Há quase exactamente 25 anos James A. Clifton, um
antropólogo da Universidade de Wisconsin, ligou-me depois de ter lido o meu
artigo no “First Things”, chamado “1492 and all that”, que mais tarde se tornou um livro. Nessa altura estávamos no meio de um turbilhão de emoções
anticatólicas e anti-ocidentais por causa dos 500 anos das viagens de Cristóvão
Colombo para o Novo Mundo e a sua alegada responsabilidade nos maus-tratos de nativos
americanos, na escravatura e no imperialismo cristão.
Estava à espera do pior, mas ele ligou para me dar apoio.
Ele tinha escrito um livro que continua a ser fascinante, chamado “The Invented Indian”, que procurava
clarificar os verdadeiros feitos dos nativos americanos por oposição às
idealizações alimentadas por um sentimento de culpabilização. Em troca deste
seu serviço pela verdade recebeu ameaças e ressentimentos. Um dia alguém
vestido de índio – ou melhor, alguém com um conjunto ridículo de artigos de
roupa de diferentes tribos – foi bater à sua porta armado com uma pistola. O
professor Clifton riu-se e virou as costas dizendo-lhe para voltar quando
soubesse alguma coisa sobre índios.
Há coisas que nunca mudam, incluindo este revolta suicida
e em larga medida ignorante que é agora um marco regular da cultura americana e
que se está a espalhar para outros países ocidentais. Por entre os terríveis
conflitos entre representantes do alt-right e do alt-left em Charlottesville
(que, como de costume, causaram ferimentos em pessoas inocentes) parece que nos
esquecemos da verdade humana e cristã de que somos todos seres imperfeitos. E
que se não tivermos a capacidade de tolerar as fraquezas dos outros, e se não
dermos espaço o perdão, acaba por se tornar impossível conviver.
O absolutismo puritano costumava ser uma característica
de movimentos religiosos e políticos extremistas; mas agora infesta os próprios
lugares que deviam ter melhor compreensão das diferenças e dos contextos, como
é o caso das universidades e dos meios de comunicação.
Aprendi a minha lição quando tentei pintar um retrato
claro da era dos descobrimentos. Havia, e ainda há, bons historiadores,
académicos e amadores, dedicados a estes assuntos. Mas o que acaba por garantir
a atenção mediática são as generalizações condenatórias que ignoram distinções
morais essenciais.
O grande “defensor dos índios”, o dominicano Bartolomé de
Las Casas, falou da “doçura e benignidade” de Colombo, em contraste com outros
exploradores espanhóis. Cortez podia ser brutal, embora tenha acabado os seus
dias num mosteiro, a penitenciar-se pelos seus pecados. Pizarro era pura e
simplesmente um psicopata. Mas Colombo era de outra categoria; apesar das
dificuldades sem precedentes que teve de enfrentar nas novas culturas que
encontrou, houve poucos casos de maus tratos a quem quer que fosse.
Frequentemente manifestava incertezas sobre como proceder, tal como nós. Las
Casas disse que “verdadeiramente, não me atreveria a julgar as intenções do
almirante pois conheci-o bem e sabia que eram boas”. Contudo, Colombo acabou
por se tornar um bode expiatório cultural.
Salvo algumas personagens que eram quase puros monstros,
as grandes figuras culturais são, como nós, uma mistura de bem e de mal. E a
nossa posição em relação a eles é como crianças que tomaram conhecimento dos
pecados e das fraquezas dos seus pais. Mesmo quando as suas falhas são muito
evidentes, continuamos a poder honrar as coisas boas que nos legaram, que são
tantas e de tal forma enraizadas em nós que nem as podemos enumerar. É por isso
que no mandamento logo a seguir ao de não adorar ninguém para além de Deus,
somos instruídos a “honrar pai e mãe”. Não estamos perante um patriarcado da
idade da pedra (notem a referência à mãe), mas sim de um caso de simples
justiça: Temos uma dívida para com aqueles que nos deram a vida e a nutriram.
A nossa cultura foi criada por pessoas grandes, ainda que
imperfeitas. E os padrões que usamos para as julgar – e para nos julgarmos a
nós mesmos – não foram inventados imaculadamente quando nós, quais seres
perfeitos, começámos a existir. Quando tínhamos uma imagem mais perfeita da
natureza humana não nos deixávamos surpreender tanto com o facto de que as
grandes figuras históricas tinham grandes virtudes e grandes vícios.
Abraham Lincoln, por exemplo, costumava dizer que os
escravos africanos não podiam ser assimilados numa sociedade branca e que por
isso o melhor seria enviá-los de volta para África. Devemos ignorar tudo o que
disse este grande homem só por causa de um erro de juízo?
De igual modo Martin Luther King Jr. cometeu vários actos
de adultério. Perguntei uma vez a um padre católico que tinha trabalhado com
King no movimento dos direitos civis sobre esta questão. Ele admitiu que se
tratava de um problema, mas que tendo em conta a quantidade de mulheres que se
atirava a ele, poderia ter sido bem pior. Devemos deixar que essa fraqueza dele
se sobreponha a todos os seus grandes feitos?
Antigamente ficávamos preocupados com o facto de haver alunos
a licenciar-se sem saber em que século tinha sido a Guerra Civil, ou as datas
da Segunda Guerra Mundial. Mas agora permitimos a um pequeno grupo de radicais,
com um grande megafone mediático, fazer afirmações e contra-afirmações cósmicas
que ignoram os trajectos difíceis da história humana.
É natural, numa democracia, haver debate e até divisão,
mas a demonização actual não é normal. É legítimo analisar e discutir a vida de
figuras como Robert E. Lee. É até útil examinar os registos – através do pensamento
crítico e não da profanação de monumentos – de santos como Junípero Serra, que
enfrentou condições que dariam cabo da maioria de nós, e contudo foi capaz de
retirar delas grandes bens.
Las Casas, que por vezes criticava ferozmente os seus
compatriotas espanhóis, também foi capaz de elogiá-los por “levar a cabo feitos
nunca antes inventados nem sonhados”. Todos nós, católicos, protestantes,
religiosos ou não, precisam de se chegar à frente nesta altura. Não podemos
deixar que os termos da discussão sejam estabelecidos por pessoas que sofrem de
amnésia cultural ou que vivem auto-iludidos sobre a sua própria pureza moral.
Teremos de ser pessoas de memória, especialmente sobre as
raízes da nossa civilização e sobre como a defender, não obstante as suas
imperfeições. Na verdade definimos essas imperfeições largamente sob a óptica
da tradição cristã ocidental, a única base real para a nossa noção de dignidade
de todos os seres humanos, radicada no facto de sermos feitos à imagem de Deus.
Destruam essa tradição e verão que se seguirá uma guerra
de todos contra todos. Aliás, já começou.
Robert
Royal é editor de The Catholic Thing e presidente do Faith and Reason Institute
em Washington D.C. O seu mais recente livro é A Deeper Vision: The Catholic
Intellectual Tradition in the Twentieth Century, da Ignatius Press. The God That Did Not Fail: How
Religion Built and Sustains the West está também disponível pela Encounter
Books.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na segunda-feira, 28 de Agosto de
2017)
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