Transcrição integral da entrevista a Joana Tinoco de Faria, psicóloga do Apoio à Vida, uma instituição que ajuda mulheres grávidas em dificuldades. Pode ver a reportagem aqui.
Casos com os da Vanessa, de meninas a
engravidar aos 12 anos ou até menos, são comuns?
Comuns não, não na
nossa realidade. Normalmente sabemos quem são esses casos. A partir dos 14 para
a frente é mais comum.
Uma rapariga assim tem capacidade mental para
levar a cabo uma gravidez e assumir a maternidade?
Em termos de
maturação, mesmo ao nível do desenvolvimento cognitivo, do desenvolvimento da
inteligência – que depois se repercute no desenvolvimento emocional, e na
capacidade emocional que terá – há de facto algumas coisas que precisam de
muita ajuda para crescerem ao mesmo tempo que as exigências da maternidade
interferem com esta fase do crescimento.
Se tem capacidade
mental? Acho que dizer que não tem também não é justo. Sobretudo porque depois
a cultura influi muito, e nós lidamos com culturas em que isto pode ser uma
realidade mais próxima e os papeis sociais que se desempenham, a capacidade
mental adapta-se a este tipo de circunstâncias. Numa cultura como a nossa, e
numa sociedade como a nossa, em que se privilegia mais o facto de a criança
viver a sua infância, eventualmente estará menos preparada para desempenhar
este papel e é mais exigente do que em culturas em que a maternidade é mais
precoce.
Quando fala de culturas em que a maternidade é
mais precoce... Trabalham muito com pessoas de ascendência africana, é isso?
Sim.
Portanto é diferente trabalhar com pessoas dessas comunidades ou de outras?
É muito diferente.
Não só a forma como a maternidade é ou não vivida e valorizada, socialmente e
culturalmente, é totalmente diferente. E depois na forma como somos aceites ou
não, como intervenção externa, isso também é muito diferente, por isso temos de
nos adaptar à cultura da qual nos aproximamos.
Levou tempo a perceberem isso?
Leva tempo a perceber
e é importante estarmos atentos. Porque para nós às vezes é tão óbvio,
determinadas formas de fazer e de desempenhar papéis, que percebemos que
estamos tão longe de quem nos estamos a aproximar que o nosso ponto de partida
tem de ser outro, tem de ser o da pessoa que temos à frente, perceber qual é e
depois fazermos o caminho em conjunto.
Quando lhe perguntei se haveria capacidade
mental, achei interessante que respondeu que há coisas que "precisam de
mais ajuda", dando a entender que é possível chegar-se lá. O que ouvimos
dizer muitas vezes é que nestes casos a melhor solução será quase
invariavelmente o aborto. Não concorda?
Não concordo
sobretudo com o estanque que é essa resposta. Sobretudo porque há muitos
factores que influenciam. Isto ser matematicamente uma resposta, para mim não
faz sentido. Temos de perceber as circunstâncias em que a pessoa existe, é,
vive, cresce e a forma como a família apoia ou não apoia, que é verdade que
para uma criança de 12 anos é um desafio enorme, ninguém tem dúvidas. Que não é
possível desempenhar esse papel… Acho que de acordo com a nossa experiência não
podemos dizer que não é possível.
Quando uma rapariga nova, numa situação
complicada, procura um aborto, o que é que lhe está a passar pela cabeça?
É muito diferente o
que uma rapariga desta idade pode pensar, ou de outras idades. Porque esta fase
de desenvolvimento é caracterizada por um egocentrismo e até mesmo a nível de
inteligência o pensamento é muito autocentrado. E por isso há a valorização,
tipicamente, das tarefas que são normais nesta época do crescimento, a
brincadeira, os amigos, as tarefas escolares, a forma como lidam, ou não, com a
família. E normalmente isto é um dos factores que influi muito na forma como é
vivida uma gravidez, ou até nas razões do aparecimento da gravidez, porque
muitas vezes as gravidezes surgem, psicologicamente, como um grito
inconsciente, pelo menos na minha perspectiva, de autonomia e até de uma
construção de um projecto de família desfasado – isto é, fantasioso – mas um
grito por uma família própria, um porto de abrigo, em famílias em que isto se
calhar não existe.
