferentes e tem de
se atender a isso.
A Igreja também se
tem tornado mais exigente com os candidatos que aceita para ordenação?
Nós procurámos, nos últimos 30 anos as pessoas que vêm para
o seminário são pessoas que têm inquietações vocacionais e que têm atracção
pelo ministério sacerdotal. Não vêm para aqui porque querem estudar, ou porque
tiveram um desgosto amoroso, ou porque são o filho mais novo e porque a vida
clerical podia ser uma alternativa. Isso tudo mudou com o concílio Vaticano II.
Depois, nós procuramos que, prévio à entrada para o
seminário, haja um acompanhamento feito ou pelo seminário ou pelas estruturas
da diocese que estão encarregues disto, seja os pré-seminários, seja a pastoral
das vocações, de modo a aferir se de facto às motivações são correctas.
Às vezes ainda nos aparecem pessoas a bater à porta a pedir
para entrar e nem baptizados são. Ainda há pouco tempo esteve aí um rapaz que
não é baptizado, mas que achava que na fase da vida em que está, podia ser
interessante. Ainda aparece isto. Mas nos casos normais fazemos um
acompanhamento por forma a perceber se há condições para entrar.
Nos últimos anos a Igreja tem sido abalada pelos escândalos de abusos sexuais por parte de sacerdotes. É possível detectar futuros infractores nesta fase do seminário?
Espero que sim! Temos duas ferramentas fundamentais para
isso. Na diocese de Lisboa, há 20 anos que fazemos uma coisa que agora vem
recomendado pela Santa Sé, que é o rastreio psicológico e o acompanhamento
psicológico.
Portanto o seminário actualmente tem uma psicóloga, que
submete todos os seminaristas a uma bateria extensa de testes que têm dois objectivos
fundamentais: Primeiro, traçar o perfil nas áreas fundamentais da pessoa, desde
a área cognitiva à área afectiva e sexual, de modo a que possamos interagir e
formar de uma maneira mais adequada. Depois, os testes têm também o objectivo
de detectar algum desvio psicológico que possa haver, não só nessa área, mas
noutras também, doenças psiquiátricas que possam aparecer.
Quando detectamos algum caso em que há algum caso de traços
objectivos de desvio patológico, e devo dizer que em 12 anos no seminário nunca
nos aconteceu ter algum caso de desvio sexual, graças a Deus. Se há um caso de
desvio patológico, isso é veemente, este tipo de educação implica um equilíbrio
humano que não se compadece com esses desvios.
Mas pode acontecer também haver desequilíbrios
circunstanciais, são etapas do crescimento, e nesses casos a psicóloga também
acompanha durante o tempo que for preciso, em processo psico-terapêutico o
desenvolvimento daquela pessoa, em diálogo com a equipa formadora.
Esta ferramenta tem sido de imensa utilidade, e para os
seminaristas também tem sido, têm tirado imenso proveito.
Depois há uma segunda ferramenta que é o nosso
acompanhamento directo, personalizado, de todos os dias, onde a preocupação de
analisar a maturidade afectiva, a universalidade afectiva, a capacidade de
relação com os dois sexos, a capacidade adequada de estar com os dois sexos, a
normalidade das atracções e dos envolvimentos afectivos com o sexo oposto são
tidos em conta.
Pode acontecer, também nestes anos ainda não aconteceu, que
haja algum caso que seja conhecido externamente. Alguém que entra e que na sua
terra é conhecido por ter uma tendência que não condiz. No processo de
encaminhamento e de formação, o contacto com os priores permite também
complementar esse rastreio.
Recentemente houve
também indicações de Roma no sentido de que homens com tendências homossexuais
não deviam ser ordenados. Já lhe aconteceu ter que expulsar seminaristas por
essa razão?
A instrução indica, aliás, como tem sido comum aos estudos
de psicologia e daqueles de que nos socorremos, que o desenvolvimento
homossexual tem na sua génese uma destruturação na capacidade da relação com os
opostos. E dizem até os dados estatísticos que há instabilidades tanto nos
relacionamentos, como na gestão de situações de grupo, quer na gestão de
situações de tensão entre pessoas que, para um homossexual, é mais difícil.
