Thursday, 6 August 2015

Aborto: "Se eu soubesse que havia ajudas, não tinha feito o que fiz"

Transcrição integral da entrevista a Joana Tinoco de Faria, psicóloga do Apoio à Vida, uma instituição que ajuda mulheres grávidas em dificuldades. Pode ver a reportagem aqui.


Casos com os da Vanessa, de meninas a engravidar aos 12 anos ou até menos, são comuns?
Comuns não, não na nossa realidade. Normalmente sabemos quem são esses casos. A partir dos 14 para a frente é mais comum.

Uma rapariga assim tem capacidade mental para levar a cabo uma gravidez e assumir a maternidade?
Em termos de maturação, mesmo ao nível do desenvolvimento cognitivo, do desenvolvimento da inteligência – que depois se repercute no desenvolvimento emocional, e na capacidade emocional que terá – há de facto algumas coisas que precisam de muita ajuda para crescerem ao mesmo tempo que as exigências da maternidade interferem com esta fase do crescimento.

Se tem capacidade mental? Acho que dizer que não tem também não é justo. Sobretudo porque depois a cultura influi muito, e nós lidamos com culturas em que isto pode ser uma realidade mais próxima e os papeis sociais que se desempenham, a capacidade mental adapta-se a este tipo de circunstâncias. Numa cultura como a nossa, e numa sociedade como a nossa, em que se privilegia mais o facto de a criança viver a sua infância, eventualmente estará menos preparada para desempenhar este papel e é mais exigente do que em culturas em que a maternidade é mais precoce.

Quando fala de culturas em que a maternidade é mais precoce... Trabalham muito com pessoas de ascendência africana, é isso?
Sim.

Portanto é diferente trabalhar com pessoas dessas comunidades ou de outras?
É muito diferente. Não só a forma como a maternidade é ou não vivida e valorizada, socialmente e culturalmente, é totalmente diferente. E depois na forma como somos aceites ou não, como intervenção externa, isso também é muito diferente, por isso temos de nos adaptar à cultura da qual nos aproximamos. 

Levou tempo a perceberem isso?
Leva tempo a perceber e é importante estarmos atentos. Porque para nós às vezes é tão óbvio, determinadas formas de fazer e de desempenhar papéis, que percebemos que estamos tão longe de quem nos estamos a aproximar que o nosso ponto de partida tem de ser outro, tem de ser o da pessoa que temos à frente, perceber qual é e depois fazermos o caminho em conjunto.

Quando lhe perguntei se haveria capacidade mental, achei interessante que respondeu que há coisas que "precisam de mais ajuda", dando a entender que é possível chegar-se lá. O que ouvimos dizer muitas vezes é que nestes casos a melhor solução será quase invariavelmente o aborto. Não concorda?
Não concordo sobretudo com o estanque que é essa resposta. Sobretudo porque há muitos factores que influenciam. Isto ser matematicamente uma resposta, para mim não faz sentido. Temos de perceber as circunstâncias em que a pessoa existe, é, vive, cresce e a forma como a família apoia ou não apoia, que é verdade que para uma criança de 12 anos é um desafio enorme, ninguém tem dúvidas. Que não é possível desempenhar esse papel… Acho que de acordo com a nossa experiência não podemos dizer que não é possível.

Quando uma rapariga nova, numa situação complicada, procura um aborto, o que é que lhe está a passar pela cabeça?
É muito diferente o que uma rapariga desta idade pode pensar, ou de outras idades. Porque esta fase de desenvolvimento é caracterizada por um egocentrismo e até mesmo a nível de inteligência o pensamento é muito autocentrado. E por isso há a valorização, tipicamente, das tarefas que são normais nesta época do crescimento, a brincadeira, os amigos, as tarefas escolares, a forma como lidam, ou não, com a família. E normalmente isto é um dos factores que influi muito na forma como é vivida uma gravidez, ou até nas razões do aparecimento da gravidez, porque muitas vezes as gravidezes surgem, psicologicamente, como um grito inconsciente, pelo menos na minha perspectiva, de autonomia e até de uma construção de um projecto de família desfasado – isto é, fantasioso – mas um grito por uma família própria, um porto de abrigo, em famílias em que isto se calhar não existe.