Nestas idades também? Ou sobretudo mais tarde?
Da nossa realidade,
lidamos muitas vezes com famílias que são lugares de afecto insuficiente e
qualquer criança sente isso. E depois, para além disso, são zonas em que há subculturas
em que a maternidade na adolescência de alguma forma é aceite, existe, há
sempre casos que existem e que se conhecem, e portanto nestes contextos – e
esta realidade é próxima daquela em que actuamos – isso existe e acontece, ou
seja, há uma repetição de um modelo que mesmo que não seja consciente – e não é
de todo – inconscientemente procura-se. E muitas vezes as mães destas raparigas
foram mães muito novas e portanto são modelos que se acabam por se absorver,
sem crítica, e portanto reproduzem-se sem ter consciência que se está a
reproduzir. Sim, é possível isto acontecer nestas idades.
Depois, obviamente,
a forma como se vive a sexualidade… Como muitas vezes os pais são
pré-adolescentes que não têm muitas balizas a vivência da afectividade é feita
de forma mais desordenada e acontece uma gravidez em contextos completamente
inesperados, tanto que muitas vezes não há o reconhecimento dos sintomas nesta
idade, porque é de tal forma uma coisa fora de âmbito que nem sequer se
reconhece. Nestas idades acontece isto com alguma frequência.
Existe alguma noção dos eventuais efeitos
negativos psicológicos de uma decisão dessas?
Não há. É uma fase
do desenvolvimento em que há um egocentrismo e uma síndrome de imortalidade, em
que se pensa que acontece aos outros mas não a mim. É muito difícil
conseguir-se esta capacidade do que vai acontecer nesta fase da pré-adolescência.
É praticamente inexistente. É viver o hoje, é resolver o que o hoje me
apresenta e é também uma forma de viver muito autocentrada, muito à volta do
que "me apetece".
Paradoxalmente acontece-nos,
e não é um nem dois – só vou falar da nossa realidade, não vou generalizar
porque não tenho dados para isso – acontece muitas vezes estas raparigas, no
discurso, não quererem abortar porque – e isso também tem a ver com essa perspectiva
do "eu" e do egocentrismo – porque é "o meu bebé" "o
meu filho" e é alguém que "a mim me vai dar" o afecto que de
alguma forma não tive. E portanto eu acho que nesta perspectiva, e da minha
experiência, isso acontece-nos com frequência.
Se calhar as
situações que eu acompanhei em que houve dúvidas em relação à gravidez ou em
que eu acompanhei essa fase, não é tão típico nesta etapa de crescimento, mas
mais velhas. Se ponderam abortar nesta etapa tem sobretudo a ver ou com a
pressão da família, o que acontece com frequência. A família tem aqui um peso
fundamental, sobretudo nestas idades, e normalmente é a família que não vê uma
maternidade adolescente como uma possibilidade na vida daquela rapariga.
Claro que também
existe a adolescente que quer abortar, claro que existe, se calhar não passou
tanto por mim... Mas tem a ver sobretudo com as dificuldades que isso lhe traz
ao dia-a-dia concreto, aos objectivos concretos do dia-a-dia, do querer sair
com as amigas, do não querer ter essa responsabilidade. Mas não há muita
capacidade de amadurecer este tipo de decisão, portanto normalmente a família
tem um impacto muito mais preponderante nesta etapa do desenvolvimento do que
numa mulher mais adulta.
Nesses casos, falando nomeadamente da pressão
da família, pode haver a ideia de que o aborto resolve e o problema desaparece.
Mas isso pode não ser assim...
Pode não ser assim.
Acho que a
mentalidade é que parece uma resolução, o chamado "desengravidar",
isto é, "engravidaste, mas vamos 'resolver' o assunto" e é
frequentemente assim que é abordado este assunto. Nem sequer se fala em aborto
ou interrupção, ou fala-se quando é estritamente necessário, grande parte das
vezes fala-se do assunto e é "aquele" assunto.
