Wednesday 16 March 2022

Vendendo o Homicídio

Francis X. Maier

O que vou fazer aqui é publicidade pura, mas o produto merece. Se ainda não viu a curta-metragem “Perdoai as Nossas Ofensas”, na Netflix, que saiu no dia 17 de Fevereiro, arranje maneira de o fazer rapidamente. O filme tem pouco mais de 14 minutos e quase que parece um trailer para uma longa metragem. Nem se trata de uma obra de genialidade cinematográfica. O guião, a realização e a produção são muito simples, quase primitivos. E, contudo, como escreveu um crítico, está cheio de “notas de tensão, acção dramática e descompressão que normalmente esperaríamos num filme de visão mais alargada”. Enquanto “grande filmografia em pequena escala” é um sucesso. É por isso que é memorável.

Dezenas de filmes têm sido feitos sobre a tragédia do Holocausto ao longo dos últimos 70 anos. Mas poucos examinaram o programa que antecedeu a Solução Final e permitiu aperfeiçoar as suas técnicas. Entre 1939 e 2945, a campanha Aktion T4, do Terceiro Reich, assassinou 300 mil pessoas com deficiências físicas e mentais através da eutanásia involuntária. Através da propaganda oficial do Estado, as matanças eram vendidas como um acto de compaixão pelas vítimas, de necessidade económica para a nação e geneticamente benéfico para o povo alemão.

“Perdoai as Nossas Ofensas” conta uma história muito diferente: a história de uma mãe que sacrifica a sua vida para ajudar o seu filho deficiente a fugir a uma campanha de desumanidade clinicamente organizada.

Como é que a nação supostamente mais avançada da Europa, do ponto de vista cultural, embarcou numa tarefa destas? É tentador explicar o programa Aktion T4 como sendo o fruto da ideologia Nazi. Mas isso seria incompleto. Grande parte do corpo médico alemão tinha “seguido a ciência” e aceitado como benéfica a esterilização forçada e a eutanásia voluntária, e não só, antes de Adolf Hitler chegar ao poder. Foram médicos e cientistas, e não os capangas do Partido Nazi, que abraçaram a ideia em primeiro lugar. O Reich simplesmente tirou proveito do seu apoio implícito e, por vezes, entusiástico. Pessoal médico falsificou milhares de certidões de óbito para disfarçar os homicídios da Aktion T4. E muitos desses mesmos médicos escaparam à justiça depois da guerra.

De início as matanças envolveram injecções letais individuais. Mas isso demonstrou ser uma solução morosa e muito desproporcional à dimensão do “problema” da deficiência. O programa evoluiu até chegar a um veículo selado que podia matar dezenas de deficientes e indesejados ao mesmo tempo, através do bombeamento de monóxido de carbono. Em locais como o asilo psiquiátrico de Hadamar, as vítimas – frequentemente descritas como “cascas humanas” – eram gaseadas em massa numa cava disfarçada de balneário.

Na sua história brilhante, emocionante e profundamente perturbadora da Aktion T4, “Death and Deliverance”, o historiador britânico Michael Burleigh escreve que os deficientes eram despidos, pesados e examinados por um médico que escolhia uma “causa de morte” fictícia de uma lista de 61 factores. Depois

os doentes desciam uma dezena de degraus, em grupos de 60 de cada vez, e eram fechados na câmara de gás. Um médico posicionado na parte de fora ligava a válvula e o gás entrava por um cano. Longe de ser uma “morte tranquila” as vítimas experimentavam terror extremo, bem como todos os sintomas de envenenamento por dióxido de carbono. Depois de uma hora, restava o silêncio.  

Entrava então uma equipa de “desinfectadores” para desembaraçar os cadáveres. “Aqueles que tinham sido marcados de antemão como sendo de especial interesse científico”, nota Burleigh, “eram separados e levados para uma sala de autópsia ali perto. Os seus cérebros eram depois enviados para clínicas universitárias em Frankfurt e Würzburg”. Depois de se retirarem os dentes de ouro dos mortos, os seus corpos eram incinerados num crematório. As cinzas eram espalhadas e os ossos esmagados numa prensa.

O Holocausto veio apenas aplicar este procedimento numa escala muito maior, com três inovações: balneários maiores, fornos maiores e gás Zyklon B.

Sondagens secretas feitas na altura pelo Reich revelaram que o povo alemão estava muito dividido e inquieto sobre o assunto. Quanto mais religiosa fosse a pessoa, o mais provável que se opusesse ao Aktion T4. Mas muitos cidadãos comuns apoiavam a campanha de eutanásia, desde que fosse apresentada como “voluntária” por parte das vítimas adultas, ou pelos pais, no caso de crianças.


A propaganda do Reich teve muito cuidado em suavizar a percepção pública da campanha, apresentando o programa de eutanásia da melhor forma possível. Isto incluía a produção de melodramas de qualidade como o “Eu Acuso”, um filme de resto desprovido dos toques nazis normais.

A história de “Eu Acuso” envolve um casal atraente e fiel. A mulher, que sofre de uma doença terminal, suplica ao seu marido para pôr fim ao seu sofrimento. Movido por amor e pelos seus apelos insistentes, ele mata-a e é imediatamente levado a tribunal como homicida. Mas sem qualquer arrependimento, o marido deslumbra o tribunal com palavras que vos poderão soar familiares.

Aqui estou eu, o acusado, e agora sou eu que acuso. Acuso os defensores de crenças passadas e leis antiquadas. Isto não diz respeito só a mim, mas a centenas de milhares de outros que sofrem sem esperança, cujas vidas prolongamos de forma antinatural, e cujo sofrimento aumentamos na mesma medida… E é sobre os milhões de pessoas saudáveis, que não podem ser protegidas contra doença, porque todos os recursos necessários estão a ser usados para manter vivos seres cuja morte seria para eles um alívio e para o resto da humanidade a libertação de um jugo… E agora, senhores juízes e jurados, façam favor de ler a vossa sentença!

Muitos clérigos católicos e luteranos resistiram ao programa de eutanásia como puderam. O mais vocal de entre eles foi o Beato Clemens August Graf von Galen, bispo de Münster. Mas muitos outros mantiveram-se em silêncio. Tipicamente as instituições de deficientes, que frequentemente eram de natureza religiosa, cediam à pressão do regime e entregavam os seus residentes para “tratamento”.

E de que serve recordar tudo isto? Aqui e hoje tal coisa não seria possível. Suicídio medicamente assistido? Milhões de abortos? Venda de restos mortais de fetos? Experiências com tecido fetal? Funcionários públicos católicos que ignoram ou permitem tais coisas? Aqui não seria possível!

Ou então, talvez tenhamos as nossas próprias ofensas que precisam de ser perdoadas.

Para mais informação sobre este assunto aconselho a ver o premiado (e angustiante) documentário Selling Muder: The Killing Films of the Third Reich, também escrito por Michael Burleigh e disponível no YouTube.


Francis X. Maier é conselheiro e assistente especial do arcebispo Charles Chaput há 23 anos. Antes serviu como Chefe de Redação do National Catholic Register, entre 1978-93 e secretário para as comunidades da Arquidiocese de Denver entre 1993-96.

Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing no Sábado, 5 de Março de 2022)

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