Portanto a indicação da Santa Sé é que, para uma vida destas
em que se pede celibato, e a implicação disso que é a continência sexual, em
que se pede uma relação universal, abrangente, capaz de ser simultaneamente
próxima, sem ser absorvente, com as pessoas, pensa-se que o perfil de um
homossexual não é o mais indicado para esta vocação.
Aqui no patriarcado nós já tínhamos essa indicação antes de
vir a instrução, portanto quando nos aparece um caso desses, procuramos
encaminhar a pessoa de forma a, por um lado, e essa é a primeira preocupação,
de integrar o que possa ser a sua tendência homossexual, e depois de perceber
como é que ela se há-de se situar em termos vocacionais, e quais podem ser as
opções vocacionais para uma vida como a dela.
É uma vocação que precisa de ser educada. O celibato não é
uma coisa natural, se fosse natural, não podíamos escolher essa pessoa. Se uma
pessoa for espontaneamente celibatária, se não tiver capacidade de atracção
pelo sexo oposto, se não tiver capacidade de relação com o sexo oposto na
normalidade de homem/mulher, alguma coisa está mal na sua estrutura
psicológica, afectiva, sexual. Alguma coisa não está equilibrada, o que não a
indicaria para uma vocação destas.
Portanto o celibato é sem dúvida um dom de Deus, um
chamamento de Deus em ordem a uma vocação específica que tem a ver com o
serviço às comunidades. Qualquer vocação precisa de educação. Precisa de uma
resposta da pessoa que a vá fazendo socorrer-se dos meios necessários, dos
crescimentos necessários para corresponder com a sua humanidade àquela vocação.
Não me parece que seja possível educar para o celibato uma
pessoa que não tenha de todo vocação. Pode-se educar uma pessoa para ser
celibatária no sentido formal, mas aqui o celibato no sacerdócio é um homem que
se põe de coração inteiro para o serviço das comunidades. O problema do
celibato não é só a continência sexual, “Aquele homem vai ser impecável, não se
vai meter com mulher nenhuma”, não, aquele homem vai ser celibatário porque o
coração dele, os sentimentos dele, a vida dele é para consagrar às comunidades
que apareçam, portanto a vocação do celibato neste caso é uma vocação para dar
mais, para amar mais. Isso só se educa como dom de Deus, isso não se tem se
Deus não concede, essa capacidade de amar, é impossível.
Como é que se explica
a um rapaz que quer ser padre que, afinal, não poderá ser?
Para mim o mais difícil não é dizer… Se eu tenho que dizer a
um seminarista que não, de todo, especialmente se ele tiver muito concentrado
ali… O que é raro acontecer, porque vamos fazendo um acompanhamento que vai
tornando claro o que são capacidades, o que não são capacidades, dimensões mais
sintonizadas com isto ou não.
O mais difícil é ver uma pessoa que podia crescer e não
cresce. Que poderia desabrochar e não desabrocha. Que podia ser brilhante e é
só mediano. Ou, nesse caso, ver sair um seminarista porque foi a opção mais
fácil. Isso é que custa.
Já saíram seminaristas que deram tudo o que tinham para dar,
e perceberam que esta foi uma experiência boa, mas a vocação é o matrimónio… Óptimo.
Uma pessoa que não dá tudo o que tem é uma pessoa que não é inteiramente
pessoa, isso é o que custa mais.
Em relação ao seu
trabalho no seminário, ao longo destes anos, qual foi o ponto mais alto e qual
o ponto mais baixo?
Não sei dizer… Todos os anos têm pontos altos e pontos
baixos.
Os pontos altos são os pontos onde a nossa intervenção gera
realmente crescimento, onde as insistências, as atenções, geram crescimento
fazem aquela pessoa desabrochar, mergulhar mais seriamente no mistério de Jesus
Cristo, abrir o coração e dar-se. Isso, graças a Deus, acontece todos os anos,
porque todos os anos temos pessoas aqui em etapas diferentes do processo.
Os pontos mais baixos, para mim, são os pontos da minha
fraqueza, do meu erro, e no exercício aqui do ministério os pontos mais baixos
são os das apostas falhadas. A gente insiste, insiste, ou puxa, puxa e não deu.
Ou só deu metade do que podia dar… São pontos baixos. Claro que, como se
imagina, numa vida de gente em casa há pontos baixos que têm a ver com as tensões
vividas quer pessoalmente quer comunitariamente, com algum problema que houve
com este ou com um grupo, e isso também acontece de vez em quando.