Acho que a família,
grande parte das vezes acredita que está a fazer o melhor, porque é mesmo
devolver à criança aquela infância, é essa a mentalidade. Resta saber se passar
por uma experiência como o aborto, ainda que não se tenha a verdadeira
consciência daquilo que se está a fazer – porque em termos maturacionais não é
possível ter a consciência do que é – resta saber se este impacto, mais tarde,
não se vai sentir de outras formas. Na nossa experiência, de alguma forma temos
tido, mais tarde, mesmo a nível de sintomas mais somáticos, formas de somatizar
o mal-estar. Aparece também, muitas vezes associado a situações de abortos
anteriores, porque não foi possível elaborar a nível psíquico a experiência e
portanto o corpo acaba por tentar elaborar.
É a forma que a
família tem, muitas vezes, acha que está a devolver a vida àquela adolescente,
a vida que tinha, de não ter essa preocupação extra. Mas a nível do
desenvolvimento posterior há muitos pontos de interrogação do que isto traz de
facto à vida desta jovem.
E temos algumas
histórias de algumas raparigas, que se rebelam contra a família, porque não
querem mesmo [abortar]. Quando esta forma de viver, mais virada para si, pode
ser vivida, e temos alguns casos assim, de tal protecção de si e do bebé que é
seu, que se rebelam contra a família e até se põem em risco, porque no fundo
agem em fuga para a frente para se protegerem quando estão a ser mesmo
pressionadas e há situações em que fogem de casa porque querem manter a
gravidez. Temos alguns casos em que isto aconteceu.
O que é que se diz a uma rapariga com tamanha
imaturidade, ou até mais velha, para a encorajar a manter a gravidez?
Se nós pudéssemos
falar com uma rapariga nessas circunstâncias, em primeiro lugar ouvi-la. Nestas
idades, exactamente por esta insuficiência de maturidade, normalmente não se
ouve muito aquilo que a jovem quer.
Ouvi-la, perceber,
ouvir de si o que ela valoriza, a vida naquela etapa, que significado atribui a
essa gravidez, em que circunstâncias surge e qual é o significado e projecto
que ela pode ter, ou não, com esta gravidez.
Isto, claramente,
numa primeira abordagem. Depois depende da vontade dela, que ela expressar.
Acho que é muito importante falar sobre aquilo que é o aborto. É importante que
dentro da maturidade que a pessoa tem, lhe seja explicado aquilo que é o
procedimento e o que vai implicar para ela. Isto seria a forma de acolher e
informar.
Em última análise,
dizer-lhe que a decisão é sempre acompanhada e que ela não está sozinha,
independentemente de poder haver a ideia de que se ela decidir para um lado vai
ficar sozinha. Isto tem um peso muito grande, porque a ameaça de ficar sem
ninguém pesa muito, em prole de uma coisa tão desafiante e tão difícil que é
uma gravidez nestas etapas.
Por isso mostrar
este suporte e dizer que se, de facto, há vontade de prosseguir, há vontade de
aceitar esta ajuda, mostrar que não está sozinha e que é possível fazer este
caminho.
Uma das coisas que
por acaso se tem mostrado muito útil na nossa experiência, para as pessoas que
acompanhamos, é tentar que esta jovem fale com alguém que tenha passado por uma
situação semelhante. É sempre diferente alguém que passou por uma situação e a
vida entretanto encarregou-se de seguir, e há raparigas que seguiram com as
suas vidas e passaram alturas de crise e reconstruíram a partir daí, e isto
pode ajudar ao sentimento de solidão de que sou a única que passo por uma coisa
destas e preciso mesmo de abortar porque a família pressiona, ou não vou ser
capaz, portanto sim, muito suporte, informação consoante o grau de maturidade e
perceber muito bem, tornar-lhe claro a vontade dela, muitas vezes a vontade
está completamente contaminada por aquilo que foi ouvindo. Portanto é preciso
perceber, dentro da jovem que é, tentar fazer vir à tona aquilo que ela própria
quer.
Trabalhando neste campo, conhece casos de
raparigas que se tenham arrependido de ter os seus bebés?
Eu não
conheço.
E o contrário?