Nestas idades também? Ou sobretudo mais tarde?
Da nossa realidade, lidamos muitas vezes com famílias que são lugares de afecto insuficiente e qualquer criança sente isso. E depois, para além disso, são zonas em que há subculturas em que a maternidade na adolescência de alguma forma é aceite, existe, há sempre casos que existem e que se conhecem, e portanto nestes contextos – e esta realidade é próxima daquela em que actuamos – isso existe e acontece, ou seja, há uma repetição de um modelo que mesmo que não seja consciente – e não é de todo – inconscientemente procura-se. E muitas vezes as mães destas raparigas foram mães muito novas e portanto são modelos que se acabam por se absorver, sem crítica, e portanto reproduzem-se sem ter consciência que se está a reproduzir. Sim, é possível isto acontecer nestas idades. 

Depois, obviamente, a forma como se vive a sexualidade… Como muitas vezes os pais são pré-adolescentes que não têm muitas balizas a vivência da afectividade é feita de forma mais desordenada e acontece uma gravidez em contextos completamente inesperados, tanto que muitas vezes não há o reconhecimento dos sintomas nesta idade, porque é de tal forma uma coisa fora de âmbito que nem sequer se reconhece. Nestas idades acontece isto com alguma frequência.

Existe alguma noção dos eventuais efeitos negativos psicológicos de uma decisão dessas?
Não há. É uma fase do desenvolvimento em que há um egocentrismo e uma síndrome de imortalidade, em que se pensa que acontece aos outros mas não a mim. É muito difícil conseguir-se esta capacidade do que vai acontecer nesta fase da pré-adolescência. É praticamente inexistente. É viver o hoje, é resolver o que o hoje me apresenta e é também uma forma de viver muito autocentrada, muito à volta do que "me apetece".

Paradoxalmente acontece-nos, e não é um nem dois – só vou falar da nossa realidade, não vou generalizar porque não tenho dados para isso – acontece muitas vezes estas raparigas, no discurso, não quererem abortar porque – e isso também tem a ver com essa perspectiva do "eu" e do egocentrismo – porque é "o meu bebé" "o meu filho" e é alguém que "a mim me vai dar" o afecto que de alguma forma não tive. E portanto eu acho que nesta perspectiva, e da minha experiência, isso acontece-nos com frequência.

Se calhar as situações que eu acompanhei em que houve dúvidas em relação à gravidez ou em que eu acompanhei essa fase, não é tão típico nesta etapa de crescimento, mas mais velhas. Se ponderam abortar nesta etapa tem sobretudo a ver ou com a pressão da família, o que acontece com frequência. A família tem aqui um peso fundamental, sobretudo nestas idades, e normalmente é a família que não vê uma maternidade adolescente como uma possibilidade na vida daquela rapariga.

Claro que também existe a adolescente que quer abortar, claro que existe, se calhar não passou tanto por mim... Mas tem a ver sobretudo com as dificuldades que isso lhe traz ao dia-a-dia concreto, aos objectivos concretos do dia-a-dia, do querer sair com as amigas, do não querer ter essa responsabilidade. Mas não há muita capacidade de amadurecer este tipo de decisão, portanto normalmente a família tem um impacto muito mais preponderante nesta etapa do desenvolvimento do que numa mulher mais adulta.

Nesses casos, falando nomeadamente da pressão da família, pode haver a ideia de que o aborto resolve e o problema desaparece. Mas isso pode não ser assim...
Pode não ser assim.

Acho que a mentalidade é que parece uma resolução, o chamado "desengravidar", isto é, "engravidaste, mas vamos 'resolver' o assunto" e é frequentemente assim que é abordado este assunto. Nem sequer se fala em aborto ou interrupção, ou fala-se quando é estritamente necessário, grande parte das vezes fala-se do assunto e é "aquele" assunto.