Nestes anos houve aqui dois momentos que me parecem muito
interessantes. Um foi no ano 2001, começarmos com a aventura de instituir o ano
propedêutico, redefinindo a organização pedagógica do seminário, integrando o
ano propedêutico. Isso correspondeu a dois anos prévios de estudo, e debate e
trabalho, e depois a implementação, e ver ao longo destes dois anos a
consolidação do projecto tem sido óptimo.
Depois, um outro ponto alto, ou interessante, foi o ano
passado termos encetado uma experiência para completar o processo de
discernimento vocacional de alguns que precisavam de uma distensão dos três
anos, termos integrado na vida paroquial três alunos, que passaram a viver com
dois priores, fazendo trabalho pastoral full-time, mas mantendo uma ligação de
estudo e relação com o seminário. Foi uma abertura para um formato diferenciado
que pode acrescentar valor.
Vivem em comunidade,
não faz falta um toque feminino?
Por acaso faz… Graças a Deus… Bom, somos trinta homens, 27 seminaristas
e 3 padres, e depois temos a Dona Benedita, que tem 101 anos, que foi
governanta do seminário toda a vida, e que é uma presença feminina já bisavó,
por assim dizer. Mas é uma presença feminina curiosa. Graças a Deus, como ela
mantém muita lucidez, permite-lhe catalisar os afectos dos seminaristas como
uma avó, e por outro lado fazer algumas intervenções de mulher, nas
apreciações, na sensibilidade, que é giro. Mesmo a nós padres às vezes
chama-nos atenção para algumas coisas.
Depois temos as empregadas, que tratam das coisas da casa,
as roupas as comidas, e essas coisas, que são senhoras. E depois, graças a
Deus, temos muita gente feminina que passa por cá. A professora de música é uma
senhora, a professora de jornalismo é uma senhora. Há muitas pessoas que são
acompanhadas por padres aqui do seminário ou que fazem parte de grupos que têm
relação com o seminário, e que passam por aqui, e por isso é muito frequente
termos ou à refeição, ou no bar, ou em reunião senhoras ou raparigas, ou o que
for. Portanto vai havendo aqui um certo contacto com o feminino, para além de
que os universitários têm raparigas de quem são colegas, e os do propedêutico,
no trabalho apostólico que têm, têm contacto com raparigas.
Em permanência, gostaríamos de ter uma governanta que fosse
assim uma espécie de mãe da casa. Mas como ainda não nos apareceu a pessoa com
o perfil certo, porque implica alguma disponibilidade, e uma maturidade humana
e espiritual, não temos. Gostávamos de ter outra D. Benedita.
Nunca teve uma paróquia,
faz-lhe falta um trabalho mais pastoral?
Não sei dizer se me faz falta ou não. Não penso muito no
assunto. Procuro estar concentrado no seminário e nas coisas que tenho para
fazer para lá do seminário. Não sinto falta no que diz respeito ao contacto com
a diversidade de pessoas. Tenho as equipas de casais, tenho muitas pessoas que
acompanho pessoalmente, trabalho no sector de animação espiritual da diocese e
tenho a escola de formação que implica muitas coisas de formação com leigos e
com todo o género de pessoas, por isso essa coisa que podia acontecer, falta de
contacto com gente noutro estádio de vida, com outro tipo de preocupações, não
acontece graças a Deus, por isso não sinto falta de paróquia.
Até porque o trabalho num seminário é um trabalho muito
específico, com um conjunto de limitações humanas, está aqui, não tem a
flexibilidade que um trabalho de paróquia tem, mas é um trabalho que
progressivamente se vai apurando e de que a gente vai aprendendo a gostar. E
actualmente gosto imenso de estar aqui, por isso não penso muito no que seria
se fosse uma paróquia. Eventualmente poderá acontecer, o Sr. Patriarca
mandar-me para uma paróquia e presumo que vai ser divertidíssimo.
Acompanha muitos
casais, seja de namorados, seja casados, porque é que é tão procurado por estas
pessoas?