Sim. Algumas
daquelas que mais me marcam, em relação a este tema, são as que engravidam mais
tarde, pode ser anos depois, e voltam a procurar-nos e o pedido que fazem é
"eu só não quero voltar a fazer o que fiz, porque por isso não quero
passar outra vez".
E foram decisões
tomadas, às vezes, pelas próprias. Este pedido, que é, "eu não sei como é
que vou levar isto para a frente, mas não quero passar por esta situação outra
vez. E não é uma nem duas, são bastantes. Depois arranjam outros significados,
mas a única coisa que sabem é que não querem passar por aquilo outra vez.
Há uma história que
me marca muito. Uma vez fui a uma escola falar sobre a nossa intervenção a
nível social e psicológico, gravidez, maternidade... Não tinha a ver com o
tópico do aborto. Fui falar a uma turma e no fim, quando estava a sair, houve
uma rapariga que se aproximou de mim e que disse que gostava de falar comigo.
Fiquei meio atrapalhada, porque não estava a perceber bem o que queria. Ela
vinha assim meio de lágrimas nos olhos e disse-me: "Só lhe quero pedir um
favor: Que falem disto a mais gente. Porque se eu soubesse o que sei hoje, não
tinha feito o que fiz. Se soubesse que havia ajudas, eu não tinha feito o que
fiz".
Que idade é que ela tinha?
Tinha 17 ou 18, mas
tinha feito um aborto com 15/16 anos.
Isto foi das coisas
que mais me marcou, no sentido de perceber que é importante que as pessoas
saibam que existe ajuda, ajuda até no sentido de pensar e de ajudar, porque
agir em fuga para a frente e tomar decisões precipitadas, que é o que muitas
vezes acontece, não constrói nada.
Voltando ao caso da
Vanessa, este imprevisto na sua vida acabou por ser um pivot para ela dar a
volta por cima. A própria admite que de outra maneira dificilmente se teria
“endireitado”. Isso acontece muitas vezes? Pode-se dizer que é regra?
Que é uma
oportunidade para isso, não há dúvida. Resta saber como é que é agarrada e com
que apoio. Porque, que é muitíssimo desafiante, é. Ainda por cima com as
fragilidades da estrutura anterior, agora, não há dúvida – e a Vanessa é um
exemplo disso – que de alguma forma é como se a gravidez fosse um travão a si
próprio, uma tentativa de ser alguém, esta coisa mesmo da autonomia, do grito,
de agarrar na minha vida e fazer alguma coisa. Isto surge, e surge também em
mulheres adultas, com vidas mais complicadas e muitas delas falam nisso, mesmo
quando decidem depois abortar.
Tenho várias
situações, mesmo de mulheres que acabaram depois por abortar, que têm esta
percepção de que "posso fazer alguma coisa diferente com isto".
Para mim, é
claramente uma oportunidade e isso é reconhecido por muitas que passam por esta
situação, independentemente da crise ou da intensidade da crise que a gravidez
inesperada gera. Agora, que depois ela pode ou não ser agarrada e abraçada, e
construída como a Vanessa a construiu, isso depende de cada uma e do esforço,
do nosso trabalho, daquilo que da nossa parte depende, da família...
Na família a
reacção inicial nunca é a reacção final. Nós dizemos muito isto, só que dizer é
uma coisa, viver é outra. Viver com o pânico de que a família nos abandone...
não há chantagem maior que esta.
Por isso é uma
oportunidade, isto tenho claro.
Ainda acontece muito, as famílias dizerem
"ou abortas ou sais de casa?"
Sim. Estou no Apoio
à Vida há 10 anos e apanhei a mudança da lei. Agora acho que até é mais duro.
Agora só não abortas se não quiseres, portanto "quem és tu, para decidir
com esta idade, pôr-me este peso em cima" – porque ainda por cima está
dependente, estamos a falar de jovens dependentes dos pais.
Antigamente a família estaria a ser cúmplice de
violação da lei, enquanto agora...
Exactamente. A lei
está do lado da família que tem muitas dificuldades em ver isto como cenário
possível. Portanto a jovem nesse sentido, se quer prosseguir com a gravidez,
tem a vida muito mais dificultada.