Acho que a família, grande parte das vezes acredita que está a fazer o melhor, porque é mesmo devolver à criança aquela infância, é essa a mentalidade. Resta saber se passar por uma experiência como o aborto, ainda que não se tenha a verdadeira consciência daquilo que se está a fazer – porque em termos maturacionais não é possível ter a consciência do que é – resta saber se este impacto, mais tarde, não se vai sentir de outras formas. Na nossa experiência, de alguma forma temos tido, mais tarde, mesmo a nível de sintomas mais somáticos, formas de somatizar o mal-estar. Aparece também, muitas vezes associado a situações de abortos anteriores, porque não foi possível elaborar a nível psíquico a experiência e portanto o corpo acaba por tentar elaborar. 

É a forma que a família tem, muitas vezes, acha que está a devolver a vida àquela adolescente, a vida que tinha, de não ter essa preocupação extra. Mas a nível do desenvolvimento posterior há muitos pontos de interrogação do que isto traz de facto à vida desta jovem. 

E temos algumas histórias de algumas raparigas, que se rebelam contra a família, porque não querem mesmo [abortar]. Quando esta forma de viver, mais virada para si, pode ser vivida, e temos alguns casos assim, de tal protecção de si e do bebé que é seu, que se rebelam contra a família e até se põem em risco, porque no fundo agem em fuga para a frente para se protegerem quando estão a ser mesmo pressionadas e há situações em que fogem de casa porque querem manter a gravidez. Temos alguns casos em que isto aconteceu.

O que é que se diz a uma rapariga com tamanha imaturidade, ou até mais velha, para a encorajar a manter a gravidez?
Se nós pudéssemos falar com uma rapariga nessas circunstâncias, em primeiro lugar ouvi-la. Nestas idades, exactamente por esta insuficiência de maturidade, normalmente não se ouve muito aquilo que a jovem quer.

Ouvi-la, perceber, ouvir de si o que ela valoriza, a vida naquela etapa, que significado atribui a essa gravidez, em que circunstâncias surge e qual é o significado e projecto que ela pode ter, ou não, com esta gravidez.

Isto, claramente, numa primeira abordagem. Depois depende da vontade dela, que ela expressar. Acho que é muito importante falar sobre aquilo que é o aborto. É importante que dentro da maturidade que a pessoa tem, lhe seja explicado aquilo que é o procedimento e o que vai implicar para ela. Isto seria a forma de acolher e informar. 

Em última análise, dizer-lhe que a decisão é sempre acompanhada e que ela não está sozinha, independentemente de poder haver a ideia de que se ela decidir para um lado vai ficar sozinha. Isto tem um peso muito grande, porque a ameaça de ficar sem ninguém pesa muito, em prole de uma coisa tão desafiante e tão difícil que é uma gravidez nestas etapas. 

Por isso mostrar este suporte e dizer que se, de facto, há vontade de prosseguir, há vontade de aceitar esta ajuda, mostrar que não está sozinha e que é possível fazer este caminho.

Uma das coisas que por acaso se tem mostrado muito útil na nossa experiência, para as pessoas que acompanhamos, é tentar que esta jovem fale com alguém que tenha passado por uma situação semelhante. É sempre diferente alguém que passou por uma situação e a vida entretanto encarregou-se de seguir, e há raparigas que seguiram com as suas vidas e passaram alturas de crise e reconstruíram a partir daí, e isto pode ajudar ao sentimento de solidão de que sou a única que passo por uma coisa destas e preciso mesmo de abortar porque a família pressiona, ou não vou ser capaz, portanto sim, muito suporte, informação consoante o grau de maturidade e perceber muito bem, tornar-lhe claro a vontade dela, muitas vezes a vontade está completamente contaminada por aquilo que foi ouvindo. Portanto é preciso perceber, dentro da jovem que é, tentar fazer vir à tona aquilo que ela própria quer. 


Trabalhando neste campo, conhece casos de raparigas que se tenham arrependido de ter os seus bebés?
Eu não conheço. 