Não sei dizer se tenho vocação para isso. Cresceu comigo,
nestes anos de sacerdote, muita gente vir procurar-me para acompanhamento
individual, para discernir coisas. O acompanhamento nos namoros e preparação
para o casamento decorreu daí, porque as pessoas que eu acompanhava me pediam
ajuda específica.
Na preparação para os casamentos houve um episódio
engraçado, porque num mesmo ano casavam sete casais e quase todos eram
acompanhados em direcção espiritual por mim. E portanto desafiaram-me a fazer
ao longo desse ano um CPM personalizado para eles, uma vez que os conhecia e
portanto nesse ano fiz um processo, montámos um processo de preparação imediata
para o matrimónio, passando por uma série de temas e objectivos a cumprir, e
essa ferramenta ficou, e tenho-a aplicado quer em grupos mais pequenos, quer em
forma personalizada em outros casais, e isto é como em tudo, vamos apurando a
sensibilidade ao que está bem no casal, o que faz falta, o que não faz, o que é
que são as etapas de crescimento em que é preciso apostar, a experiência
vai-nos trazendo isso, e tem acontecido.
O que faz nos tempos
livres?
É muito pouco tempo livre, muito pouco. No muito pouco tempo
livre, um bocadinho de leitura, alguma coisa que vou tendo como leitura de
cabeceira. Aí especialmente nas férias, recupero o tempo perdido no que diz
respeito a isso. Algum tempo de passeio, de sair um bocado para dar uma volta
com os amigos, e depois umas coisas normais, um ou outro dia para ver o
Sporting, um ou outro filme de cinema, uma ou outra coisa de arte mais
interessante…
No Verão quando tenho tempo, porque às vezes no Verão é
quando faço umas coisas extra para as quais não tenho tempo no ano lectivo, o
descanso continuado, que é óptimo para mim, ficar uma semana no Alentejo,
metido num sítio tranquilo, sem fazer nada, o que muitas vezes faço com colegas
padres, ou então fazer uma viagem, ir a um destino, conhecer, é uma coisa que
me descansa imenso, ir ver outras cores, outras formas.
O que é para si ser
padre?
Para mim é uma experiência muito dolorosa e muito feliz. E
explico porquê. Porque me tem chamado a viver ao limite de mim como pessoa e ao
limite do que sou capaz de dar e do que sou capaz de receber de Deus, e
portanto nisso tem sido uma experiência por um lado muitíssimo feliz, de
encontro às maravilhas do que Deus faz nas vidas das pessoas, da forma como
Jesus é capaz de mudar a vida de uma pessoa, o coração de uma pessoa, e para
mim é surpreendente como Jesus é capaz de fazer isso através de um gajo como
eu.
E tem tido momentos de sofrimento porque amar dói. Há aqui
umas medidas de amor que implicam deixar para trás coisas que eu gostava ou uns
formatos que para mim eram mais confortáveis, e implica um debate com a minha
fragilidade e com o meu pecado, que às vezes é dolorosa.
Estar no meio de um ministério tão grande, estar no meio da
vida das pessoas que é encontrar em mim coisas mesquinhas, menores, é um debate
complicado. Para mim tem sido muito extraordinário o milagre que é poder estar
no meio da vida das pessoas, o sacerdote tem o privilégio de poder estar na
intimidade das pessoas, no santuário mais interior das pessoas, e aí ser
condutor. Isso para mim é extraordinário.
Depois, para mim também tem sido a graça de celebrar missa
todos os dias, de ir mastigando mais seriamente o Evangelho de Jesus e de ver
que aquele Evangelho faz efeito, quando ele é dado e recebido, faz mesmo
efeito. Tenho, nesta parte do trabalho da formação sacerdotal, tenho sempre uma
interrogação e uma inquietação. Os padres nos próximos 30, 40, 50 anos também
vão ser o que eu fiz.
Epá, espero que Nosso Senhor não me cobre muito, vamos ver,
é uma coisa muito séria. Às vezes aqui em casa falamos disso, uma parte deste
clero vai ser o que a gente fez… Fazemos o que podemos.
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Gostei muito da entrevista e admiro muito as pessoas que dedicam a sua vida a orientar a vida espiritual das outras pessoas, sei que não é fácil, mas em qualquer caminhada que seguimos, encontramos sempre obstáculos.
ReplyDeleteEu admiro e valorizo muito a paciência e o dom que os Senhores padres têm de saberem.escutar....