Vou alargar, jovem
e mulher, porque das situações que acompanho é em qualquer idade, quando para
quem não quer assumir a responsabilidade, esta lei, se a mulher estiver dentro
do prazo das 10 semanas, está desprotegida se quer prosseguir. Está muito
desprotegida.
Portanto sim, acontece e acho que a pressão é mais forte desde a mudança da lei.
Até porque a nível social isto tem repercussões. Uma vez fui falar a uma escola em que numa turma de vinte e tal alunos não era uma possibilidade prosseguir uma gravidez antes de ter uma vida estabilizada. Isto em termos de mentalidade vai construindo a forma de pensar a vida. Sem dúvida que isto também contamina e as pessoas estão imbuídas desta mentalidade e nesse sentido notamos que a pressão da família é mais severa, e de formas até mais violentas por parte da família e às vezes do pai da criança, porque é só a vontade dela que está em causa. Antes era a lei, mas agora é só a vontade dela.
E nos casos em que não acontece? Em que se vê repetir o ciclo vicioso de famílias desestruturadas, com a probabilidade de a criança crescer na mesma situação… Mesmo aí sente que vale a pena o trabalho que faz?
Eu não tenho
dúvida. Mesmo com tudo o que tenho visto - e tenho crescido muito com o
trabalho que desenvolvi aqui - porque acho que a nossa visão das coisas é muitas
vezes posta à prova, porque crescemos muito e voltamos... Até podemos olhar da
mesma forma, mas demos uma grande volta para olhar daquela forma outra
vez.
Eu não tenho
dúvida, ainda que a mãe e o bebé não fiquem juntos, e isto é difícil de explicar,
mas isto tem a ver também com a forma como... Ou seja, aquela etapa de
crescimento, para aquela mulher, são competências adquiridas.
Independentemente
da dificuldade que é a retirada do bebé (e não quer dizer que o bebé não volte
mais tarde para aquela família), aquela rapariga muitas vezes deu tudo o que
tinha e não conseguiu assegurar o que o bebé precisava, isto acontece, e é uma
dor enorme acompanhar isto. Porque ela deu tudo, dentro das suas circunstâncias
e da sua medida. Mas aquilo que ela deu, e o que cresceu com isso, já não lhe é
retirado. E não teria crescido, tendo em conta as circunstâncias, e
provavelmente, como a Vanessa dizia, e vemos muitas vezes isso, muitas vezes as
vidas vão-se degradando e repetindo ainda mais os modelos disfuncionais, se não
há nada de funcional que as puxe.
Portanto eu
acredito, e tenho visto, porque mesmo que às vezes as crianças são criadas pela
família alargada, ou a responsabilidade é de um familiar, ou de alguém próximo,
e estas raparigas continuam a ter contacto com o filho e muitas vezes o único
papel que se sentem dignas de ter é o da maternidade. E isso fá-las quererem
ser alguém, para depois dar o exemplo aos filhos. Que pena que seja a única
coisa que apele a essa dignidade que elas têm como pessoas, porque não é o
única, mas é o que elas sentem – mas que bom que haja uma.
Por isso acredito
que a linha não acaba, mesmo quando há um processo de retirada, porque ninguém
quer isso e ninguém deseja isso, mas a partir daí também muita história se pode
construir.
Também no caso da Vanessa, o pai da
criança é uma pessoa quase totalmente ausente da sua vida, e sempre foi. Que
importância tem a presença do pai em todos estes casos?
Na nossa
experiência – nesse aspecto temos muito caminho para andar – os pais estão muito
ausentes. Daquilo que me parece, estão voluntariamente ausentes, o que me
parece uma grande infelicidade, não só para as mães como também para as
crianças.
De alguma forma a
sociedade contribui para que estejam ausentes. Há-de haver aqui uma dinâmica que
promove esta ausência. Obviamente que as circunstâncias em termos sociais, mas
em termos de decisões, quando uma mulher quer prosseguir e o homem não quer,
assistimos frequentemente a uma desresponsabilização do homem, e a mulher arca
com as responsabilidades sozinha. Aqui o pai da criança não é tido nem achado,
até hoje, naquilo que toca à decisão de prosseguir com a gravidez.