E o contrário?
Sim. Algumas daquelas que mais me marcam, em relação a este tema, são as que engravidam mais tarde, pode ser anos depois, e voltam a procurar-nos e o pedido que fazem é "eu só não quero voltar a fazer o que fiz, porque por isso não quero passar outra vez". 

E foram decisões tomadas, às vezes, pelas próprias. Este pedido, que é, "eu não sei como é que vou levar isto para a frente, mas não quero passar por esta situação outra vez. E não é uma nem duas, são bastantes. Depois arranjam outros significados, mas a única coisa que sabem é que não querem passar por aquilo outra vez.

Há uma história que me marca muito. Uma vez fui a uma escola falar sobre a nossa intervenção a nível social e psicológico, gravidez, maternidade... Não tinha a ver com o tópico do aborto. Fui falar a uma turma e no fim, quando estava a sair, houve uma rapariga que se aproximou de mim e que disse que gostava de falar comigo. Fiquei meio atrapalhada, porque não estava a perceber bem o que queria. Ela vinha assim meio de lágrimas nos olhos e disse-me: "Só lhe quero pedir um favor: Que falem disto a mais gente. Porque se eu soubesse o que sei hoje, não tinha feito o que fiz. Se soubesse que havia ajudas, eu não tinha feito o que fiz". 

Que idade é que ela tinha? 
Tinha 17 ou 18, mas tinha feito um aborto com 15/16 anos. 

Isto foi das coisas que mais me marcou, no sentido de perceber que é importante que as pessoas saibam que existe ajuda, ajuda até no sentido de pensar e de ajudar, porque agir em fuga para a frente e tomar decisões precipitadas, que é o que muitas vezes acontece, não constrói nada.

Voltando ao caso da Vanessa, este imprevisto na sua vida acabou por ser um pivot para ela dar a volta por cima. A própria admite que de outra maneira dificilmente se teria “endireitado”. Isso acontece muitas vezes? Pode-se dizer que é regra?
Que é uma oportunidade para isso, não há dúvida. Resta saber como é que é agarrada e com que apoio. Porque, que é muitíssimo desafiante, é. Ainda por cima com as fragilidades da estrutura anterior, agora, não há dúvida – e a Vanessa é um exemplo disso – que de alguma forma é como se a gravidez fosse um travão a si próprio, uma tentativa de ser alguém, esta coisa mesmo da autonomia, do grito, de agarrar na minha vida e fazer alguma coisa. Isto surge, e surge também em mulheres adultas, com vidas mais complicadas e muitas delas falam nisso, mesmo quando decidem depois abortar. 

Tenho várias situações, mesmo de mulheres que acabaram depois por abortar, que têm esta percepção de que "posso fazer alguma coisa diferente com isto".

Para mim, é claramente uma oportunidade e isso é reconhecido por muitas que passam por esta situação, independentemente da crise ou da intensidade da crise que a gravidez inesperada gera. Agora, que depois ela pode ou não ser agarrada e abraçada, e construída como a Vanessa a construiu, isso depende de cada uma e do esforço, do nosso trabalho, daquilo que da nossa parte depende, da família...

Na família a reacção inicial nunca é a reacção final. Nós dizemos muito isto, só que dizer é uma coisa, viver é outra. Viver com o pânico de que a família nos abandone... não há chantagem maior que esta.

Por isso é uma oportunidade, isto tenho claro.

Ainda acontece muito, as famílias dizerem "ou abortas ou sais de casa?"
Sim. Estou no Apoio à Vida há 10 anos e apanhei a mudança da lei. Agora acho que até é mais duro. Agora só não abortas se não quiseres, portanto "quem és tu, para decidir com esta idade, pôr-me este peso em cima" – porque ainda por cima está dependente, estamos a falar de jovens dependentes dos pais. 

Antigamente a família estaria a ser cúmplice de violação da lei, enquanto agora...
Exactamente. A lei está do lado da família que tem muitas dificuldades em ver isto como cenário possível. Portanto a jovem nesse sentido, se quer prosseguir com a gravidez, tem a vida muito mais dificultada.

