Hadley Arkes |
Como sempre, parti de um texto
que Lincoln escreveu para si mesmo, em que se imaginava num debate com um
esclavagista e em que questionava o direito deste homem de escravizar o negro.
Seria ele menos inteligente? Então atenção, argumentava Lincoln, pois isso dá o
direito ao teu vizinho branco mais inteligente que tu de te escravizar a ti.
À medida que o argumento
avançava tornava-se claro que não há nada que se possa invocar para justificar
a escravatura de um negro que não se possa aplicar também a muitos brancos.
Então eu conclui que podemos
usar a mesma argumentação no que toca ao aborto: porque é que o nascituro que
se desenvolve num útero humano é algo menos que humano? Não fala? Os mudos
também não. Não tem braços nem pernas? Outras pessoas perdem braços e pernas ao
longo da vida sem que isso limite o facto de serem seres humanos de plenos
direitos, merecedores de proteção legal.
Em lado algum eu recorria a
argumentos de revelação ou de fé. Este é um argumento que pode ser apreendido
independentemente de divisões religiosas, por católicos, baptistas, muçulmanos
e ateus.
É essa a revelação bombástica
– não é preciso ser-se católico para compreender este argumento, e essa tem
sido a posição da Igreja: Pode-se defender a ilicitude do aborto com base nas
provas científicas da embriologia, junto com raciocínio lógico, que é como quem
diz, com a moralidade do direito natural.
Enquanto eu falava a rapariga
da ACLU escutava, sorridente. Quando acabei acenou simpaticamente com a cabeça
e disse: “Isso são as suas crenças”. Eu tinha-lhe apresentado um argumento
moral, explanado através de premissas que podiam ser analisadas e compreendidas
por qualquer pessoa funcional, independentemente da sua religião, mas ela
conseguiu reduzir tudo o que fosse um argumento moral a uma mera questão de
“crença”.
O falecido jesuíta John
Courtney Murray avisou-nos da tendência para denegrir a religião, reduzindo-a a
meras “crenças” sem qualquer pretensão de verdade para outros que não os seus
proponentes. Uma vez absorvido esse belo cliché, os Bidens e os Cuomos do mundo
podiam armar-se em superiores, dizendo que não podiam impor as “crenças” da sua
Igreja a mais ninguém.
E eis que nos nossos dias
encontramos agora a ironia de uma ideia falsa se ter virado contra si mesma.
Com o desenrolar da “guerra cultural” o aborto está agora firmemente implantado
na lei, juntamente com o casamento homossexual e o “transgénero”.
Supremo Tribunal dos EUA |
Os Green justificam a sua
posição com a “crença” de que a vida começa na concepção. Crença? Esse é um
facto que consta de todos os manuais de embriologia e ginecologia obstétrica.
Contudo, os meus amigos que se
dedicam a defender a liberdade religiosa nos tribunais têm-se mostrado
dispostos a aceitar este tipo de argumento porque tem dado resultado para os
Green e outros. Existe, contudo, um ponto que torna tudo isto mais complicado…
Encontramos pessoas que fazem precisamente os mesmos argumentos morais sobre o
aborto do que a Igreja Católica, mas que não são católicos.
Como é que podemos defender
que os empresários católicos devam estar isentos da obrigação de financiar
abortos mas que o mesmo não se aplica ao homem que defende precisamente a mesma
posição, mas que por acaso não é católico?
Essa dificuldade tornou-se a
chave para compreender um perigo mais profundo. As mesmas pessoas que têm
defendido sem problemas os argumentos com base em “crenças” não parecem
preocupar-se com as implicações preocupantes que surgem destes argumentos que
têm sido propostos. Se, de facto, os nossos juízos morais podem ser reduzidos a
um conjunto de crenças, então aquela mulher da ACLU tem o trunfo na mão.
Digamos que a decisão de Roe
v. Wade, que legalizou o aborto nos Estados Unidos, é anulada, e que se torna
possível novamente fazer leis que protegem o nascituro. Mas se os pró-vida
podem alegar “liberdade religiosa” para não serem obrigados a fazer ou
financiar abortos, então vamos ficar surpreendidos quando os defensores da
bondade do aborto invocarem liberdades semelhantes?
Porque não hão de invocar
“liberdade religiosa” para fazer abortos, mesmo contra as leis que então os
proibiriam? Existe um caminho para proteger médicos, enfermeiras e outros que
não querem ser cúmplices de abortos. Mas estar a invocar esse direito com base
em “crenças” religiosas é lançar as bases para desfazer as mesmas leis sobre o
aborto que alguns de nós lutamos há tanto tempo para restaurar.
Hadley Arkes é Professor de Jurisprudência em
Amherst College e director do Claremont Center for the Jurisprudence of Natural
Law, em Washington D.C. O seu mais recente livro é Constitutional Illusions & Anchoring Truths: The Touchstone
of the Natural Law.
(Publicado pela primeira vez
na Terça-feira, 19 de Novembro de 2019 em The Catholic Thing)
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