Desresponsabiliza para um lado ou para outro, se um homem se quer
responsabilizar também não tem voz activa. Era importante aqui dar a cada um o seu
papel.
Há muito trabalho por fazer e mesmo em termos de sociedade. Da nossa realidade, muitas vezes tentamos envolver os pais nesta perspectiva, e de trabalhar o casal parental não só na atribuição de responsabilidades mas também de gratificações, de os pais poderem assistir ao crescimento dos seus filhos e de se poderem entusiasmar com isso.
Depende também dos papéis
culturais que os homens são chamados a ter como pais, isto também é muito
diferente nas diversas culturas. Portanto o que sinto é que daquilo que é a
nossa perspectiva, sem dúvida temos que fazer mais para envolver os pais, mas é
muito difícil. Se a nível de sociedade pudesse haver uma ajuda talvez os pais
se sentissem mais com esta responsabilidade de estar presentes e podia-se fazer
aqui qualquer coisa. Assim, sinto que remamos muito sozinhos. Por esta presença
do pai, quer quando o bebé está na barriga ou é uma decisão de prosseguir ou
não, acho que isto devia ser desde o início, porque é o que faz sentido.
Estamos aqui a falar muito dos efeitos
destas decisões sobre as raparigas. E sobre vocês, que as acompanham? Como é
que se “protegem”?
Proteger, acho que
não dá.
Acho que não dá e acho que não é o que nos é pedido. É óbvio que é importante termos a distância suficiente para sabermos acompanhar melhor as pessoas, e essa distância é sempre uma tensão entre os dois polos, porque não é um equilíbrio estanque e às vezes sobrenvolvemo-nos ou subenvolvemo-nos, mas sem dúvida o que hoje percebo é que para acompanhar pessoas em situação de crise, é importante encontrarem do outro lado uma disponibilidade que lhes permite abrirem-se, e nós temos de trabalhar isso cada uma em si, e acho que isso tem a ver com o caminho pessoal de cada uma, de cada um dos profissionais que lida com as situações, e depois em equipa termos um espaço – e aí acho que temos um ambiente que nos ajuda muito a viver isto, porque vivemos estas situações muito difíceis muitas vezes estamos todas a torcer e partilhamos muito isto, o que é fundamental. Isso é muito importante.
Depois, um caminho
pessoal de perceber que se o outro não encontra em mim um lugar de
disponibilidade, não vai abrir e não se vai permitir fazer caminho com esta
companhia, porque não sente disponibilidade da companhia que encontra. Isso faz
toda a diferença, toda a diferença.
Proteger? Acho que
não é o que nos é pedido, e é importante isso. Porque os profissionais que
trabalham estas áreas têm muito esta lógica da protecção. Uma certa distância é
importante, claro, também para as nossas vidas pessoais, e até para as pessoas
que acompanhamos... Encontrar lugar na equipa para podermos pôr a nu até as
nossas fragilidades a lidar com o assunto, e depois temos o que é só nosso, que
temos de fazer sozinhos, querer fazer um caminho de amadurecimento pessoal,
para não endurecermos demais o nosso coração e perdermos essa disponibilidade.
Fala sempre no feminino... Não há aqui muitos homens a trabalhar no dia-a-dia, pois não? E isso faz falta?
Faz imensa falta!
Os únicos homens
são o presidente e homens bebés... São as únicas presenças masculinas. Fazem
imensa falta, porque há uma complementaridade entre homem e mulher que é
fundamental. Quando o ambiente é demasiado feminino muitas vezes a
subjectividade impera. Do mundo feminino temos a subjectividade e o
envolvimento. É sem dúvida uma coisa maravilhosa, mas quando é demais, era
importante haver presenças masculinas que temperassem isso. Mas depois,
trabalhando com um universo tão feminino, também muito difícil e com questões
tão delicadas, temos muito esta questão. É uma altura tão delicada para as
mulheres e que tem de ser tratada com tanta delicadeza, que de repente a
presença de um homem quando estamos a discutir a amamentação e os mamilos
gretados e tudo o mais, de repente não é possível, ou pelo menos deixa as
jovens aflitas.