Vou alargar, jovem e mulher, porque das situações que acompanho é em qualquer idade, quando para quem não quer assumir a responsabilidade, esta lei, se a mulher estiver dentro do prazo das 10 semanas, está desprotegida se quer prosseguir. Está muito desprotegida. 

Portanto sim, acontece e acho que a pressão é mais forte desde a mudança da lei. 

Até porque a nível social isto tem repercussões. Uma vez fui falar a uma escola em que numa turma de vinte e tal alunos não era uma possibilidade prosseguir uma gravidez antes de ter uma vida estabilizada. Isto em termos de mentalidade vai construindo a forma de pensar a vida. Sem dúvida que isto também contamina e as pessoas estão imbuídas desta mentalidade e nesse sentido notamos que a pressão da família é mais severa, e de formas até mais violentas por parte da família e às vezes do pai da criança, porque é só a vontade dela que está em causa. Antes era a lei, mas agora é só a vontade dela.

E nos casos em que não acontece? Em que se vê repetir o ciclo vicioso de famílias desestruturadas, com a probabilidade de a criança crescer na mesma situação… Mesmo aí sente que vale a pena o trabalho que faz?
Eu não tenho dúvida. Mesmo com tudo o que tenho visto - e tenho crescido muito com o trabalho que desenvolvi aqui - porque acho que a nossa visão das coisas é muitas vezes posta à prova, porque crescemos muito e voltamos... Até podemos olhar da mesma forma, mas demos uma grande volta para olhar daquela forma outra vez. 

Eu não tenho dúvida, ainda que a mãe e o bebé não fiquem juntos, e isto é difícil de explicar, mas isto tem a ver também com a forma como... Ou seja, aquela etapa de crescimento, para aquela mulher, são competências adquiridas.

Independentemente da dificuldade que é a retirada do bebé (e não quer dizer que o bebé não volte mais tarde para aquela família), aquela rapariga muitas vezes deu tudo o que tinha e não conseguiu assegurar o que o bebé precisava, isto acontece, e é uma dor enorme acompanhar isto. Porque ela deu tudo, dentro das suas circunstâncias e da sua medida. Mas aquilo que ela deu, e o que cresceu com isso, já não lhe é retirado. E não teria crescido, tendo em conta as circunstâncias, e provavelmente, como a Vanessa dizia, e vemos muitas vezes isso, muitas vezes as vidas vão-se degradando e repetindo ainda mais os modelos disfuncionais, se não há nada de funcional que as puxe. 

Portanto eu acredito, e tenho visto, porque mesmo que às vezes as crianças são criadas pela família alargada, ou a responsabilidade é de um familiar, ou de alguém próximo, e estas raparigas continuam a ter contacto com o filho e muitas vezes o único papel que se sentem dignas de ter é o da maternidade. E isso fá-las quererem ser alguém, para depois dar o exemplo aos filhos. Que pena que seja a única coisa que apele a essa dignidade que elas têm como pessoas, porque não é o única, mas é o que elas sentem – mas que bom que haja uma.

Por isso acredito que a linha não acaba, mesmo quando há um processo de retirada, porque ninguém quer isso e ninguém deseja isso, mas a partir daí também muita história se pode construir. 

Também no caso da Vanessa, o pai da criança é uma pessoa quase totalmente ausente da sua vida, e sempre foi. Que importância tem a presença do pai em todos estes casos?
Na nossa experiência – nesse aspecto temos muito caminho para andar – os pais estão muito ausentes. Daquilo que me parece, estão voluntariamente ausentes, o que me parece uma grande infelicidade, não só para as mães como também para as crianças.

De alguma forma a sociedade contribui para que estejam ausentes. Há-de haver aqui uma dinâmica que promove esta ausência. Obviamente que as circunstâncias em termos sociais, mas em termos de decisões, quando uma mulher quer prosseguir e o homem não quer, assistimos frequentemente a uma desresponsabilização do homem, e a mulher arca com as responsabilidades sozinha. Aqui o pai da criança não é tido nem achado, até hoje, naquilo que toca à decisão de prosseguir com a gravidez. Desresponsabiliza para um lado ou para outro, se um homem se quer responsabilizar também não tem voz activa. Era importante aqui dar a cada um o seu papel. 

Há muito trabalho por fazer e mesmo em termos de sociedade. Da nossa realidade, muitas vezes tentamos envolver os pais nesta perspectiva, e de trabalhar o casal parental não só na atribuição de responsabilidades mas também de gratificações, de os pais poderem assistir ao crescimento dos seus filhos e de se poderem entusiasmar com isso. 

Depende também dos papéis culturais que os homens são chamados a ter como pais, isto também é muito diferente nas diversas culturas. Portanto o que sinto é que daquilo que é a nossa perspectiva, sem dúvida temos que fazer mais para envolver os pais, mas é muito difícil. Se a nível de sociedade pudesse haver uma ajuda talvez os pais se sentissem mais com esta responsabilidade de estar presentes e podia-se fazer aqui qualquer coisa. Assim, sinto que remamos muito sozinhos. Por esta presença do pai, quer quando o bebé está na barriga ou é uma decisão de prosseguir ou não, acho que isto devia ser desde o início, porque é o que faz sentido.

Estamos aqui a falar muito dos efeitos destas decisões sobre as raparigas. E sobre vocês, que as acompanham? Como é que se “protegem”?
Proteger, acho que não dá.

Acho que não dá e acho que não é o que nos é pedido. É óbvio que é importante termos a distância suficiente para sabermos acompanhar melhor as pessoas, e essa distância é sempre uma tensão entre os dois polos, porque não é um equilíbrio estanque e às vezes sobrenvolvemo-nos ou subenvolvemo-nos, mas sem dúvida o que hoje percebo é que para acompanhar pessoas em situação de crise, é importante encontrarem do outro lado uma disponibilidade que lhes permite abrirem-se, e nós temos de trabalhar isso cada uma em si, e acho que isso tem a ver com o caminho pessoal de cada uma, de cada um dos profissionais que lida com as situações, e depois em equipa termos um espaço – e aí acho que temos um ambiente que nos ajuda muito a viver isto, porque vivemos estas situações muito difíceis muitas vezes estamos todas a torcer e partilhamos muito isto, o que é fundamental. Isso é muito importante.

Depois, um caminho pessoal de perceber que se o outro não encontra em mim um lugar de disponibilidade, não vai abrir e não se vai permitir fazer caminho com esta companhia, porque não sente disponibilidade da companhia que encontra. Isso faz toda a diferença, toda a diferença.


Proteger? Acho que não é o que nos é pedido, e é importante isso. Porque os profissionais que trabalham estas áreas têm muito esta lógica da protecção. Uma certa distância é importante, claro, também para as nossas vidas pessoais, e até para as pessoas que acompanhamos... Encontrar lugar na equipa para podermos pôr a nu até as nossas fragilidades a lidar com o assunto, e depois temos o que é só nosso, que temos de fazer sozinhos, querer fazer um caminho de amadurecimento pessoal, para não endurecermos demais o nosso coração e perdermos essa disponibilidade.

Fala sempre no feminino... Não há aqui muitos homens a trabalhar no dia-a-dia, pois não? E isso faz falta?
Faz imensa falta!

Os únicos homens são o presidente e homens bebés... São as únicas presenças masculinas. Fazem imensa falta, porque há uma complementaridade entre homem e mulher que é fundamental. Quando o ambiente é demasiado feminino muitas vezes a subjectividade impera. Do mundo feminino temos a subjectividade e o envolvimento. É sem dúvida uma coisa maravilhosa, mas quando é demais, era importante haver presenças masculinas que temperassem isso. Mas depois, trabalhando com um universo tão feminino, também muito difícil e com questões tão delicadas, temos muito esta questão. É uma altura tão delicada para as mulheres e que tem de ser tratada com tanta delicadeza, que de repente a presença de um homem quando estamos a discutir a amamentação e os mamilos gretados e tudo o mais, de repente não é possível, ou pelo menos deixa as jovens aflitas.