Questões mais práticas... O que fazem aqui
neste gabinete?
Aqui é o gabinete
de atendimento externo, que funciona em regime ambulatório. As famílias vêm cá.
O que temos aqui é acompanhamento social, psicológico, de inserção
profissional, aconselhamento jurídico e intervenção psicossocial em grupo, que
é uma das formas de intervenção que sentimos que tem um impacto importante na
vida destas mulheres, exactamente por esta experiência de percebermos que esta
experiência de outras pessoas que passaram pelo mesmo pode ajudar, então
criámos os grupos de mães que se acompanham desde o tempo da gravidez.
Portanto uma
rapariga chega aqui, está grávida e precisa de ajuda: É-lhe perguntado se quer
manter o acompanhamento em grupo, é inserida num grupo que está organizado por
trimestres de gestação e depois estas mulheres acompanham-se ao longo do tempo
da gravidez e maternidade e aquilo a que chamamos a fase de autonomia, em que
têm encontros quinzenais ou mensais, no tempo em que os bebés são mais
pequeninos, e têm formações muito ao nível daquilo que são as etapas que vão
vivendo, têm tempo de conversas de mães, para tirar dúvidas – e aqui nós somos
meros facilitadores desta troca de experiências, depois há um tempo de conversa
puxa conversa, porque para além de mães são outras coisas e por isso
conversamos sobre outros assuntos, e isto tem a ver com a promoção de
competências maternas e a promoção da rede de suporte, por isso para criarem
ligação entre elas e poderem apoiar e suportar-se nesta fase, e temos
experiências muito giras em que de repente uma vai visitar a outra e são elas
que nos avisam que nasceu o bebé da não sei quantas, e isto é fundamental,
porque há redes tão frágeis, e por redes tão frágeis é que muitas vezes surgem
os problemas.
É na tentativa de
prevenção de problemas que possam existir, nestas fases delicadas de saber como
faço com o meu bebé, porque se não tenho a quem perguntar vou começar a fazer
mal.
Quantas mulheres, por alto, é que atendem aqui
por ano?
Por ano chegam-nos
cerca de 300 a 350 mulheres, seja gravidez e maternidade. Chegam-nos mais ou
menos 300 mulheres grávidas novas por ano, ou seja uma primeira vez a pedir
ajuda. Com aquelas que vêm do ano anterior, abrange mais ou menos os 350.
Mas vocês não existem só para aquelas mulheres
com dúvidas, em crise. Pode haver uma mulher perfeitamente decidida a manter a
gravidez, mas que precisa de apoio de qualquer maneira...
Sim, sem dúvida.
Acontece-nos mais chegarem esse tipo de situações, infelizmente, do que as
mulheres com dúvidas. Esse é o nosso objectivo, chegar mais a quem tem dúvidas,
um bocado também em nome do apelo que esta rapariga me fez nesta escola, de
fazer chegar esta mensagem de ter um lugar onde se pode pensar o que se quer
fazer nesta fase. Há muitas mulheres que passam por aqui e que decidem abortar,
e que nos ligam a dizer que abortaram, e a quem apoiamos naquilo que for
preciso na mesma. Se for preciso procurar emprego ajudamos a procurar emprego.
Queremos é apoiar a mulher ao ponto de sentir que tem os recursos necessários
para decidir da melhor maneira possível, porque muitas vezes a falta de
liberdade condiciona as decisões.
Mas se elas dizem que estão decididas a
abortar, vocês não as encorajam nesse sentido...
Claro que não.
Alertamos para aquilo que é para alertar, mas o objectivo é acompanhar. Claro
que não dizemos isso, não é essa a nossa perspectiva, mas tentamos pensar em
tudo o que seria possível de organizar para que seja possível prosseguir,
porque muitas vezes o desejo lá no fundo é prosseguir, mas parece que as
circunstâncias não estão a favor e não permitem, por “N” razões. Portanto
tentamos desbloquear aquilo que está a bloquear, e depois a mulher é livre de
decidir e obviamente nós estamos cá naquilo que ela precisar, mas não somos
incentivadores do aborto, não.
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