Questões mais práticas... O que fazem aqui neste gabinete? 
Aqui é o gabinete de atendimento externo, que funciona em regime ambulatório. As famílias vêm cá. O que temos aqui é acompanhamento social, psicológico, de inserção profissional, aconselhamento jurídico e intervenção psicossocial em grupo, que é uma das formas de intervenção que sentimos que tem um impacto importante na vida destas mulheres, exactamente por esta experiência de percebermos que esta experiência de outras pessoas que passaram pelo mesmo pode ajudar, então criámos os grupos de mães que se acompanham desde o tempo da gravidez. 

Portanto uma rapariga chega aqui, está grávida e precisa de ajuda: É-lhe perguntado se quer manter o acompanhamento em grupo, é inserida num grupo que está organizado por trimestres de gestação e depois estas mulheres acompanham-se ao longo do tempo da gravidez e maternidade e aquilo a que chamamos a fase de autonomia, em que têm encontros quinzenais ou mensais, no tempo em que os bebés são mais pequeninos, e têm formações muito ao nível daquilo que são as etapas que vão vivendo, têm tempo de conversas de mães, para tirar dúvidas – e aqui nós somos meros facilitadores desta troca de experiências, depois há um tempo de conversa puxa conversa, porque para além de mães são outras coisas e por isso conversamos sobre outros assuntos, e isto tem a ver com a promoção de competências maternas e a promoção da rede de suporte, por isso para criarem ligação entre elas e poderem apoiar e suportar-se nesta fase, e temos experiências muito giras em que de repente uma vai visitar a outra e são elas que nos avisam que nasceu o bebé da não sei quantas, e isto é fundamental, porque há redes tão frágeis, e por redes tão frágeis é que muitas vezes surgem os problemas.

É na tentativa de prevenção de problemas que possam existir, nestas fases delicadas de saber como faço com o meu bebé, porque se não tenho a quem perguntar vou começar a fazer mal.

Quantas mulheres, por alto, é que atendem aqui por ano?
Por ano chegam-nos cerca de 300 a 350 mulheres, seja gravidez e maternidade. Chegam-nos mais ou menos 300 mulheres grávidas novas por ano, ou seja uma primeira vez a pedir ajuda. Com aquelas que vêm do ano anterior, abrange mais ou menos os 350.

Mas vocês não existem só para aquelas mulheres com dúvidas, em crise. Pode haver uma mulher perfeitamente decidida a manter a gravidez, mas que precisa de apoio de qualquer maneira...
Sim, sem dúvida. Acontece-nos mais chegarem esse tipo de situações, infelizmente, do que as mulheres com dúvidas. Esse é o nosso objectivo, chegar mais a quem tem dúvidas, um bocado também em nome do apelo que esta rapariga me fez nesta escola, de fazer chegar esta mensagem de ter um lugar onde se pode pensar o que se quer fazer nesta fase. Há muitas mulheres que passam por aqui e que decidem abortar, e que nos ligam a dizer que abortaram, e a quem apoiamos naquilo que for preciso na mesma. Se for preciso procurar emprego ajudamos a procurar emprego. Queremos é apoiar a mulher ao ponto de sentir que tem os recursos necessários para decidir da melhor maneira possível, porque muitas vezes a falta de liberdade condiciona as decisões. 

Mas se elas dizem que estão decididas a abortar, vocês não as encorajam nesse sentido...
Claro que não. Alertamos para aquilo que é para alertar, mas o objectivo é acompanhar. Claro que não dizemos isso, não é essa a nossa perspectiva, mas tentamos pensar em tudo o que seria possível de organizar para que seja possível prosseguir, porque muitas vezes o desejo lá no fundo é prosseguir, mas parece que as circunstâncias não estão a favor e não permitem, por “N” razões. Portanto tentamos desbloquear aquilo que está a bloquear, e depois a mulher é livre de decidir e obviamente nós estamos cá naquilo que ela precisar, mas não somos incentivadores do aborto, não.

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